A Perspective aesthetic-political about nature and violence in Justine or the misfortunes of virtue by Marquis de Sade/Uma perspectiva estetico-politica sobre natureza e violencia em Justine ou os infortunios da virtude, de Marques de Sade.
Santana, Jorge Alves ; Borges, Luana Silva
A Perspective aesthetic-political about nature and violence in Justine or the misfortunes of virtue by Marquis de Sade/Uma perspectiva estetico-politica sobre natureza e violencia em Justine ou os infortunios da virtude, de Marques de Sade.
E cruel, nao ha duvida, pintar toda serie de desgracas que afligem
uma mulher boa e sensivel, respeitadora da virtude, e, por outro lado, a
torrente de prosperidades concedida aos que esmagam e atormentam a dita
mulher (Sade, 2007, p. 12).
O que se deseja quando se goza? (Simone de Beauvoir, p. 15, 1955)
O homem civilizado esconde de si mesmo a extensao de sua
subordinacao a natureza. A grandiosidade da cultura, a consolacao da
religiao absorvem suas atencoes e conquistam sua fe. Mas, basta a
natureza dar de ombros e tudo cai em ruinas (Plaglia, 1992, p. 21).
Introducao
Em tempos em que o mercado livresco globalizado traz, a
leitores-consumidores vorazes, best-sellers nos quais fervem cenas
eroticas sadicas, retomar a obra de Donatien Alphonse Francois de Sade,
o Marques de Sade, e importante para um pensamento academico que
pretenda, seriamente, problematizar o erotismo e a violencia. Como
nossas subjetividades sao construidas a partir da relacao que temos com
o prazer, com a dor e com o erotico? Em que medida os corpos aceitam, no
sexo, a violencia? E se eles a aceitam, ou ate a desejam, por que o
fazem? Eles realmente a querem?
Sob a luz destes questionamentos, faremos uma leitura da obra
Justine ou os infortunios da virtude, lancada em 1791, mas escrita por
Marques de Sade, durante o carcere, em 1787. Este fora um dos tantos
anos que o autor--nascido no palacio de La Coste, em Paris--permanecera
na cadeia. Encarcerado em prisoes e sanatorios por um total de 27 anos
de sua vida, sempre em decorrencia de condutas libertinas, orgias e
dividas, o marques viu, na intelectualizacao e na reflexao escrita sobre
um erotismo explicito e sobre praticas sexuais violentas, uma forma de
ocupar o tempo lento da clausura, alem de uma maneira de fazer valer, a
partir de seus romances e textos dramaticos, a critica a sociedade de
seu tempo, profundamente marcada pelos preceitos cristaos e pelos
metodos de um racionalismo exacerbado.
Ethos de uma epoca e deslocamentos politico-culturais necessarios
Sade era um aristocrata que via, na Franca prerevolucionaria do
final do seculo XVIII, a derrocada do poder absolutista de sua classe e
a consequente ascensao da burguesia iluminista. Nesse contexto
historico, como aponta Simone de Beauvoir (1955) em ensaio destinado ao
estudo da vida do autor, e comum que os 'rebentos desta classe
decadente', que ja nao possuem muita 'influencia real sobre o
mundo', tentem 'ressuscitar simbolicamente, no segredo das
alcovas, a condicao de que conservam a nostalgia, a do despota feudal e
soberano'. Beauvoir nao ve em Sade, pois, um revolucionario e, nem
mesmo, um revoltado. Ora, segundo ela, aos 23 anos ele e aquele quem
aceita, obediente ao pai, uma esposa que nao o agrada. Ele nao encara,
pois, outro destino alem do que hereditariamente lhe esta indicado: sera
marido, pai, marques, capitao, castelao, tenente-general. Beauvoir,
neste contexto, ainda reflete:
O que se deseja quando se goza? Que tudo o que nos cerca apenas se
ocupe de nos, pense em nos, se interesse apenas por nos ... nao ha homem
que nao queira ser despota quando ... A embriaguez da tirania leva
imediatamente a crueldade, porque o libertino, molestando o objeto de
que se serve, experimenta todos os encantos que um individuo nervoso
prova ao fazer uso de suas forcas; domina, e tirano. Na realidade, e uma
proeza bem mesquinha chicotear, mediante retribuicao ajustada, algumas
mulheres; e que Sade atribua a isso tamanha importancia e um fato que o
poe logo em pauta. Surpreende que fora das paredes de sua 'pequena
casa' ele nao pense de forma nenhuma em fazer uso de suas forcas;
nao se lhe percebe nenhuma ambicao, nenhum espirito de iniciativa,
qualquer vontade de poder e nao estou mesmo longe de imagina-lo covarde
(Beauvoir, 1955, p. 30, grifo da autora).
Essa critica, feita por Beauvoir, e inspirada no contexto historico
frances do seculo XVIII, que levou ao declinio politico da aristocracia
feudal, classe da qual Sade e oriundo. Entretanto, como a propria Simone
de Beauvoir deixa antever em sua escritura, analisar a vida de Sade e
seus posicionamentos politicos e filosoficos apenas por este prisma,
lancando-o ao fogo, condenando-o, e tarefa improdutiva e, mesmo,
redutora e erronea. Como aponta tambem Daniel Serravalle de Sa,
pesquisador brasileiro na University of Manchester, e comum--ademais, e
salutar--que os estudiosos de Sade nao o encerrem em pareceres
conclusivos, dado que ha ambiguidades entre sua vida e obra, pois a
figura do marques sempre foi complexa e camaleonica (Sa, 2008).
Se, por um lado, ele parecia fazer questao de conservar o seu solar
e suas terras, como Beauvoir continua a nos explicar, lugares onde
sustentava seus prestigios e deleites sexuais, por outro, apos a
Revolucao Francesa, ele se diz republicano e, teoricamente, e favoravel
a abolicao da propriedade. Todavia, e necessario salientar que, se o
autor ja nao mais se ajustava ao antigo regime, tampouco a nova esfera
em ascensao o compraz. A verdade, como explica Daniel Sa, e que a
originalidade do pensamento sadeano advem do fato de que o autor
problematiza, a um so tempo, as morais iluministas, dos republicanos
revolucionarios, e as convencoes religiosas, que possuem profundos
rancos feudais. Ele joga "[...] um campo contra outro, contestando
a existencia de Deus e da moral dos bons sentimentos a uma so vez"
(Sa, 2008, p. 369).
Para que se entenda a obra de Marques de Sade no campo dessas
negociacoes discursivas e das disputas filosoficas de seu tempo, e
importante deixar claro que, em fins do seculo XVIII, pensadores como
Rousseau ou Voltaire, por exemplo, faziam questao de priorizar a bondade
inata ao homem. Eles creditavam o mal e a corrupcao dos bons sentimentos
a civilizacao, repleta de organizacoes sociais corruptoras. Aos seres
humanos, por sua vez, atribuiam uma 'educacao natural', uma
'harmonia com a natureza' e uma 'benignidade
constitutiva'. Havia, pois, um otimismo antropologico que
sustentava a benevolencia como valor imanente. Por outra esfera, havia
tambem toda sorte de pensadores cristaos "[...] que postulavam a
impossibilidade de o homem encontrar a salvacao sem a ajuda do principio
divino" (Sa, 2008, p. 369). Eram, pois, filosofos da religiao que
fundamentavam suas morais em principios transcendentes.
