Implications between midium and creative paratopia: a case of exponential authorship /Implicacoes entre midium e paratopia criadora: um caso de autoria exponencial.
Salgado, Luciana Salazar ; Doretto, Vitoria Ferreira
Implications between midium and creative paratopia: a case of exponential authorship /Implicacoes entre midium e paratopia criadora: um caso de autoria exponencial.
Introducao
A mediacao editorial, embora apareca com frequencia como elemento
decisivo em muitas analises, em diversas vertentes teoricas, nao tem
ainda uma sistematica metodologica consagrada. Neste artigo, focalizamos
um objeto cuja propria 'formalizacao material' propoe uma
discussao sobre os expedientes editoriais constitutivos da criacao e,
assim, da producao de sentidos que lhe confere o carater de obra
(Flusser, 2012). Para tanto, no ambito dos estudos discursivos,
filiamo-nos aos trabalhos sobre os 'ritos geneticos
editoriais' com vistas a contribuir para uma reflexao da qual
decorre uma metodologia analitica (Salgado, 2011). Abordando os
'ritos' como procedimentos sistematicos destinados a consagrar
certas praticas, e a 'genese', em termos discursivos, como
convergencias historicas que se condicionam e assim estabelecem uma
orientacao semantica, entendemos que nos 'ritos geneticos
editoriais' se trabalha para a instituicao de um posicionamento num
campo: a autoria.
Trata-se, entao, de identificar, descrever e articular elementos
que presidem a gestao da figura discursiva de autor, considerando que
ela esta impregnada de aspectos que apontam para a existencia de um ser
no mundo e, na mesma mao, de um mundo que se instaura a medida que se
delineia esse ser--uma profissao, uma idade, um estado civil, um tipo de
familia ... os tropismos variam, indiciando uma vida. Esses indicios so
aparecem porque ha uma dimensao publica do trabalho de
escrita--encarnado em suportes como livros, sites, performances, etc.;
retomado em entrevistas, resenhas, fotos em redes sociais, etc.;
chancelado por feiras, premios, casas editoras, editais, etc. E tais
indicios so podem ser colhidos porque ha o proprio trabalho de escrever,
mais precisamente de inscrever o material linguistico em outros
materiais--pagina, papel, massa de texto, tela, etc., o que implica
recursos a fontarios, cores, respiros, icones, imagens, itemizacoes e
toda uma selecao de expedientes da propria lingua, escolhas que nao sao
neutras, porque sempre ligadas a outras que definirao o que, afinal, se
costuma chamar de 'estilo':
A existencia desses multiplos recursos e a primeira e mais
importante das condicoes de possibilidade do estilo. A segunda condicao
de possibilidade do estilo como fruto de escolha esta, pois, prevista: e
a existencia de quem escolhe. Se o que escolhe nao e concebido como
alguem submetido irreversivelmente quer as constricoes da gramatica,
quer as constricoes da ordem social, eis que esta desenhado o quadro em
que uma estilistica pode ser efetivamente postulada sem que se torne um
acrescimo e sem que seja definida por algum criterio
'psicologico', como a atencao (Possenti, 2001, p. 273, grifos
originais).
Trata-se de entender que os interlocutores nao sao "[...] nem
escravos nem senhores da lingua. Sao trabalhadores" (Possenti,
2001, p. 77). No caso dos objetos editoriais, esse trabalho se da no
cultivo de ritos que caracterizam um processo de criacao e de edicao, e
que sao mais ou menos publicizados, na medida em que se esta produzindo
objetos destinados a circulacao publica--que, portanto, tambem os
regula. A autoria e, assim, na rede de interlocucoes de que participa,
um no de diferentes instancias de trabalho, que so constituem uma
unidade--a figura de autor--por estarem em implicacao dinamica; e as
dinamicas que sao disparadas nos processos editoriais, por definicao,
procuram garantir-lhe uma condicao reconhecivel, uma figuracao. A
autoria se funda, segundo esta perspectiva, no trabalho permanente de
tessitura desse no.
A seguir, sobre essas bases, descrevemos o objeto editorial em
estudo. Em todo caso, para prosseguir, importa sublinhar que as
discussoes sobre as materialidades referidas por 'livro' sao
muitas, especialmente com a explosao de dispositivos digitais pos-web
2.0, mas a arquitetura de qualquer desses dispositivos pode ser
entendida como um 'sistemalivro' (Barbier, 2008): i) objetos
feitos de elementos materiais--das materias-primas ao processamento de
sofisticados dispositivos--, ii) administrados por diferentes atores
sociais--com atribuicao de funcoes e valores--e iii)
distribuidos--portanto avalizados por instituicoes diversas. A esse
sistema-livro formalmente materializado chamamos 'objeto
editorial'.
Dadas essas balizas, focalizamos S., que tambem e chamado no
mercado editorial de 'quebra-cabeca literario', designacao da
propria editora. Fruto da parceria entre o cineasta J.J. Abrams e o
romancista Doug Dorst, ambos estadunidenses, foi publicado em 2013 nos
Estados Unidos, e sua versao traduzida para o portugues brasileiro foi
lancada em 2015 pela editora Intrinseca. Segundo diversas entrevistas da
dupla, a obra e uma carta de amor para o mundo da escrita (Thoughts on
S, 2016).
A principio, o objeto editorial S. e uma caixa preta com um
lacre--emulacao de um selo antigo com a letra 's' em estilo
gotico--, na frente da qual figuram os nomes dos autores acima citados,
com a reproducao de uma pintura de um navio antigo; um grande
'S' em fonte sugestiva de um texto medievo toma toda a
extensao da sua capa, repetido no selo da lombada. Quando esse lacre e
rompido, descobrimos que a caixa abriga um exemplar 'de
biblioteca', antigo e gasto, de um romance intitulado O Navio de
Teseu, ultima obra do escritor V.M. Straka, um homem enigmatico cuja
vida e identidade misteriosas geram discussoes entre os especialistas em
literatura ha anos. Nas suas paginas encontramos anotacoes
'manuscritas': uma conversa entre dois leitores, Eric e
Jennifer, que trocam informacoes pelo exemplar deixado num cantinho de
uma biblioteca ... Esses sao os ingredientes que instituem
ficcionalmente a interessante problematica da autoria, que ganha
sucessivos contornos: quem e leitor de que texto? Quem e personagem e
quem e autor?
