摘要:Num dos manuscritos da severina existentes na Biblioteca Nacional de Lisboa, encontra-se uma
«Misselania de entretenimento de discretos», para a qual se reivindica como título mais preciso Os
Louvores da Parvoíce1. Trata-se de uma tradução parafrástica do Moriae Encomium ou Stultitia
Laus, elaborada provavelmente em meio intelectual eborense, entre 1596 e 16052. A sua análise
permitirá um duplo exercício. Por um lado, a compreensão de uma obra construída a partir de
outra implica atenção aos dispositivos que na época orientaram a leitura do texto de Erasmo e con-
dicionaram a construção de um novo texto. A este propósito, a divisão em capítulos, inexistente
no original, os erros do copista e, sobretudo, as possibilidades abertas pelo manuscrito na fixação
quer de uma linguagem, quer de práticas licenciosas são os aspectos mais evidentes3. Por outro
lado, importa seguir as formas de selecção e as variantes, patentes no manuscrito português, orga-
nizando-as em torno de dois eixos. Um primeiro, designado – por convenção – de ordem cultu-
ral, agrupa as práticas de transmissão e de elaboração do conhecimento. Um segundo, mais difí-cil de reduzir a tópico, inclui os processos de organização social, pedagógica, religiosa e política,
nas suas relações com a ética ou com a moral. Erasmo é a seu modo fundador de tal metodolo-
gia, já que ele foi simultaneamente filólogo e pedagogo. Neste sentido, será possível sustentar um
argumento de carácter analítico relativo ao significado da tradução portuguesa, e ao modo como
ela se aparta do texto original
4. No entanto, o contexto lucianesco em que o Encomium se insere
– e que já foi analisado por vários estudiosos da obra de Erasmo – poderá ser tomado como um
dado adquirido, tendo funcionado como uma espécie de legado também partilhado pelo adapta-
dor português e pelo seu círculo5. De qualquer modo, o exercício que aqui se apresenta também
parece demonstrar a inutilidade metodológica de um recente debate concebido em termos de uma
oposição entre intenções dos autores e recepção das suas obras6. É que, de facto, a filologia, a his-tória literária e da espiritualidade da Península Ibérica configuram-se como um vasto recurso de
experiências acumuladas, onde os debates se parecem situar a um nível bem mais profundo.
Acrescente-se, ainda, que estas notas servem ainda como primeiro sinal de abertura de um inqué-
rito mais vasto sobre os comportamentos e as visões relativas à loucura, a partir de uma série de
fontes portuguesas7.