Diante deste contexto historico-filosofico, e nos retirando aqui de
um debate sobre os camaleonicos posicionamentos politicos e pessoais do
marques, discussao pouco proficua a analise literaria que pretendemos
apresentar, cabe-nos perguntar: o que afinal faz de Sade um homem
importante ao pensamento ocidental? E curioso como o transformaram, de
sujeito marginalizado por uma mudez avassaladora sobre sua obra,
silencio que perdurou por mais de um seculo, em figura quase profetica:
antecipadora, e vanguardista, de pensamentos que mais tarde apareceriam
nas obras de Freud ou Nietzsche.
Como explica Sa (2008), o marques foi vilificado ate o final do
seculo XIX e apenas retomou sua dignidade com a ascensao da Psicologia.
Segundo o autor, Richard Kraft-Ebing iniciou certa retomada de interesse
pela obra sadeana (que ate entao era esquecida e jamais aparecia em
compendios que se referiam as ideias e a sensibilidade do seculo XVIII)
no livro Psychopathia sexualis ali se cunha o termo sadismo, que designa
a perversao sexual em que a satisfacao erotica advem de atos de
violencia fisica ou moral infligida ao parceiro.
Ora monstro, ora profeta, ora odiado por seus agressores e ora
aclamado por seus arautos, o fato e que esse homem jamais deve ser
entendido com base nestes maniqueismos. Deve-se entende-lo, sobretudo,
como sujeito fruto de um periodo historico especifico: se ele jamais se
pretendeu revolucionario em sua vida politica cotidiana, como diz Simone
de Beauvoir, ele soube se reinventar, na escrita, como critico contumaz
de sua epoca. Era um autor ironico que elaborava verdadeiras parodias
dos comportamentos de seu tempo, lancando criticas tanto ao campo de
saberes cristaos quanto as esferas discursivas iluministas que
creditavam ao homem a bondade e que viam apenas beleza e harmonia no
estado natural.
A outra originalidade sadeana, para alem dessa dupla critica das
morais religiosas e racionalistas, e que ele lanca seu olhar caustico
sobre os costumes a partir de uma visao pornografica: em tempos frigidos
nos quais se puniam os prazeres e nos quais se tinham aversoes a ideia
de uma Natureza vivida, corrosiva e incontrolavel, nesses tempos em que
a sociedade o espreita, ele ve no erotismo e no imaginario a fuga
necessaria, sua unica possibilidade de vida. Se ele descobre, como
aponta Beauvoir (1955), que "[...] entre sua existencia social e os
prazeres individuais [...]" seria "[...] impossivel uma
conciliacao [...]", ele passa, entao, a reivindicar-se em prol
destes ultimos, em prol dos deleites no sexo: tal fato lhe custa a
liberdade, condena-lhe a rejeicao e ao esquecimento, mas tambem (e
paradoxalmente) lhe vale a importancia ao pensamento ocidental. Ai esta
sua revolucao.
Uma vez explicitadas as originalidades atribuidas a Marques de
Sade, bem como o contexto historico e filosofico deste autor erotico,
vamos a obra Justine ou os infortunios da virtude. Nela, o escritor
prima por escrever cenas de sexo grupal, esmera-se na descricao
detalhada dos mais sordidos requintes sexuais e das mais variadas formas
de penetracao, deleita-se ao esmiucar sacrificios e sacrilegios durante
o ato sexual, nao abrindo mao de um retrato do sexo como algo
violento--retrato que chega a ser, propositadamente, caricato, parodico,
grotesco: os mais inusitados e variados desejos, da sodomia a coprofilia
ou flatofilia, sao revelados aos leitores.
Aqui queremos responder a algumas perguntas basicas. A primeira
possui carater especifico e aborda a personagem central: por que Justine
se mantem em condicao de violencia e em que medida o seu corpo a
internaliza? O segundo questionamento tem carater mais geral, tendo o
intuito de abranger o Zeitgeist rebelde da epoca: por que o erotismo e o
retrato dos desejos sexuais mais crueis e perversos serviram de escape a
Sade e a outros pensadores de seu tempo, que viam na libertinagem a
afronta? Quais eram as condicoes desta epoca, deste periodo a que chamei
de frigido, que fizeram existir romances que ressaltavam o trunfo do
vicio com relacao a virtuosidade sentimental? Vamos, agora aos
desdobramentos teoricos, realizados com base no estudo do romance, que
pretendem responder a tal problematizacao.
Justine: uma estilizacao parodica seria
O livro Justine ou os infortunios da virtude apresenta a saga
tortuosa da personagem homonima, mulher devotada a religiao e aos
preceitos cristaos, que sempre se refere a 'virtude', ao
'ser supremo' ou a 'providencia divina' como os
condutores basilares de sua vida. Justine e irma de Julieta, e ambas,
que viviam confortavelmente em um convento, tem de se separar quando
ficam orfas de pai e mae. Julieta e apresentada na narrativa, ao
contrario da irma, como mulher voltada a 'libertinagem',
'perversa' e 'sem principios religiosos'. Como era
impossivel as duas meninas permanecerem juntas, devido ao estilo de vida
a que ambas se propunham, restou-lhes a separacao, ocorrida quando a
mais velha, Julieta, tinha 15 anos de idade. Ao longo da vida, suas
trajetorias sao distintas. Julieta se enriquece ao seduzir homens, ao se
prostituir e ao praticar roubos, assassinios e abortos. Transforma-se em
Condessa de Lorsange. Certo dia, ela e seu marido, o senhor de Corville,
resolvem, apos um passeio, passar a noite em um albergue.
Na estalagem em que estao, chegam alguns viajantes. Dentre eles,
uma prisioneira com rosto casto e virtuoso que era acusada por tres
crimes assassinato, roubo e incendio--e estava sendo levada a Paris,
onde seria confirmada sua sentenca de morte. Interessados naquela figura
com aparencia 'meiga' e 'aspecto honestissimo'
(verdadeiras descricoes da tipica heroina romantica: pura, casta, com
tez branca e rosada), a Condessa de Lorsange e o senhor de Corville
pedem-na que conte sua historia. No tempo de uma noite, ouvem-na dizer
de todos os infortunios, desgracas e injusticas por quais passou.
Tal moca--que se escondeu sob a alcunha de Teresa para zelar pela
honra e pelo nome de sua familia--sempre buscou os ensinamentos
cristaos, almejando a virtude e a castidade. Todavia, a vida virtuosa
leva-a a uma realidade de exploracao, subserviencia, dor, suplicios,
torturas e desespero. Ao final da narrativa de Teresa, ja ao amanhecer,
a Condessa de Lorsange descobre que aquela mulher, alvo de tantas
desgracas, e sua irma Justine, desaparecida desde a epoca da
adolescencia de ambas, quando se separaram apos sairem do convento.