Nao problematizaremos, nesta ocasiao, sua classificacao como
'literatura'. Etiquetado editorialmente como texto literario e
assim referido por circulos amplos de recepcao, consideramos que se
trata de uma obra participe do regime do discurso literario, um tipo de
discurso constituinte:
Os discursos constituintes tem efetivamente um estatuto singular:
sao zonas de palavras entre outras 'e' palavras que se
pretendem marquise de todas as outras. Sendo discursos-limite,
localizados num limite 'e' tratando do limite, devem gerar
textualmente os paradoxos que seu estatuto implica. Com eles,
colocam-se, em toda sua acuidade, as questoes relativas ao carisma, a
Encarnacao, a delegacao do Absoluto: para nao se autorizarem apenas por
si mesmos, devem apresentar-se como ligados a uma Fonte legitimadora
(Maingueneau, 2006, p. 34, grifos originais).
Maingueneau refere essa relacao como 'regulacao da
figuracao', e descreve o sistema regulatorio em que operam tres
planos: espaco, campo e arquivo. O 'espaco' e feito de objetos
e praticas que levam os individuos a assumir lugares (de autor, de
editor, de leitor, etc.); o 'campo' delimita-se nas
co-ocorrencias dos posicionamentos esteticos, definidos, por exemplo,
pelos generos mobilizados (definidos como praticas sociais); e o
'arquivo' e a memoria discursiva que, ao mesmo tempo, se poe
como heranca de toda nova criacao e e incessantemente retrabalhada na
sua relacao com cada novidade. Assim, retomando tudo o que foi dito,
entendemos que a figura autoral e feita de aspectos pessoais, sociais e
linguisticos que se conjugam assimetricamente, conforme os espacos,
campos e arquivos se articulam nas conjunturas historicas.
No objeto editorial literario S. o problema se poe assim: ha dois
autores que desaparecem por completo ao romper-se o lacre de uma caixa,
um autor-personagem e personagens-leitores-autores interagem, entao, num
pertencimento paradoxal, provocando uma complexificacao de tempos: os
tempos das escritas, algumas subsequentes, outras simultaneas; algumas
ficcionalmente distantes, outras ficcionalmente atuais, temporalidades
dadas pela deixis discursiva e por uma serie de objetos (mapas,
bilhetes, recortes de jornal, entre outros) encontrados entre as paginas
do exemplar O Navio de Teseu. Essa abordagem exige que se ponha em
relevo a materialidade inscricional, convocada aqui sob a nocao de
'midium' (Debray, 2000), e aspectos da constituicao do valor
dessa materialidade, dados na conjugacao do 'espaco canonico'
com o 'espaco associado' (Maingueneau, 2006).
Mediacao editorial e autoria
O termo 'midium' designa modalidades de suporte e de
transporte dos enunciados, considerando que nao ha, de fato, uma
materialidade inerte e anterior a inscricao numa forma de circulacao,
tampouco anterior a inscricao do material signico: o signo esta dado na
confluencia de 'matrizes de sociabilidade' e 'vetores de
sensibilidade'. Em termos discursivos, as matrizes sao
institucionalidades fiadoras de discursos, o modo como a sociedade se
organiza 'encarnando' suas praticas e valores em sistemas de
objetos; os vetores sao dispositivos inscricionais com valor de genero,
o modo como os objetos resultam de logicas de uso e impoem logicas de
uso (Debray, 2000).
Dessa forma, o midium condiciona os usos que podemos fazer dele e,
assim, participa da producao de sentidos do que e enunciado. Nao e
simplesmente um meio, um instrumento usado para transmitir o discurso, e
seu "[...] modo de existencia material: modo de
'suporte/transporte e de estocagem, logo, de
memorizacao'" (Maingueneau, 2002, p. 68, grifos originais). Se
quisermos pensar na emergencia de uma obra, nao e possivel, segundo essa
abordagem, separa-la de suas formas de transmissao e de suas redes de
comunicacao, pois entende-se que nenhuma obra se significa sozinha, que
"[...] as mediacoes materiais nao vem acrescentar-se ao texto como
'circunstancia' contingente, mas intervem na propria
constituicao de sua 'mensagem'" (Maingueneau, 2002, p.
85, grifos originais).
Podemos, agora, acrescentar a isso a definicao do 'espaco
canonico' e, na mesma mao, a de 'espaco associado', que
tem a ver com o fato de um texto autoral se consagrar como tal quando e
retomado como tal. Afinal, o criador de uma obra pode negociar o
acrescimo de seu texto em um ou outro estado do campo em que circulara e
no circuito de uma comunicacao que lhe e caracteristica, sempre atraves
de um processo de regulacao. Sendo assim, ao espaco de producao autoral
soma-se um espaco de referencia a essa producao, que, entao, justamente
por ser referida, sera um 'espaco canonico', ao qual se terao
acrescentado materiais de um 'espaco associado':
O 'espaco associado' nao e um espaco contingente que se
somaria de fora ao espaco canonico: os espacos canonico e associado
alimentam-se um do outro, sem, contudo, possuir a mesma natureza. Esse
duplo espaco se mostra no conjunto mais amplo de 'marcas'
deixadas pelo autor, o que inclui tambem os cadernos escolares, a
correspondencia amorosa, cartas dirigidas a administracao publica, etc.
(Maingueneau, 2002, p. 144, grifos originais).
No caso em tela, no modo como as materialidades constitutivas desse
objeto editorial apontam para seus autores e seus leitores, com os
desdobramentos desses lugares entre ficcionais e nao ficcionais,
poderiamos considerar os espacos canonico e associado de duas formas. A
primeira designa tudo o que esta dentro da caixa S. como o material
definidor do espaco canonico--o exemplar contendo o romance, o romance,
os comentarios em suas margens, os diversos papeis que estao espalhados
por suas paginas--, a 'grande obra' sobre a qual comentarios
sao feitos, cujos trechos sao retomados em outros textos; e designa tudo
o que esta disposto em plataformas espalhadas pela internet --da
editora, sobre o conteudo, com acrescimos de conteudo, etc.--como espaco
associado. A outra seria considerar apenas o romance O Navio de Teseu
como espaco canonico, afinal esse e o texto autoral em foco, e tudo o
mais que se relaciona (ou pode ser relacionado) com sua narrativa seria
considerado espaco associado--incluindo os comentarios na marginalia do
exemplar, os anexos, os sites, etc. Neste caso, como dissemos acima, o
espaco associado seria tambem ficcional.
Quando consideramos o romance de Straka como o espaco
canonico--somente a historia do personagem chamado S, ou seja, O Navio
de Teseu -, todos os outros elementos que compoem a caixa S. devem ser
considerados como materiais associados as notas de rodape da tradutora
Caldeira, as conversas de Eric e Jen pelas margens e os diversos anexos
que esses dois leitores acrescentam ao exemplar, alem dos textos que
estao fora da caixa, como os materiais mantidos pela equipe de Abrams e
Dorst, dispostos em blogs e podcasts dos personagens, e que lhes confere
um efeito de veracidade, tanto a existencia de Eric e Jen, quanto de
Straka e Caldeira e dos outros individuos citados como atuantes na vida
desses quatro. Mas se, ainda assim, observamos que ha, nessa cadeia de
retomadas, materiais produzidos pelos dois autores 'primeiros'
(Abrams & Dorst, 2015), e nao terceiros a retomar a obra, acabamos
por entender tambem esses materiais como parte do espaco canonico, isto
e, como material propriamente autoral. O borramento entre ficcao e nao
ficcao e gerido por esses autores ou, mais amplamente, por uma equipe
gerida por esses autores, a ponto de nos perguntarmos se eles mesmos sao
'os' autores, pois assumem os ritos geneticos editoriais como
coordenadores de uma producao coletiva.
Podemos entender que esse material associado feito
'primeiro' instila outros materiais associados; esses, sim,
retomadas de terceiros que ampliam a rede de forma a nao apenas divulgar
(caso do hotsite da editora Intrinseca, responsavel pela publicacao de
S. no Brasil) e comentar a obra (caso das resenhas publicadas em dezenas
de blogs e sites), mas tambem traduzir o material primeiro ao portugues,
tracar novas reflexoes e possibilidades para a trama e procurar pistas
dos misterios escondidos nas notas de rodape, ampliando sua circulacao.
Veja-se, por exemplo, a Figura 1:
Entendemos aqui que ha um movimento do espaco associado
ficcionalizado gerando espaco associado que origina outros espacos
associados, sempre revisitando o material primeiro--tanto os anexos do
livro quanto os sites--e ampliando sua abrangencia. No movimento
constante de definicao de espaco canonico e espaco associado, percebemos
que, como o canonico, o associado e tambem um espaco de criacao e
distribuicao, os materiais que seriam parte do espaco associado passam,
muitas vezes, a ser canonicos por assumirem materialidades significantes
que sao parte da obra.
Em sintese, todo objeto editorial se constitui de um espaco
reconhecido como texto autoral, que e canonizado (nos termos teoricos
aqui adotados) pelas formas de retomada que a ele se associam; portanto,
espacos canonico e associado se constituem mutuamente. Se nao, nao ha
obra. Em S., isso e radicalmente experimentado, trata-se efetivamente de
um 'sistema-livro' ou, por outra, de um livro que se poe
publicamente como um sistema em dinamica, convocando leitores a
participar de seu refazimento.
Diante disso, um ultimo acrescimo: a nocao de paratopia criadora.
Tributaria de discussoes classicas na analise do discurso, e uma
proposta de entendimento do funcionamento da autoria como um lugar a ser
gerido conforme as especificidades do regime discursivo em que se
formula. Tendo em vista a questao autoral em S., esse modelo
teoricometodologico nos parece muito produtivo para entender a potencia
expressiva dessa autoria, que e um jogo narrativo em si. De partida,
consideremos que "[...] nao e possivel produzir enunciados
reconhecidos como literarios sem se colocar como escritor, sem se
definir com relacao as representacoes e aos comportamentos associados a
essa condicao" (Maingueneau, 2001, p. 27), uma vez que este
conceito indica um 'pertencimento impossivel' ao literario (a
instituicao literaria) enquanto discurso constituinte (um discurso nao
topico) que nao pode se estabelecer permanentemente em nenhum lugar,
grupo ou comportamento. Impoe uma negociacao entre um lugar e o
nao-lugar, um pertencimento que se alimenta de sua inclusao impossivel,
onde a paratopia, 'localizacao paralela', cuja condicao e a
integracao a um processo criador, se alimenta do esforco do autor em se
afastar ritualizada e metodicamente do mundo e tambem de seu esforco em
sempre se inserir nele: "Os 'meios' literarios sao na
verdade fronteiras. A existencia social da literatura supoe ao mesmo
tempo a impossibilidade de ela se fechar em si mesma e a de se confundir
com a sociedade 'comum', a necessidade de jogar com esse
meio-termo e em seu ambito" (Maingueneau, 2001, p. 92, grifos
originais).
E nesse processo de criacao que esta a negociacao entre escritor e
sociedade, escritor e obra e obra e sociedade:
Nem suporte nem quadro, a paratopia envolve o processo criador, que
tambem a envolve: fazer uma obra e, num so movimento, produzi-la e
construir por esse mesmo ato as condicoes que permitem produzi-la. Logo,
nao ha 'situacao' paratopica exterior a um processo de
criacao: dada e elaborada, estruturante e estruturada, a paratopia e
simultaneamente aquilo de que se precisa para ficar livre por meio da
criacao 'e' aquilo que a criacao aprofunda; e a um so tempo
aquilo que cria a possibilidade de acesso a um lugar e aquilo que proibe
todo pertencimento. Intensamente presente e intensamente ausente desse
mundo, vitima e agente de sua propria paratopia, o escritor nao tem
outra saida que a fuga para a frente, o movimento de elaboracao da obra
(Maingueneau, 2001, p. 109, grifos originais).
Dessa maneira, a autoria se estabelece na dinamica entre tres
instancias que formam a unidade de uma figura autoral. As relacoes entre
o escritor e a sociedade, o escritor e sua obra, a obra e a sociedade
podem ser situadas em seus diversos entrelacamentos com base na logica
que preside a formulacao desse modelo, que se define, entao, no
entrelacamento das instancias 'pessoa', 'escritor' e
inscritor'.