Se o inicio do romance traz como foco narrativo um 'autor
onisciente intruso', em terceira pessoa, logo as primeiras paginas
ha uma mudanca crucial: precisamente a partir da pagina 27--se
considerarmos a edicao portuguesa publicada pela editora Bertrand--, e
Justine, protegida sob o nome de Teresa, que contara sua propria
desventura, sendo a narradora-protagonista ao relatar, a irma e ao
marido desta, sua desdita.
Sobre a funcao destes tipos de narradores, Norman Friedman (2002),
no ensaio O ponto de vista na ficcao, diz que a onisciencia intrusa
caracteriza-se pelo fato de o narrador ter um ponto de vista totalmente
ilimitado (a estoria pode ser vista a vontade, por um ou por todos os
angulos) e, ademais, pelo fato de ele fazer intromissoes e
generalizacoes autorais sobre a vida, os modos e as morais. Desta feita,
o narrador e presenca garantida e explicita na trama, fazendo
interferencias opinativas que podem ou nao estar diretamente
relacionadas com a fabula a mao.
E o que faz a instancia narrativa, na situacao inicial do romance,
criada por Marques de Sade: logo em um primeiro momento, o leitor
percebe que o livro, para alem de uma historia ficcional, traz
posicionamentos politicos e filosoficos atinentes ao seu tempo
historico, isto e, traz concepcoes ideologicas e autorais, camufladas em
um discurso ironico e imiscuidas ao teor ficticio da producao. No
excerto seguinte, por exemplo, notamos que Marques de Sade lanca, por
meio das generalizacoes do autor onisciente intruso, sua critica ao
racionalismo que prega a benevolencia natural ao homem, bem como sua
censura ao cristianismo que dita a necessidade de sofrimento e de
expiacao de pecados. Vejamos:
E cruel, nao ha duvida, pintar toda serie de desgracas que afligem
uma mulher boa e sensivel, respeitadora da virtude, e, por outro lado, a
torrente de prosperidades concedida aos que esmagam e atormentam a dita
mulher. Mas se for bom o resultado da descricao de tais fatalidades,
sentir-se-a algum remorso de a termos realizado? Que mal pode haver em
se escrever uma coisa cujo resultado, para o sabio que a leia
frutuosamente, seja a utilissima licao da submissao ao poder da
Providencia ou a fatal advertencia de que, o mais das vezes, e para nos
ensinar o caminho do dever, que o Ceu atinge, mesmo ao nosso lado, a
criatura que sabemos ter cumprido melhor o seu dever? Tais sao os
sentimentos que vao presidir aos nossos trabalhos e e na consideracao
destes motivos que ao leitor pedimos indulgencia perante os sistemas
erroneos colocados na boca das nossas personagens e das situacoes muitas
vezes fortes que, por mor da verdade, pintamos ante seus olhos! (Sade,
2007, p. 14).
Apesar de sugerir, acima, que e escritor quase 'a
servico' da apologetica crista, basta uma leitura atenta do texto
sadeano para percebermos que tal estrategia nada mais e do que uma
ironia deste narrador intruso. Ora, a virtuosa e religiosa Justine nao
faltam desgracas na vida, pintadas por Sade com riqueza de detalhes e
sordidez: dos arredores de Paris as florestas mais longinquas, caminhos
por onde passa essa personagem que esta em constante fuga de seus
agressores, Justine se encontra com os mais variados tipos
sociais--aristocratas, burgueses, padres, sacerdotes, governantes,
medicos--e todos eles lhe fazem mal, sao criminosos ou libertinos.
Que Sade pinte tais desventuras e critique cada nicho social de seu
tempo, cada classe que compunha as altas rodas da sociedade--da
aristocracia ao clero, da burguesia ascendente e avarenta aos condes
ociosos, da ciencia medica a crenca desmedida - apenas para provar que e
'necessaria' e 'sublime' a submissao a Providencia,
parece-nos pouco provavel. Ao contrario, o marques usa do discurso da
religiao e do discurso sentimental da bondade para ironiza-los, em
estilizacao parodica, a partir de uma protagonista que, ao segui-los,
apenas tem como recompensas os infortunios mais variados.
Justine se encontra com personagens como o negociante Dubourg,
contemplado pelo Governo com um posto de diretor-geral, e que, mesmo
rico, recusa-lhe ajuda. Ao fim, ele tenta estupra-la, mas, ante a
frigidez da moca que tinha entao 14 anos, ele nao consegue consumar
"[...] as mais perigosas arremetidas" (Sade, 2007, p. 33).
Logo depois, encontra-se com tipos como o agiota e avarento Du Harpin,
que deseja que ela, que trabalhava como arrumadeira de sua casa, ajude-o
em um roubo. Recebendo de Justine a recusa, e vingativo em decorrencia
do 'nao', Du Harpin culpa-a pelo surrupio de um anel,
levando-a a prisao.
Nas masmorras da Conciergerie, de onde so um novo delito poderia
salva-la, a protagonista conhece o bando de ladroes comandado por
Dubois. Eles incendeiam as celas e conseguem fugir. Escondidos em um
bosque, os quatro homens do bando desejam-na sexualmente e fazem a
seguinte proposta: Teresa (Justine) deveria os seguir, transformando-se
tambem em uma celerada; caso se recusasse, para se ver livre deles,
deveria satisfazer a cada um:
Se aceitasse voluntariamente [fazer sexo com os ladroes],
dar-me-iam uma moeda cada um para eu me ir embora e fazer o que
quisesse; se fosse necessaria a violencia, nem por isso as coisas
deixariam de ser feitas, mas, para a maior seguranca, seria, depois de
os ter feito, apunhalada e enterrada ao pe de uma arvore (Sade, 2007, p.
44).
A esta altura do romance, as descricoes dos atos sexuais grupais
passam a ser detalhadas e demoradas: a violencia ganha destaque. Cordeis
sao atados a Justine, seus seios e seu rosto sao espancados, ela e
obrigada a urinar em seus agressores, que sentem prazer diante dos
excrementos, objetos lhe sao arremetidos via anal. A jovem, por ironia
sadeana e por profunda abnegacao e crenca na palavra crista,
vangloria-se em seu discurso dizendo que, mesmo diante de tais
atrocidades, 'sua honra foi preservada', pois os quatro
homenzarroes fizeram com ela de tudo, mas nao romperam seu himen. Diante
de tal valorizacao, Coracao-de-Ferro, um dos bandidos que propoe a moca
que ela seja sua amante exclusiva, retruca-lhe:
--Mas reflecti: na indispensavel necessidade de perderdes o que
tanto prezais, nao seria melhor que o sacrificasseis a um homem disposto
a tornar-se vosso apoio e protector, em vez de vos prostituirdes com
todos?