Em breves linhas, podemos dizer que tais instancias se relacionam
aos aspectos que formam um autor: a instancia 'pessoa' se
refere a um individuo no mundo, dotado de estado civil, como um membro
de um grupo social; a instancia 'escritor' designa o ator que
define sua trajetoria na instituicao literaria e se refere ao 'modo
de difusao' da obra, e a instancia 'inscritor' se refere
ao sujeito da enunciacao, englobando os ritos geneticos, incluindo tudo
o que um autor mobiliza para construir sua obra, inclusive os ritos
propriamente editoriais. No caso do objeto editorial S., sua complexa
formalizacao material, dada como um sistema, atesta a sofisticada
relacao dos ritos de edicao com os de criacao, a ponto de se tornarem
indistinguiveis. De todo modo, as instancias nao sao sequenciais nem
independentes, e em sua tripla implicacao que a autoria se define, dado
que os autores criam as obras, mas elas e os proprios autores tambem sao
produzidos por praticas institucionalizadas e a propria obra tambem
constroi o autor:
[...] nao se pode isolar ou reduzir nenhuma dessas instancias as
outras; sua separacao e a condicao do desencadeamento do processo de
criacao. Atraves do inscritor, e tambem a pessoa e o escritor que
enunciam; atraves da pessoa, e tambem o inscritor e o escritor que
vivem; atraves do escritor, e tambem a pessoa e o inscritor que tracam
uma trajetoria no espaco literario (Maingueneau, 2001, p. 137).
Posto isso, percebemos que os dados biograficos de Dorst e Abrams
apresentados compoem tanto a instancia pessoa quanto a instancia
escritor da autoria dos dois, mostrando, em especial, a trajetoria de
Abrams, a experiencia de Dorst, a circulacao de suas outras obras e seu
pertencimento a certos grupos sociais. Mas ha, ainda, a autoria de V.M.
Straka e, de certo modo, de F.X. Caldeira, respectivamente autor e
tradutora de O Navio de Teseu, para os quais a instancia inscritor se
faz mais presente. E ha ainda mais: os dados biograficos de Eric Husch e
Jennifer Heyward, respectivamente pesquisador e estudante de literatura
e leitores do romance de Straka que constroem parte fundamental da trama
central. Assim, "[...] pensa-se aqui numa estrutura de no borromeu;
os tres aneis deste se entrelacam de modo que, se se rompe um dos tres,
os dois outros se separam" (Maingueneau, 2006, p. 137).
Em sintese se poderia dizer que o gesto inscricional, isto e, a
tomada de palavra, dispara a conjugacao dessas tres instancias:
justamente porque ha um texto ensejando vida publica e que todo o
aparato de constituicao desse lugar de criacao ganha uma vida potencial,
que pulsara em dinamicas conjunturais especificas, e cada autoria se
configura conforme funciona cada uma dessas instancias.
Assim, importa considerar indicios dispersos num dado campo a
respeito de quem sao os autores, do que eles fizeram em termos de
criacao, de quais sao suas principais caracteristicas segundo quem os
retoma e analisa.
JJ. Abrams e conhecido por sua carreira no cinema e na televisao
dos Estados Unidos. Filho de um casal de produtores de televisao, nasceu
em 1966 na cidade de Nova York. Formado pela Sarah Lawrence College,
firmou-se como roteirista, diretor e produtor de cinema e televisao,
compositor e, desde 1996, marido de Katie McGrath, executiva de Relacoes
Publicas com quem tem tres filhos. Sua biografia, nos mais diversos
portais de cinema, conta que seu primeiro trabalho foi aos 16 anos com o
roteiro escrito por Alvin Sargent para o afamado Gente como a Gente
(1980), considerado modelo de seus proprios roteiros. Nesse periodo,
escreveu musicas para o filme Nightbeast (1982). Mais tarde se juntou a
Jill Mazursky para escrever um tratamento de roteiro comprado pela
megaprodutora Touchstone Pictures, que se tornou a base do filme
Milionario Num Instante (1990, Arthur Hiller). Em seguida, outros dois
roteiros fizeram sucesso: Uma Segunda Chance (1991, Mike Nichols), em
que tambem atuou e foi coprodutor, e Eternamente Jovem (1992, Steve
Miner), de que foi produtor executivo. A partir disso, fez carreira na
producao de filmes de grande circulacao, como O Primeiro Amor de um
Homem (1996, Matt Reeves), foi roteirista de Armagedom (1998, Michael
Bay) e produziu sua primeira serie de televisao, Felicity (1998-2002).
Nos anos 2000, junto com Bryan Burk, criou sua propria produtora, onde
desenvolveu a serie Alias: Codinome Perigo (2001-2006), quando passou a
ser reconhecido na industria cinematografica e na televisiva como um
roteirista capaz de criar historias coesas com viradas bem escritas
(Doretto, 2017).
O trabalho seguinte de sua produtora foi a aclamada serie Lost
(2004-2010). Neste projeto, J.J. escreveu e dirigiu o episodio piloto, o
que lhe garantiu seu primeiro Emmy na categoria de Melhor Direcao em
Serie Dramatica e em Melhor Serie Dramatica. Passou, entao, a direcao de
filmes de acao: seu primeiro trabalho foi Missao: Impossivel 3 (2006), o
filme mais caro da historia feito por um diretor estreante; depois
voltou a dirigir episodios de series e producoes para a televisao como
Anatomy of Hope (2009), onde tambem foi produtor executivo, entrando em
definitivo para o segmento dos grandes orcamentos com Star Trek (2009),
filme que tambem produziu.
Escreveu e dirigiu Super 8 (2011) em 2010, longa-metragem
co-produzido por Steven Spilberg e Bryan Burk. Nos anos seguintes
produziu filmes e series como Missao: Impossivel--Protocolo Fantasma
(2011), Alcatraz (2012) e Agentes Secretos (2010). Voltou a dirigir
longas em 2013 com Alem da Escuridao--Star Trek, foi o responsavel pela
direcao e producao de Star Wars: Episodio VII--O Despertar da Forca
(2015), pela producao de Star Trek: Sem Fronteiras (2016) e pela
producao executiva da serie televisiva Westworld (2016-) e do longa Star
Wars: Os Ultimos Jedi (2017). Com todo o seu trabalho ao longo dos anos,
J.J. Abrams tem mais de 50 creditos como produtor e produtor executivo
de series e filmes, alem de participar do Conselho Criativo da
organizacao nao-partidaria anticorrupcao Represent.Us. Uma trajetoria
que aponta tanto para as carateristicas sistemicas de S., um livro que
se abre em diversas narrativas e dimensoes materiais com implicacoes
diversas, quanto para o engendramento de uma comunidade de leitores
ampla, coparticipantes de redes que, enfim, exigem que se 'entre no
jogo'.
Doug Dorst poderia ser como o misterioso Straka se sua foto nao
estivesse circulando pelos resultados do Google. Ha pouca informacao
online, nos resultados de busca mais aparecem noticias sobre o
lancamento de S. do que suas indicacoes a premios literarios e demais
titulos. O autor cresceu em Chappaqua, no estado de Nova York, fez
graduacao em Ingles e Ciencias Politicas em Stanford, tem graduacao em
Direito pela UCBerkeley e um Master of Fine Arts em Ficcao pelo Iowa
Writers Workshop e, segundo a biografia disposta em seu site oficial,
recebeu bolsas da Michener-Copernicus Societye do National Endowment for
the Arts. Dorst mora em Austin, tendo se mudado de Sao Francisco com sua
esposa para que ela pudesse obter o seu PhD na universidade de la, e e
professor associado de ingles na Universidade Estadual do Texas em San
Marcos. Ele tambem atua no conselho consultivo da Austin Bat Cave, um
centro sem fins lucrativos que fomenta praticas de escrita entre
criancas.
Sem data de nascimento compartilhada em sua pagina de biografia,
Dorst e autor de outros dois livros, Alive in Necropolis e The Surf
Guru, o primeiro sendo o vencedor do 2009 Emperor Norton Award e o
segundo, uma colecao de historias curtas publicada pela Riverhead Books.
Ainda segundo seu site, sua primeira peca de teatro, Monster in the
Dark, uma colaboracao com a foolsFURY Theater Company, foi aclamada em
Sao Francisco e Berkeley em 2008 e ele venceu tres vezes o Jeopardy!, um
programa de perguntas tradicional da televisao estadunidense. Dorst e
ganhador de outros premios como o New York Times Book Review
Editor's Choice Award (2009) e sua peca de teatro ajudou a
foolsFURY Theater Company a levar o San Francisco's Best Theater
Company of the Year Award (2008).
E interessante notar que sao figuracoes bastante diferentes.
Abrams, nascido na metropole, desde cedo se interessou pelo ramo
cinematografico e se engajou em grandes producoes em funcoes variadas e
e festejado em rede, enquanto Dorst tem um caminho mais reservado,
estudando ingles, politica e direito em celebres universidades,
pleiteando bolsas e concorrendo a premios de carater literario. Quanto a
producao de narrativas, os dois fizeram carreira em midias diferentes,
Abrams e muito experiente no cinema e em series, enquanto o contato de
Dorst com a televisao se deu por suas participacoes no programa de
perguntas Jeopardy!, traco da instancia 'pessoa' que produz
efeitos sobre a instancia 'escritor', como o fato de ambos
fazerem parte de conselhos em organizacoes apartidarias e sem fins
lucrativos. Os pertencimentos midiaticos e suas filiacoes institucionais
sao bastante distintos e tais diferencas, constituintes das autorias de
outros produtos, acabam por se entrelacar numa terceira autoria, a de
S., mas tambem uma especie encarnacao autoral outra, resultado do
trabalho de criacao do espaco canonico do qual emerge, com estilo
proprio, a pena de Straka. Nesse grande jogo agitado como um filme de
suspense contemporaneo, emerge um autor correlato a uma obra que se
caracteriza por uma outra temporalidade, pelo pertencimento a um mundo
em que o suspense se lineariza, nao se espalha; se historiciza, nao se
fabula --e que corresponde aos imaginarios suscitados pelo exemplar
'gasto', 'de biblioteca' sugerido pela materialidade
do objeto editorial.
V. M. Straka, conforme nos contam a contracapa do exemplar de S. e
alguns sites sobre o assunto, e o misterioso autor de O Navio de Teseu e
de dezenove outros romances. Tudo o que sabemos sobre ele foi encontrado
em O Navio de Teseu, nas anotacoes nas paginas do livro e nos papeis
avulsos entre suas paginas. O nome de Straka e associado a crimes de
sabotagem, espionagem, conspiracao, subversao, roubo e assassinato. Suas
historias derrubaram governos, envergonharam industriais impiedosos e
anteciparam a ascensao de regimes totalitarios (ou assim o diz a
tradutora F. X. Caldeira em seu prefacio de O Navio de Teseu). Ele nunca
revelou seu rosto.
Em notas de rodape dispostas ao longo da narrativa de O Navio de
Teseu, F.X. Caldeira afirma que ele inspirou o renomado escritor Ernest
Hemingway, entretanto nao ha documentacao para defender essa declaracao,
o que cria um efeito de que a palavra da tradutora e valida por ser ela
quem e: conhecedora da obra e do autor. Sua morte e envolta em misterio,
embora existam rumores de que ele fosse alvo da policia secreta da
Franca, da Noruega, dos EUA, da URSS e da Alemanha. Em 1946 da-se a
dramatica historia de Havana, onde Straka esperava por Caldeira para
entregar pessoalmente o capitulo final de seu ultimo livro (ONDT).
Straka e morto antes que pudesse entrega-lo e a historia e tida como uma
fabricacao destinada a aumentar as vendas do romance--mesmo que o autor
tenha desaparecido desde entao. Segundo as notas de Eric na marginalia,
instruindo Jen sobre o autor, tambem tinha fama de ser muito cioso de
seu trabalho, replicando publicamente os que interpretaram
'incorretamente' textos seus, como se evidencia em uma carta
(um dos itens avulsos dentro do exemplar de O Navio de Teseu) que enviou
para um certo senhor Grahn, cineasta que adaptou um de seus livros.
Straka gere o espaco associado a sua producao que, mesmo a revelia do
autor, se canoniza ao virar filme. E ele gere tambem o espaco canonico
com o mesmo cuidado, por exemplo, privilegiando a relacao com um
trabalho de traducao especifico. A traducao faz parte da instancia
inscricional, na medida em que o trabalho com a lingua e partilhado
ainda no processo de criacao, antes da circulacao publica, nos ritos
geneticos editoriais. F.X. Caldeira e essa voz que, ao prefaciar e
anotar no rodape, ganha espessura e da espessura ao autor. Conta, por
exemplo, que Straka gostava de ouvir Carmina Burana, uma interpretacao
musical de Carl Orff da classica colecao de poemas, enquanto escrevia,
rito genetico nao escrituristico que mais tarde tambem foi adotado pela
tradutora as entidades ficcionais de S. tambem tem seus ritos geneticos.
Um espaco associado ficcional se desenvolve, para nos, leitores, como
espaco canonico. A propria existencia de um tradutor desse autor
funciona como espaco associado--ficcional que produz efeitos no texto
ficcionalmente autoral e, portanto, no texto nao-ficcionalmente autoral
de que e um componente.