--Mas por que nao se me oferecem outras solucoes?
--Porque estais em nossas maos, Teresa, e porque a razao do mais
forte e a melhor, ha muito tempo que
La Fontaine o afirmou. Nao achais--prosseguiu logo a seguir--que e
uma extravagancia ridicula essa de dardes, como dais, tao grande valia a
uma coisa tao futil? Como pode uma rapariga ter a simplicidade de crer
que a virtude esta dependente da maior ou menor largura de uma das
partes de seu corpo. Que importa aos homens ou a Deus que esta parte
seja integra ou desflorada? [...] Esta castidade quimerica, absurdamente
apresentada como virtude, longe de ser util a natureza e a sociedade,
nao passa afinal de uma teimosia repreensivel de que uma pessoa
inteligente como vos nao devia querer ser culpada (Sade, 2007, p.
49-50).
Aqui fica evidente que, quando a narrativa passa a ser comandada
por Justine, que conta em flashback sua propria historia, Marques de
Sade comeca a colocar na boca de outras personagens, que nao a
protagonista, a critica aos diversos discursos propalados pelo
cristianismo. Ora, como explica Norman Friedman, se do 'autor
onisciente intruso' para o 'narrador onisciente neutro'
declinam os comentarios pessoais e as valorizacoes autorais sobre os
modos e os costumes, ao mover-se para a categoria de
'narradores-personagens', sejam eles testemunhas ou
protagonistas, o escritor entrega seu trabalho ao outro: "[...]
muito embora o narrador seja uma criacao do autor, a este ultimo, de
agora em diante, sera negada qualquer voz direta nos procedimentos"
(Friedman, 2002, p. 175).
E por isso que o marques, de forma sagaz, imprime sua critica agora
nao mais pela ironia direta de um narrador intruso, mas pelas falas de
seus actantes, dizeres que quase sempre sao longos e carregam tons de
discursos politicos e filosoficos.
Ademais, Sade joga com sua narradoraprotagonista, parodiando, por
meio dela, a linguagem sentimental e crista profundamente em voga no
seculo XVIII. Ao leitor, pois, e impossivel a confianca total no relato
de Justine: pela propria caracteristica desta instancia narrativa, se se
considerar o que diz Friedman (2002) sobre o narrador-protagonista, o
'eu' que conta sua propria historia conta-a a partir de um
centro fixo, encontrando-se, devido a seu protagonismo, crucialmente
envolvido na acao e, por isso mesmo, possuindo poucas variedades de
fontes de informacao, pouca amplitude em seu relato, vez que esta
"[...] quase que inteiramente limitado a seus proprios pensamentos,
sentimentos e percepcoes" (Friedman, 2002, p. 177).
Assim, o marques, usando da fixidez de um relato uno, lanca seus
leitores a desconfianca e ao incomodo quanto a personagem: por que
Justine, mesmo se deparando amiude com agressores, insiste em confiar
nos homens? O discurso da benevolencia e da confianca passa entao,
quando manipulado por Sade, a ser parodico. A critica literaria Linda
Hutcheon diz que a parodia consiste na repeticao de um discurso feita
com distanciamento critico: uma distancia que permite a "[...]
indicacao ironica da diferenca no proprio amago da semelhanca"
(Hutcheon, 1991, p. 47-48) Segundo ela, a parodia, pois, faz com que o
artista "[...] fale para um discurso a partir de dentro deste
discurso" (Hutcheon, 1991, p. 58).
Daniel Serravalle de Sa, citando o estudioso Augusto Contador
Borges, tambem evidencia a estilizacao parodica em Sade. Segundo ele,
"[...] o marques, que foi leitor e critico voraz da producao
literaria de sua epoca, teria se servido do discurso do sentimento,
presente em inumeros romances nesse periodo, para promulgar suas ideias
libertinas" (Sa, 2008, p. 367).
Ha, em Justine ou os infortunios da virtude, uma ironia a partir
'de dentro' dos sistemas discursivos do romance sentimental:
das ideias de 'virtude', 'moralidade', 'boa
natureza', 'amor ao proximo cristao' emana uma voz
divergente e caustica. Essa voz e libertina, devassa, desautorizando a
moral sentimental a partir mesmo dos dizeres que tal moral poe em
movimento.
E por isso que, ao leitor, os retratos da benevolencia de Justine
se afiguram quase comicos, ja que Marques de Sade exagera na virtude
ingenua de sua personagem com o intuito de evidenciar o sofrimento por
qual ela passa, criticando assim, com mais crueza, os sistemas que a
regem. E por isso tambem que, diante desse tipo de narradorapersonagem
--parodia dos discursos religiosos em voga e da heroina romantica--, a
afronta explicita ao sistema, dita diretamente, so pode advir de outros
actantes, dos agressores de Justine.
Vemos tambem que faz parte da estrategia narrativa do marques
desenhar sua heroina de forma plana, conforme classificacao de E. Morgan
Forster em seu livro Aspectos do romance. Isso quer dizer que ele a
constroi "ao redor de uma unica ideia ou qualidade", fazendo-a
possuir "[...] um so aspecto encarado como dominante ou socialmente
mais evidente [...]" na narrativa (Forster, 1974, p. 53-54). Sade a
constroi sem lhe dar, pois, dinamismo introspectivo, sem lhe permitir
surpreender durante a tomada de decisoes, sem lhe fazer variavel e
dinamica no que tange aos seus pensamentos, ideologias, sensacoes e
reacoes: ela sempre sera a 'virtuosa'; so podemos esperar dela
'a ingenuidade casta'; ja antevemos, pois, que a protagonista
jamais ira se safar dos mais infames desejos e agressoes.
Apenas porque plana Justine pode se transformar em uma caricatura,
em um tipo: e e a partir deste desenho caricato-romantico que o escritor
vai criticar a hipocrisia religiosa ou sentimentalista. A protagonista e
tao estatica que suas acoes passam a ser previsiveis: e claro que ela
nao vai aceitar a proposta de Coracao de Ferro, vai fugir do bando e,
ainda no bosque, encontrar-se-a com outro malfeitor. Este e o conde de
Bressac, um homossexual que almeja matar a propria tia que o criou para,
assim, usurpar-lhe a heranca. Para dar cabo do crime, o conde pede ajuda
de Teresa, que se finge de cumplice para que, dessa forma, pudesse
salvar a mulher. Entretanto, Bressac descobre os planos da jovem e
tortura-a: enquanto a ve sofrer, jogada aos caes do palacio, o conde se
deleita sexualmente com seu parceiro.
A narrativa se desenvolve entao com base na constante fuga da
personagem central, que passa a ser acusada pelo assassinato da tia de
Bressac, conseguindo abrigo na casa de um medico chamado Rodin, na vila
de Saint Marcel, "[...] a umas cinco leguas de Paris [...]"
(Sade, 2007, p. 101), onde pede ajuda para que se lhe curem as feridas.