F. X. Caldeira conta em seu prefacio de O Navio de Teseu que era a
pessoa responsavel pela traducao das obras de Straka, e assim como
acontece com o autor, tudo o que sabemos sobre Caldeira esta nas margens
das paginas do livro, como informacao dada por um dos
personagens-leitores, Eric, e nos diversos papeis avulsos. A Figura 2, a
seguir, mostra a formalizacao material desse recurso:
Por essa colecao de materiais associados ao texto de Straka,
sabemos que Caldeira trabalhou com ele por mais de duas decadas como o
unico tradutor de treze de seus romances--comecou quando chegou a Nova
York entre 1923 e 1929, onde trabalhou com Straka e Lewis Looper. Straka
e Caldeira mantiveram um relacionamento profissional de longa data
conduzido inteiramente por correspondencia (embora, as vezes, houvesse
suspeitas por parte dos estudiosos literarios de serem uma so pessoa).
Inicialmente, Jen e Eric, personagens de S. que leem O Navio de
Teseu e tentam desvendar os misterios sobre o autor, acreditam na
suposicao popular de que o 'F' em 'F.X. Calderia'
fosse de 'Francisco' ou 'Filip' (o nome variava
conforme a fonte). Entretanto, quando Jen investiga a lista de
passageiros durante o tempo em que se sabia que Caldeira estava em Nova
York (entre 1923 e 1929), nenhuma evidencia de 'Francisco' ou
'Filip' Xabregas Caldeira foi encontrada, mas havia uma
'Filomela'--identificada como uma tradutora que esteve a bordo
do navio Imperia (e sabemos disso porque Jen escreve as informacoes nas
margens do exemplar). Assim, descobrimos que F.X. e Filomela Xabregas
Caldeira, uma tradutora profissional brasileira fluente em varios
idiomas. Atraves das notas deixadas em O Navio de Teseu, descobrimos
tambem que, depois do que aconteceu em Havana, Caldeira permaneceu em
Nova York por dez anos, esperando que Straka estivesse vivo e fosse
capaz de decodificar as pistas deixadas por ela em O Navio de Teseu e ir
ao seu encontro. Sem nenhum sinal em uma decada, Caldeira voltou ao
Brasil. Depois de algum tempo, fingiu sua propria morte em Fiera Nova em
1964, com a ajuda de terceiros, e comecou a viver com um novo nome:
Ermelinda Pega.
Em meados da decada de 1970, Jean-Bernard Desjardins, um dos
criticos que analisam os trabalhos de Straka, compondo a miriade de
retomadas que canonizam a obra de Straka, localizou Caldeira e lhe
entregou um envelope contendo o decimo capitulo faltante de O Navio de
Teseu envelope que ela nunca abriu. Morreu dormindo, depois de varios
dias de despedidas e de deixar seus assuntos pessoais em ordem. Algo
muito suspeito que, contado pelos dois estudantes que dialogam
cautelosamente inscrevendo-se nas paginas de um livro, produz um efeito
de verdade lastreado pelo presente que suas notas instauram em relacao a
esse passado que investigam. E impossivel ler O Navio de Teseu sem ler
suas conversas sobre O Navio de Teseu, seu autor, seus misterios
'associados'.
Nesses termos, Eric tem uma funcao autoral pungente: ele dispara,
com suas anotacoes--que funcionam, a principio, como uma garrafa jogada
ao mar--, a possibilidade de uma interlocucao que, no fim das contas, e
o que confere interesse ao texto de Straka, o qual, por sua vez, e so o
disparador do texto de Eric, co-enunciado por Jen e que conduz os
leitores a O Navio de Teseu.
Seu nome completo e Nicodemus John Husch. E ele quem escreve pelas
margens (com as letras bastao) do livro em dialogo com Jennifer Heyward
descobrimos com o tempo que ele tem escrito no exemplar de O Navio de
Teseu da biblioteca de uma escola secundaria desde os 15 anos. Eric esta
sendo perseguido e deve resolver os misterios sobre a identidade de
Straka antes que seu velho professor, o Dr. Moody. Ele frequentou a
Pollard State University (universidade em cuja biblioteca Jen encontrou
o livro) como estudante de posgraduacao, mas apagaram-se seus dados numa
represalia de Moody--e isso, como ele mesmo diz, apagou parte de si
mesmo.
Existem muitas conexoes entre o personagem S (de O Navio de Teseu)
e Eric, como o fato de ambos serem 'negligenciados' ou
invisiveis, as pessoas passam por eles e nao os veem, ou nao se importam
com suas existencias. Alem disso, parte das experiencias de vida de Eric
sao apagadas com o tempo, modificadas com camadas de outras memorias,
enquanto a memoria de S, parte de sua vida, esta apagada quando o
encontramos no inicio do romance de Straka. Como S, Eric assume outra
identidade usando o cartao de identificacao de Thomas Lyle Chadwick para
entrar na biblioteca da universidade, enquanto S assume muitas
identidades nos primeiros capitulos do romance, vestindo roupas de
terceiros. Eric tambem menciona fazer uma Roda de Eotvos quando estava
no ensino medio, um artefato utilizado para a localizacao de coordenadas
geograficas que, no romance, e utilizado para desvendar os codigos
deixados nas notas de rodape escritas por Caldeira para Straka.
Sua interlocutora na marginalia, e, portanto, coenunciadora na
instauracao do presente que leva os outros leitores a retomar a obra de
Straka, e Jennifer, uma estudante de Literatura em seu ultimo ano de
graduacao, que trabalha (quando encontra o exemplar rabiscado por Eric)
na biblioteca da Pollard State University. E ela quem o ajuda a resolver
o misterio de V.M. Straka. Trabalhando juntos, resolve seu proprio
misterio sobre Eric e sobre si mesma. Ela menciona ter feito um curso
sobre Ciencias da Informacao e Biblioteconomia durante a graduacao, o
que a ajudou a se tornar uma pesquisadora muito habil. Esta perto de se
formar na faculdade, mas nao tem planos futuros--exceto o de seu pai,
que a esta empurrando para um cargo na area de marketing.