Ali, Justine descobre que o cirurgiao mantem um colegio de criancas, de
ambos os sexos, que recebem, alem das aulas de aritmetica, desenho e
musica, as mais infames torturas de Rodin, que abusa delas sexualmente.
O medico planeja dissecar a propria filha, Rosalia, justificando o seu
gozo, advindo do derramamento de sangue e do sofrimento alheio, a partir
do discurso cientifico e naturalista:
Nao--continuou Rodin, entusiasmado--, nao, meu amigo, nunca
entenderei que um pai que quis dar a vida nao seja livre de dar a morte.
E o ridiculo valor por nos atribuido a vida que nos leva a tecer
consideracoes estupidas sobre o acto que impele o homem a libertar-se de
seu semelhante. Julgando que a existencia e o bem supremo, consideramos
estupidamente haver crime no acto de roubar a existencia a quem dela
goza; mas a cessacao da existencia, ou aquilo que se lhe segue, nao tem
mais mal do que a vida tem de bem; isto e, se nada morre, se nada se
destroi, se nada se perde na natureza, se todas as partes decompostas de
um corpo qualquer estao so a espera da dissolucao para voltarem a
adquirir novas formas, entao a accao de matar e indiferente e ninguem
pode considera-la ma (Sade, 2007, p. 127).
Usando de forma parodica o discurso de Antoine Lavoisier--para o
qual, na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma--,
Marques de Sade acaba por ironiza-lo, mostrando-nos que tal
cientificismo pode justificar as mais barbaras atrocidades. Aqui, mais
do que apenas uma citacao critica referente a um estudioso de sua epoca
(Lavoisier, que atuou no final do seculo XVIII, morreu tres anos depois
da publicacao de Justine ..., em 1794), Sade empreende um retrato
ironico do Zeitgeist cientificista e racionalista que desconsidera, em
favor de uma concepcao da natureza como ordenadora de corpos e valores,
as implicacoes eticas e a historicidade dos sujeitos:
O sistema de pensamento de Rodin e decorrencia, afinal, da ironia
que o autor onisciente intruso, que desaparece ao ceder a
responsabilidade da narracao a Justine, transfere as vozes dos
personagens. Ao ouvir o que planeja o medico, Justine tenta ajudar
Rosalia, mas o cirurgiao descobre seus planos e tortura-a: em seu corpo,
a letra que estigmatiza os ladroes e marcada com um ferrete em chamas.
Quando deixa a casa de Rodin, mais uma vez falida em sua missao de
ajudar o proximo, Teresa, entao com 22 anos, encontra, em meio as
florestas por onde foge, um mosteiro, distante de qualquer habitacao
proxima, 'rodeado por todos os lados de espesso matagal',
construido em uma cova, em um declive no solo, em um vale que o escondia
(Sade, 2007, p. 135, grifo do autor).
Mais uma vez o discurso romantico sentimental leva Teresa ao
engoso: a mulher buscara aquele lugar, pois pensara que ali encontraria
a 'amaval solidao' de 'reclusas virtuosas ou de
"santos eremitas', longe desta sociedade perniciosa onde o
crime, rodando incensatemente a inocencia, a degrada e a analiquila.
Entretanto, o que encontra e o mosteiro de Sainte-Marie-des-Bois,
onde quatro clerigos da mais alta patente, amigos pessoais do papa,
mantem, longe dos olhares publicos, as mais crueis torturas e orgias.
Esse refugio--espaco de topofobia e hostilidade, conforme reflexoes
baseadas nos estudos de Gaston Bachelard (2008)--existe em segredo ha
mais de cem anos e nele habitam os quatro religiosos mais ricos e mais
responsaveis da ordem. Ali, ao contrario de se ver em solidao bucolica e
benevolente, Justine e penetrada das mais diversas maneiras e seus
suplicios sao descritos com riqueza de detalhes. Dom Severino, um dos
agressores, diz-lhe:
[...] a quem podereis recorrer, afinal? Talvez a Deus, esse Deus a
quem acabais de rezar com tanto fervor e que, em recompensa, vos
precipitou nesta armadilha? A esse Deus quimerico que nos ultrajamos
aqui todos os dias, insultando as suas leis vas? (Sade, 2007, p. 43).
Apos essas andancas, Teresa e ainda sequestrada, obrigada a ser
amante do lider do bando, passando a acompanha-lo em seus crimes.
Entretanto, os sequestradores sao detidos e, junto com eles, a jovem. E
e nesse ponto que Justine, ao ser levada a capital francesa para a
confirmacao de sua sentenca, encontra a irma mais velha. A Condessa de
Lorsange, ao ouvir toda sorte de desgracas sofridas pela cacula, decide
intervir e livra-la das penas, usando do poder e da influencia obtidos
gracas ao marido, o senhor de Corville. Desfeitos os malentendidos e as
confusoes, Justine enfim pode lograr uma vida feliz:
Em poucas horas chegam ao solar; o senhor de Corville e a senhora
de Lorsange tudo fizeram para que Teresa passasse da mais profunda
desgraca ao cumulo da ventura. Alimentavam-na com as mais suculentas
iguarias; deitavam-na nas melhores camas, tudo quanto ela ordenava era
cumprido; usavam, enfim, de toda a delicadeza que era de esperar em duas
almas sensiveis. Durante os dias, sao-lhes administrados remedios,
dao-lhe banho, enfeitam-na, embelezam-na, torna-se o idolo dos dois
amantes, ambos porfiando em faze-la esquecer rapidamente os seus
infortunios. Com alguns cuidados, um excelente cirurgiao encarregou-se
de apagar a marca ignominiosa, fruto cruel da maldade de Rodin. Os
cuidados dos benfeitores de Teresa deram resultados: os vestigios do
infortunio iam desaparecendo do semblante da amavel rapariga; as gracas
tornavam a firmar nele o seu imperio (Sade, 2007, p. 341).
Tambem o senhor de Corville movimentara a alta corte francesa e
cartas regias chegaram trazendo a noticia de que o nome de Justine
estava livre dos processos injustamente movidos contra ela. Teresa, por
muito tempo, "[...] esteve prestes a expirar de alegria"
(Sade, 2007, p. 341). Entretanto, o desfecho da narrativa e o que ha de
mais ironico. Um golpe final a aniquila por completo e a impede de
desfrutar qualquer prazer: no fim do verao, uma 'tempestade
espantosa', agitada pelo 'fogo do ceu', envia a heroina
um raio que a fulmina. "O raio enterrou-selhe no seio direito;
depois de lhe ter consumido o peito e a cara, saira-lhe pelo meio do
ventre. A pobre criatura oferecia um espetaculo horrivel de ver: o
senhor de Corville ordena que a levem dali [...]" (Sade, 2007, p.
343).
Ora, vemos que, apos as constantes e detalhadas cenas de estupro e
violencia sexual, recorrentes em todo o livro, quando Justine se livra
dos libertinos e criminosos, quem passa a violenta-la e um ceu
fogoso--no qual os 'ventos uivam' e a as nuvens se agitam,
sacudidas de 'maneira horrivel' (Sade, 2007) --que parece
desejoso de aniquilar seu ser, arremetendo-lhe um raio. Interessante
que, nessa descricao sadeana, tragicomica, os peitos e a cara da moca
sao primeiramente atingidos e maltratados, exatamente como faziam seus
algozes, e depois o raio celeste sai de seu ventre, em uma clara alusao
ao estupro, a uma cena de carater sexual.
Aqui os matizes ironicos de Sade revelam-nos: a Natureza, conforme
sua otica, e essencialmente agressiva e indiferente aos sistemas de
bondade e virtuosidade pregados pelo homem; ela sempre toma para si a
materia, reivindica-a, e os sistemas de justica e comiseracao sao
insuficientes ante a vida instintual humana, provida por tal Natureza.
Tambem nos e revelado, ademais, que Justine e profundamente influenciada
pelos sistemas sociais ao seu redor: o 'regime de soberania' e
o 'controle disciplinar dos corpos' a espreitam e a regem; o
pastorado, originalidade do cristianismo, obriga-a a excessivas
autoconfissoes e a faz acreditar que, neste mundo, o seu espaco e o do
sofrimento.
Tanto e verdade que, em meio aos faustos concedidos pela Condessa
de Lorsange, a protagonista passa a 'ficar triste, inquieta,
meditabunda', pondo-se muitas vezes 'a chorar na presenca dos
amigos', para os quais "[...] nem ela propria conseguia
explicar os motivos de tais penas" (Sade, 2007, p. 342). O autor
continua expondo a condicao afetiva da personagem, que afirma nao ter
nascido para tanta felicidade. O fato e que, aqui, vemos o sistema de
cerceamento cristao lhe ditando a tristeza ao pregar o eterno
sofrimento, a cotidiana expiacao e a consequente recompensa no reino dos
ceus. Sistema ao qual um dos personagens, o conde de Bressac, vai
objetar: "[...] o que sao as religioes senao o freio com que a
tirania do mais forte quer cativar o mais fraco?" (Sade, 2007, p.
81). Esta e a critica crucial do autor aos pressupostos religiosos de
seu tempo.
Vamos agora a analise da natureza e do pastorado cristao que
oprimem Justine, instancias tao bem caracterizadas por Marques de Sade
em sua escritura.
O derramamento de sangue e o remorso: Justine, a 'boa ovelha
do rebanho'
No livro Personas sexuais (1992), logo em seu capitulo de abertura
intitulado 'Sexo e violencia, ou natureza e arte', a autora
Camille Paglia diz que seu discurso, ali, sera construido com base em
Freud, Nietzsche e Sade. Baseado nestes autores, o texto demonstra
fundamentalmente que o homem ocidental e civilizado esconde de si mesmo
o seu pavor com relacao a natureza, construindo sua vida em torno de um
'estado de ilusao' que pressupoe a benevolencia ultima da
natureza e de Deus. Essa concepcao ilusoria, segundo Paglia, e o
poderoso mecanismo de sobrevivencia sem o qual "[...] a cultura
reverteria ao medo e ao desespero" (Paglia, 1992, p. 13). Sendo
assim, de acordo com a estudiosa, a sociedade e a construcao artificial
que nos defende--a nos, mulheres e homens civilizados --da
indiscriminada e violenta forca natural:
Somos apenas uma dentre a multidao de especies sobre as quais a
natureza exerce indiscriminadamente sua forca. A natureza tem um
programa mestre que mal podemos conhecer. A vida humana teve inicio na
fuga e no medo. A religiao surgiu de rituais de propiciacao, sortilegios
para aplacar a violencia dos elementos. Ate hoje, sao poucas as
comunidades nas regioes crestadas pelo calor ou agrilhoadas pelo gelo. O
homem civilizado esconde de si mesmo a extensao de sua subordinacao a
natureza. A grandiosidade da cultura, a consolacao da religiao absorvem
suas atencoes e conquistam sua fe. Mas, basta a natureza dar de ombros e
tudo cai em ruinas. Incendios, inundacoes, raios, tufoes, furacoes,
vulcoes, terremotos--em qualquer parte, a qualquer hora. A tragedia
abate-se sobre os bons e os maus (Paglia, 1992).
E e para nos confortar diante de tal horrendo e indiferente
espetaculo natural, com suas intemperies que atinge a tudo e todos, sem
distincoes referentes a bondade e a maldade dos homens, sem distincoes
referentes aqueles 'merecedores' ou 'nao
merecedores' de suas provacoes, que criamos, nessa sociedade que e
a "[...] nossa fragil barreira contra a natureza [...]"
(Paglia, 1992, p. 15), estrategias apolineas de visao. O que isso quer
dizer? Conforme Paglia (1992), isso significa que nos concentramos no
'belo', esperando denominar, classificar e, assim, controlar
pela fria luz do intelecto 'a noite arcaica', ou seja, aquilo
em que, se formos nos aprofundar, jamais conseguiremos respostas certas.
A autora pondera que a ciencia ocidental, ao contrario dos
discursos do Extremo Oriente--que nao querem se rebelar contra a
natureza, mas que almejam a submissao e a unidade harmonica em relacao a
ela--, busca 'nome e pessoa', busca a identidade distinta de
cada objeto, busca, enfim, certezas ilusorias que constituem um
verdadeiro confronto as esferas naturais e ao seu carater dionisiaco,
ctonico, profundo. Assim, quando caminhamos por entre bosques, morros,
serras, matagais espessos, tentamos ver, identificar, nomear,
reconhecer. Conforme nos diz Paglia (1992), o conhecimento ocidental se
da por meio do olhar, dessas relacoes perceptivas que nos isolam do
medo, vez que nos oferecem, mesmo que ilusoriamente, a certeza da
existencia de um individuo que, frente as coisas do mundo, designa-as,
compreende-as e, assim, intenta controla-las.
Dizemos que a natureza e bela. Mas esse julgamento estetico, que
nem todos os povos tem partilhado, e outra formacao de defesa,
desgracadamente inadequada para abranger a totalidade da natureza. O que
e bonito na natureza se limita a fina pelicula do globo sobre o qual nos
amontoamos. E so arranhar essa pelicula, que surgira a feiura daimonica
da natureza. Nossa concentracao no belo e uma estrategia apolinea. As
folhas e flores, os passaros, as montanhas sao um desenho a la colcha de
retalho pelo qual mapeamos o conhecido. O que o Ocidente reprime em sua
visao da natureza e o ctonio, que significa 'da terra'--mas
das entranhas da terra, nao da superficie. Segundo Paglia:
O dionisiaco nao e nenhum piquenique. Sao as realidades ctonicas de
que foge Apolo, o triturar cego da forca subterranea, o longo e lento
sugar, a treva e a lama. E a desumanizante brutalidade da biologia e da
geologia, o desperdicio e o derramamento de sangue darwinianos, a
miseria e a podridao que temos de barrar da consciencia, a fim de manter
nossa integridade apolinea como pessoas. A ciencia e a estetica
ocidentais sao tentativas de revisar esse horror dando-lhe uma forma
mais palatavel para a imaginacao (Paglia, 1992, p. 17).