Ela parece querer se libertar de seu passado e Eric e a unica
pessoa que a chama de 'Jen'--ha tambem a versao de si mesma
que ela chama de Jenny-EmPerigo' que surgiu apos seu
desaparecimento aos 7 anos, como explica em sua carta a Eric (tambem
anexada entre os tais itens avulsos). Ela conhece Eric depois que
escreve em seu livro esquecido na biblioteca do campus onde trabalha--o
que se transforma em uma correspondencia diaria entre os dois. No
inicio, o relacionamento e sarcastico e espirituoso, com ela
frequentemente referindo-se a Eric como arrogante, mas, depois de um
tempo, Jen comeca a considera-lo como um verdadeiro amigo e o sentimento
parece evoluir para algo mais. No decimo capitulo do romance de Straka,
Jen e Eric estao morando juntos e parecem felizes e seguros--e sabemos
disso porque ainda escrevem pelas margens, revisitando sua longa
conversa.
Sao personagens-leitores-autores na medida em que, estando no
objeto editorial S. como leitores de O Navio de Teseu, penetram essa
narrativa em busca de suas correlacoes com o autor Straka e, vivificando
um passado que esta e nao esta na narrativa sobre a personagem S, dao
vida a seu presente que nao cessa de se refazer: reescrevem a historia
vivida na historia que vivem ... Sao, em alguma medida, parte autoral
dos conteudos materialmente formalizados.
Deve-se notar que, ao apresentarmos elementos biograficos e da
circulacao publica dos autores, nao buscamos explicar seus trabalhos a
partir de suas vivencias, mas levar em consideracao, da perspectiva
discursiva, que a demarcacao (ou instituicao) de um lugar de fala
pressupoe dados da historia dessas pessoas. A instancia pessoa e a
instancia escritor se relacionam nas manobras sob essas coercoes e se
materializam em trabalhos inscricionais marcados tambem por elas.
Nessas bases, temos uma questao maior no caso em tela. Maingueneau
(2006, p. 136, grifos originais) afirma que "[...] a denominacao
'pessoa' refere-se ao individuo dotado de um estado civil, de
uma vida privada", sendo assim passivel de uma biografia, e por
termos mais quatro autores, ainda que ficcionalizados, possiveis em S.,
V.M. Straka, F.X. Caldeira, Eric Husch e Jennifer Heyward, devemos
tambem procurar em suas figuras as instancias de autoria. Dados como a
data da morte, ser associado a crimes e seu gosto por Carmina Burana
durante seu processo de escrita constituem a instancia pessoa de Straka,
assim como o fato de ser brasileira e amiga por correspondencia de
Straka se inserem na instancia pessoa de Caldeira. Ou o fato de ter
feito a leitura de obras de Straka desde a adolescencia e ter comecado a
pos-graduacao na PSU serem dados que se constituem a instancia pessoa de
Eric, e ser graduanda de Literatura e nao ter uma boa relacao com os
pais formam a instancia pessoa de Jen. Os dados biograficos que
atravessam o que seria 'o texto literario em si' sao, como
espaco associado, um efeito de veridiccao e, como espaco canonico,
elementos centrais na fabulacao de maior interesse: o cruzamento das
temporalidades narradas.
Designando o ator que define sua trajetoria na instituicao
literaria, a instancia 'escritor' abrange outros aspectos de
Abrams e Dorst: para o primeiro envolve os filmes e series de sucesso
que produziu, roteirizou e dirigiu, e a imagem de sucesso que tem na
industria em que trabalha; para o segundo, envolve os premios literarios
que suas obras ganharam e as antologias de que participou, a concessao
que faz para acompanhar a esposa e que o leva a ser professor numa dada
instituicao ... Do mesmo modo, a fama de idiossincratico e influente, de
extremamente cioso de seu trabalho, sua lingua ferina com os criticos e
os misterios e polemicas envolvendo Straka podem ser categorizados como
constitutivos de sua instancia escritor.
Seja como for, e importante notar que nos casos de Straka, como no
caso de Caldeira, Jen e Eric, as instancias existem ficcionalmente,
estao dentro de S. (um romance que abriga outro romance?), e a
possibilidade de falarmos em autoria nestes casos se da pela perspectiva
aqui assumida, como uma forma de gestao. Estamos considerando que se
trata de um funcionamento que pode ser ficcional--Straka, por exemplo, e
um personagem, mas, como personagem, e principalmente um
autor--'o' autor em questao. Como foi dito, rompido o selo da
caixa (que nao se reconstitui mais), nenhum outro nome de autor esta
inscrito no objeto editorial a ser lido, manuseado.
Quanto ao conjunto de atos realizados por um sujeito em vista de
produzir um enunciado, que aponta para a instancia
'inscritor', comentamos aqui alguns dados de entrevistas a
comecar com a entrevista em que Dorst conta que "A coisa toda
comecou com a ideia de J.J. de contar uma historia de amor que se
desenvolve em notas escritas a mao nas margens de outro livro, no qual
os dois personagens fazem trocas" (In: Doretto, 2017, p. 26), e que
tambem teve que deixar para tras seus antigos rituais de escrita para
conseguir cumprir um cronograma com o tanto que havia para ser feito
dentro de pouco tempo: "Com S. havia tanto trabalho a fazer em tao
pouco tempo, que eu senti como se tivesse que abrir mao do ritual de
vez: eu tinha que me treinar para escrever em qualquer lugar, a qualquer
momento e sob qualquer circunstancia--ou pelo menos acreditar que eu
podia fazer isso" (In: Doretto, 2017, p. 37).
E tambem podemos encontrar fatos que se inserem nesta instancia
quando Caldeira, tradutora, fala de Straka: "[...] o mais agil dos
escritores, cujo dominio de variados idiomas e abordagens literarias era
exibido livro a livro, ate mesmo entre um capitulo e outro", cuja
obra "[...] com frequencia incluia segredos, conspiracoes e
acontecimentos obscuros" (Abrams & Dorst, 2015, p. iv). O
trabalho com referencias e codigos que Caldeira faz nas notas de rodape
de O Navio de Teseu tambem se insere na instancia inscritor, assim como
as relacoes e referencias que Eric e Jen vao apontando na marginalia.
Dorst e Abrams inscreveram o que cada um desses participes inscreve.
Parece que, durante a leitura das duas (ou tres?) historias
entrelacadas, alem da que se desenrola, sempre ha um dialogo entre o que
e escrito por Caldeira e os primeiros comentarios de Eric, feitos (com a
aparencia) de lapis e letra bastao, que acrescenta informacoes, dialoga
com outros livros, de Straka ou nao, e questiona o uso de palavras.