Ora, a Marques de Sade pouco importam essas formas palataveis a
imaginacao, essa fina pelicula bela e classificavel do mundo. Ao
contrario, o escritor coloca na boca dos algozes de Justine falas
baseadas na ideia de que o crime e entendivel porque corriqueiro em uma
natureza que e, por si, indiferente ao homem. Quando ele assim o faz,
ele nada mais busca do que aquilo que Camille Paglia vai chamar de
'dominio dionisiaco, o ctonio': Sade alimenta sua escritura,
calcando-a no discurso sexual e erotico, da brutalidade da biologia; do
derramamento de sangue incontido pelas forcas naturais; da podridao que
emana das consciencias mais sordidas, mas que, mesmo assim, a natureza
deixa vingar.
O texto sadeano vai, dessa forma, muito alem daquilo a que chamamos
de texto sadico, pois ele reivindica, na esfera discursiva ocidental,
uma filosofia que nao se construa apenas como estrategia apolinea de
nomear e classificar. Ao contrario, a filosofia de Sade considera,
caricata e criticamente, a agressividade instintual, esta pulsao que e
constantemente maquilada por mulheres e homens civilizados a fim de se
isolarem do medo e do nao entendivel, a fim de se isolarem do incerto,
tao temido pela ciencia do ocidente. Desta feita, o texto sadeano,
ultrapassando o sadico, tem um intento de critica filosofica (e porque
nao de critica politica), vez que, ao pintar respostas satiricas ao
discurso sentimental apolinizado, ao pintar obscenos retratos e uma
santidade que chega a ser comica, o autor da sua estranha risada as
pretensoes classificatorias do cientificismo de sua epoca, ao
racionalismo filosofico que credita aos homens, a priori, bondade e
beleza.
Mas, para conseguir tais facanhas, por qual motivo Sade se utilizou
da linguagem do sexo? Em primeiro lugar, e ainda recorrendo a Camille
Paglia, devemos considerar que o sexo e o peso do erotismo nos meios
sociais, ou seja, o peso desta
[...] aurea de emocao e imaginacao que cerca o sexo, sao os pontos
pelos quais a natureza ctonica invade a sociedade. Ora, e por isso que
toda sorte de codigos de conveniencia e de moral se impoe as atividades
eroticas e sexuais, todo mecanismo social tenta represar o caos da
libido, todo o sexo e procriacao passam a ser medicamente,
cientificamente e intelectualmente controlaveis (Paglia, 1992, p.
24-25).
Tudo isso faz parte, em verdade, da estrategia civilizatoria para
controlar a agressividade instintual do sexo, da natureza. E e por isso
que Marques de Sade ve, justamente na linguagem erotica, o retorno a
Natureza nao apolinea, o retorno a natureza real que nao se pretende
etica, mas que apenas pulsa nos desejos infames de seus personagens.
Entretanto, neste ponto de nossa analise, vale que nos retornemos
aos nossos questionamentos iniciais, com os quais abrimos este artigo,
que dizem respeito ao fato de a violencia sexual ser aplicada ao corpo
feminino, em Justine, bem como ao fato de a protagonista parecer
internalizar os mecanismos que levam a agressao. Camille Paglia
diz--embora criticada por muitas feministas que, por vezes, acham-na uma
referencia demasiadamente atrelada a concepcoes naturalizantes,
a-historicas:
A identificacao da mulher com a natureza e o componente mais
perturbado e perturbador nessa discussao historica. Tera sido verdade
algum dia? Ainda sera? A maioria das leitoras feministas discordara, mas
acho que essa identificacao nao e mito, e sim realidade. [...] Todo ser
humano tem de lutar contra a natureza. Mas o fardo da natureza pesa mais
sobre um dos sexos. Com sorte, isso nao limitara a realizacao da mulher,
ou seja, sua acao no espaco social criado pelo homem. Mas tem de limitar
o erotismo, ou seja, nossas vidas imaginativas no espaco sexual, que
pode justapor-se ao espaco social, mas nao lhe e identico (Paglia, 1992,
p. 24-25).
O que a autora quer dizer, aqui, e que a propria natureza, por ser
um fardo mais pesado ao corpo feminino, dificulta-lhe a liberdade:
[...] ela nao e livre. [...] Deseje ou nao deseje a maternidade, a
natureza a atrela ao bruto e inflexivel ritmo da lei da procriacao. O
ciclo menstrual e um despertador que nao pode ser parado enquanto a
natureza nao quiser (Paglia, 1992, p. 21).
No que se refere ao masculino, Paglia demonstra que as ideias de
projecao e transcendencia sao mecanismos do homem, que almeja se livrar
do medo da natureza, expresso aqui pelo medo da femeabilidade que o
consome, pelo temor do eterno retorno sexual a mae, ao utero de onde
saiu: "[...] ele precisa transformar-se num ser independente, isto
e, um ser livre dela. Se nao o fizer, simplesmente retornara a ela"
(Paglia, 1992, p. 21).
Aqui o intuito nao e o de discutir tais concepcoes. Vale dizer,
apenas, que as mulheres, enquanto sujeitos historicos e mutaveis,
obviamente tem, tal como os homens, pretensoes de tomada de liberdade
ante a natureza que as gerou. Entretanto, essa discussao foge ao nosso
proposito. Basta mencionar que concordamos com Camille Paglia quanto a
carga imensa que as forcas naturais, mais que aos homens, nos legaram. E
por isso, em nossa analise de Justine, vemos que o corpo da
protagonista, historicamente atrelado aos ciclos naturais, passa a ser
patriarcal e de modo misogino ligado a ideia de sexo. Assim, tal corpo,
estando em um sistema machista que considera o sexo como mera atividade
para a satisfacao da libido masculina, passa a ser mais facilmente
subjugado pelos homens ao seu redor.
Mas se Justine internaliza tal violencia, aceitando-a casta e
ingenuamente, sempre crente, no decorrer do romance, na cilada de seus
malfeitores, e porque o meio social em que se locomove (e aqui nos
distanciamos da ideia de 'natureza') assim a delimita. Para
que entendamos tal meio, e o sujeito advindo dai, utilizamos dois
estudos de Michel Foucault: o seu A historia da sexualidade I--A vontade
de saber (1999) e Sexualidade e poder (2003), sendo que este segundo
tambem contempla e complementa a perspectiva culturalista do primeiro,
nos aspectos aqui estudados.
O fato e que Justine e fruto do seculo XVIII e, por isso, ainda
esta em um regime marcado pelas sociedades de soberania, que veem no
sangue e no gladio seus simbolos cruciais. De acordo com Foucault
(1999), pelo modelo de soberania, o rei, ou qualquer figura soberana,
quando exposto a perigos ou ameacas, tem o direito de expor a vida de
seus suditos, de causar-lhes a morte em beneficio de sua existencia e da
defesa de seu reino. Sendo assim, o soberano e um tipo juridico
fundamentalmente voltado as instancias de confisco. Nesse tipo historico
de sociedade, o poder se exerce essencialmente como "[...]
mecanismo de subtracao, direito de se apropriar de uma parte das
riquezas" (Foucault, 1999, p. 128).
Isso quer dizer que, em defesa do soberano e em favor da manutencao
da vida dele, os individuos, em uma relacao profundamente assimetrica,
teriam seus produtos, suas forcas, seus bens e seus servicos extorquidos
e, em casos maximos, seu sangue derramado. Tratamos, aqui, de uma forma
de poder exercida sobre unicas bases de interdicao e de extorsao:
"[...] o soberano so exerce, no caso, seu direito sobre a vida,
exercendo seu direito de matar ou contendo-o [...]" (Foucault,
1999, p. 128); so garante seu poder sobre a vida pela morte, e pelo
confisco, que tem condicoes de exigir. Ora, Justine e profundamente
abatida por este sistema: suas relacoes com as classes mais altas sao
profundamente assimetricas, suas forcas extorquidas, seu sangue
derramado em favor do prazer de seus exploradores.
O tipo social da soberania, que vai das altas rodas do governo as
esferas domesticas mais reconditas, e claramente expresso no discurso do
personagem Rodin, medico que almeja matar a propria filha:
Um monarca cre-se autorizado a sacrificar vinte ou trinta mil
suditos seus num so dia, em defesa da sua causa, e um pai de familia,
quando o achar conveniente, nao e senhor da vida dos filhos? Que grande
absurdo! Que inconsequencia e que fraqueza por parte dos que se sujeitam
a tais leis! [...] So nesta barbara Franca e que a piedade ridicula e
falsa houve por bem cancelar este direito (Sade, 2007, p. 127).
Vemos no excerto acima a critica sadeana: o autor desenha
caricaturas de personagens autoritarios que nao se adaptam ao novo
contexto da Franca prerevolucionaria. Ora, e a partir dos seculos XVIII
e XIX que um novo sistema de poder, aprimorado a partir das necessidades
do desenvolvimento industrial do capitalismo, tende a considerar o
confisco nao como 'sua forma principal', mas apenas como uma
de suas pecas,
[...] entre outras com funcoes de incitacao, de reforco, de
controle, de vigilancia, de majoracao e de organizacao das forcas que
lhes sao submetidas: um poder destinado a produzir forcas, a faze-las
crescer e a ordena-las mais do que barra-las, dobra-las ou destrui-las.
Com isso, o direito de morte tendera a se deslocar ou, pelo menos, a se
apoiar nas exigencias de um poder que gere a vida e a se ordenar em
funcao de seus reclamos (Foucault, 1999, p. 128).
Entretanto, a obra sadeana circunscreve criticamente, de forma mais
nitida e explicita, os regimes de derramamento de sangue. Quanto as
sociedades disciplinares, elas sao marcadas pela gestao calculista da
vida; pelo esquadrinhamento de corpos e espacos no sentido de tornar os
sujeitos mais uteis, produtivos e doceis; pelo adestramento de forcas;
pelas vigilancias infinitesimais sobre o comportamento, que visam reger
(de forma produtiva e nao meramente confiscatoria) a vida. E esta
realidade, que nao mais se constitui um 'direito de causar a
morte', que Rodin diz estranhar.
Consideracoes finais
Justine, como acompanhamos nesse estudo, debate-se em uma sociedade
que traz, ainda fortemente, rancos do regime de soberania: ela se torna
sudita de aristocratas falidos que querem recompor, ao menos nas
alcovas, seus poderes. Para tanto, eles se utilizam de um corpo feminino
misoginamente representado, historicamente atrelado a natureza que tem
de ser sempre dominada, controlada e classificada. Todavia, ha ainda
outro fator crucial que faz com que a protagonista aceite, sem
contestar, tal sistema, internalizando a violencia: o pastorado.
Foucault (1999; 2003) explica que, por este mecanismo de poder,
introduzido pelo cristianismo, existem sujeitos destinados ao papel de
condutores, a funcao de conduzir individuos que sao como suas ovelhas ou
rebanhos. Para que tal conducao seja feita, o pastor, o padre, o
chefe--enfim, o condutor --deve conhecer cada acao de sua ovelha, cada
pensamento, cada desejo, cada vontade, cada revolta, cada aceitacao.
Somente assim, o pastor teria condicoes de guiar, podendo, ate mesmo,
sacrificarse por um membro desgarrado do rebanho.
O fato e que, enquanto no poder soberano um sudito morre pelo rei,
aqui o condutor se sacrifica por seu povo, reinando sobre uma
multiplicidade em deslocamento e nao mais sobre um territorio, como
ocorre no poder tradicional. Desta feita, o pastorado e um poder
individualista, vez que, para alem da salvacao do grupo de ovelhas,
deve-se garantir que cada individuo, especificamente, se salve.
Por esta tecnica de poder estimulada pelo cristianismo, o pastor e
obrigado, pois, a conhecer as paragens mais secretas dos seres ao seu
redor; 'as boas ovelhas', por sua vez, se movem em um sistema
em que remorso e culpa sao cruciais para a necessidade de confissao;
desta feita, os exames de consciencia, esmiucados em confessionarios,
sao cada vez mais cruciais. E e aqui que observamos a sagacidade de tal
tecnica, pois ela acaba por transformar a salvacao em instancia
compulsoria: para entrar no esquema do bom pastor, o fiel tem de querer
passar pela expiacao terrena, pela expurgacao de pecados, pelo
sofrimento e, assim, adquirir a recompensa celeste. Somente assim,
desejando o reino dos ceus, a ovelha passa ser aceita no bando em
deslocamento.
E sao esses discursos que vemos em movimento quando Justine vai
dizer:
Estou acusada, dizia para comigo, sou mais uma vez denunciada a
justica por ter sabido respeitar as suas leis! Deixa-lo! Nao me
arrependo! Aconteca o que acontecer, estarei livre de remorsos, enquanto
me mantiver pura e nao tenha feito outro mal para la de ter dado ouvidos
aos justos e virtuosos sentimentos que jamais me abandonarao (Sade,
2007, p. 104).
Vemos que Marques de Sade, parodiando o discurso religioso e outros
dispositivos culturais correlatos, destina sua risada ironica aos
sistemas cristaos que, ao pregarem o eterno sofrimento em prol da
recompensa celeste, fazem com que os mais fracos, sempre em decorrencia
dos 'bons e virtuosos sentimentos', sejam eternamente
submetidos aos desejos e caprichos daqueles fortalecidos na escala
social. Eis aqui, talvez, uma das maiores transgressoes do texto
sadeano.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v40i2.40187
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Received on October 25, 2017.
Accepted on April 2, 2018.
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