Discute estilo, no limite--um fundamento importante de todo o misterio a
resolver.
Maingueneau (2002, p. 79, grifos originais) diz que "[...] a
distancia que assim se estabelece entre co-enunciador e texto escrito
abre espaco para um 'comentario' critico ou para analises: o
leitor pode sondar o texto, comparar certas partes, de forma a elaborar
interpretacoes", este e exatamente o movimento que acontece quando,
por exemplo, Eric, esse leitor anterior a nos e simultaneo (so o vemos
ler na condicao de leitores de suas anotacoes), marca uma sentenca do
Prefacio que comenta sobre o interesse de o publico querer saber mais
sobre Straka (quem era realmente, seu rosto) do que se ocupar com o
estudo do que ele escreveu, e questiona: "Mas o foco no Escritor e
nao na Obra desonra ambos" (Caldeira, p. vii), seguido pelo
questionamento: "Por que, quando a Q. da identidade e essencial nos
proprios livros? (Especialmente ondt, sapatos alados, coriolis)"
(Eric, p. vii). Aqui flagramos a tensao entre as instancias, quando uma
nao pode se dissociar da outra na atribuicao do valor de obra a um
escrito. S. discute assim fortemente a instancia autoral, no jogo
material que faz: seu midium impoe a reflexao sobre quem gere esse
midium.
Podemos pensar, a titulo de esclarecimento final desses modos de
fazer e de ser condicionantes dos modos de dizer, em representacoes
graficas do entrelacamento das instancias da paratopia. Poderiamos ter
uma representacao grafica dos entrelacamentos das instancias de Straka,
cuja circulacao da obra esta ligada principalmente ao seu estilo de
escrita, mas tambem por seus conteudos, de sua condicao como autor e do
fervor ao redor de sua identidade--por isso as instancias escritor e
inscritor seriam ligeiramente maiores do que a instancia pessoa. Note-se
que isso se constroi na sobreposicao das informacoes: a que e dada por
Eric, de que pouco se sabe sobre a identidade pessoal de Straka, e a que
e dada por ele na sua interlocucao com Jennifer e com o proprio livro O
Navio de Teseu, que coleciona muitos dados biograficos. A Figura 3, a
seguir, mostra a formalizacao material desse recurso:
A paratopia e o clinamen que torna possivel o no e que esse no
torna possivel; nao se trata de alguma separacao 'inaugural'
que mais tarde se desfaria diante da obra, mas de uma diferenca ativa,
incessantemente retrabalhada, renegociada, diferenca que o discurso esta
fadado tanto a conjurar como a aprofundar (Maingueneau, 2006, p. 137,
grifos originais).
Dessa perspectiva, o autor se define por nao deixar em standby
nenhuma das instancias que, em rebatimento reciproco, dao a unidade da
figura que se constroi de si. Nenhum dos aspectos sociais,
ritualisticos, pessoais que fazem dessa voz individualizada legitimadora
de uma obra e efetivamente estavel, estabilizado pela formalizacao
material. Ela propria, alias, enseja formas de recepcao que mostram o
quanto tudo esta sempre sendo retrabalhado, renegociado. De outro modo,
morre a obra e morre o autor. A autoria e, enfim, a gestao desses modos
de ensejar, de conjurar, como diz Maingueneau em seus estudos sobre o
literario, efeitos garantidores da pertenca a uma Opus.
Consideracoes finais
Como foi dito, estas reflexoes pretendem contribuir para um avanco
nos estudos sobre autoria ao participar da sistematizacao de uma
metodologia analitica que se define a partir da mediacao editorial,
diretamente ligada a condicao material da producao e da distribuicao dos
dizeres. As nocoes que apresentamos complementam-se e permitem apreender
um regime de funcionamento, uma genese que nao cessa de se produzir como
efeito de sentido. No caso analisado, temos um objeto editorial que poe
em relevo isto: a mobilidade dos elementos, a fluidez dos componentes
daquilo que aparece, para um publico final, como consagrado e
definitivo. No modo como isso se da em S., podemos falar de uma
'autoria exponencial', uma autoria cuja variavel definidora
aponta para uma indeterminacao enquanto tambem aponta para uma
relevancia potencial.
A partir dessa categoria, podemos estudar fenomenos contemporaneos
importantes como as autobiografias ficcionais (Leonel & Segatto,
2014) e apagamentos de dados do expediente editorial, como e o caso,
aqui, em que os tradutores para o portugues brasileiro nao aparecem em
lugar nenhum de S. e a existencia de uma tradutora na trama produz um
efeito de esquecimento de que todos esses materiais --inclusive os
avulsos e anexos--traduziram-se do ingles: uma fabulacao que precisa do
apagamento do trabalho editorial efetivamente feito--do imenso trabalho,
inclusive caligrafico!
Como vetor de sensibilidade, todo objeto editorial pertence a uma
matriz de sociabilidade que nele se celebra. S. se poe como uma especie
de celebracao do mundo tipografico e analogico e, para essa celebracao,
convoca todo um universo digital (com seus dispositivos e praticas) cuja
logica se impoe como forma de recepcao do livro. Possivelmente um objeto
paradigmatico que rendera, ainda, muita investigacao.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v40i2.40988
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Thoughts on S. (2016). Eric and Jen: two different personality
types. Recuperado de https://anabramsfan.wordpress.com/
Received on December 13, 2017.
Accepted on June 4, 2018.
License information: This is an open-access article distributed
under the terms of the Creative Commons Attribution License, which
permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium,
provided the original work is properly cited.
Luciana Salazar Salgado * e Vitoria Ferreira Doretto
Departamento de Letras, Universidade Federal de Sao Carlos, Rodovia
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Brasil. * Autorpara correspondencia. E-mail:
[email protected]
Caption: Figura 1. Pagina inicial do blog A Ilha de Obsidiana. Este
blog pertence a um brasileiro que se dedica a traduzir os materiais
associados 'primeiros' disponibilizados em ingles sobre
'S.', entre eles ha a traducao do artigo Santorini Man: The
StrakaConnection(s), encontrado no site Eotvos Wheel. Fonte: Os autores
(captura de parte da tela inicial do site
http://ilhadeobsidiana.wordpress.com).
Caption: Figura 2. O Navio de Teseu e todos os papeis avulsos.
Fonte: Os autores.
Caption: Figura 3. A marginalia em que conversam os
personagensleitores-autores Eric e Jen. Fonte: Os autores.
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