Trailer semiosis from advertising to aesthetic experience/As semioses do trailer da publicidade a experiencia estetica.
da Silva, Alexandre Rocha ; Iuva, Patricia de Oliveira
Dos rastros ao arquivo
A palavra trailer, termo anglo-saxao, enquanto verbete agrega
significados tais como "aquilo que arrasta" ou "aquilo
que segue a pista". Essas agregacoes nos induziram a pensar no
conceito de rastros trabalhado por Jacques Derrida (19302004). O rastro
pode tanto remeter a algo do passado, do que ja foi, quanto apontar como
uma flecha para o futuro de algo que pode vir a ser. Assim, encarado
como um elemento do tempo de Cronos, "[...] o presente divino e o
circulo inteiro, enquanto que o passado e o futuro sao dimensoes
relativas a tal ou tal segmento que deixa o resto fora dele"
(Deleuze, 1989, p. 153). Porem, se pensarmos o rastro no tempo de Aion
(1), teremos o "mais pleno presente, presente que se espalha e que
compreende o futuro e o passado, eis que surge um passado-futuro
ilimitado [...]" (Deleuze, 1989, p. 153). Em outras palavras,
"o movimento de significacao trabalha antes com multiplas
temporalidades: um elemento presente, que nao esta sozinho mas conserva
marca de um elemento passado e, moldando-se por essa marca, relaciona-se
com o elemento futuro" (Marcondes Filho, 2004, p. 227).
Ou seja, encontram-se no trailer rastros de uma dada estetica e de
formas de producao que apontam para um futuro, mas tambem, que nos
remetem a um passado. E possivel dizer, ainda, que se identificam
rastros de trailer em certas producoes audiovisuais, como por exemplo,
em filmes que prometem outros filmes, em videoclipes que se constroem
esteticamente a partir de marcas que remetem ao trailer, e assim por
diante. Pois os elementos "trailerificos" se constituem a
partir dos rastros de cada um dos outros elementos da cadeia
audiovisual, organizandose em um jogo de remissoes, o qual opera uma
tessitura, ou melhor, um texto. Dai que "nao existe, em toda parte,
a nao ser diferencas e rastros de rastros" (Derrida, 2001, p. 32).
Contemplar o trailer como um texto significa assumi-lo como um tecido
cujos sentidos nao sao essencialistas, mas que se fazem em um jogo de
integracao de fragmentos, que se complementam nas sinteses, nas
remissivas, nos tracos e em suas redes intertextuais:
"[...] nenhum elemento pode funcionar como signo sem remeter a
um outro elemento, o qual, ele proprio, nao esta siplesmente presente.
Ess encadeamento faz com que cada 'elemento'--fonema ou
grafema constitua-se a partir do rastro, que existe nele, dos outros
elementos da cadeia ou sistema. Esse encadeamento, esse tecido, e o
texto [...]."
(Derrida, 2001, p. 32)
O trailer como texto, por definicao, nao esta sozinho: conserva
marcas de elementos passados (de um cinema passado), mas tambem se molda
para um futuro. A forma textual desse futuro pode tanto ser o filme
prometido pelo trailer quanto outra textualidade audiovisual que se
encontra em devir no proprio trailer. Propomos observar aqui o trailer
nao mais apenas como uma peca que divulga o filme, mas como uma maquina
comunicante conectada a outras tantas, de diversas ordens textuais, cujo
objetivo e, em primeiro lugar, estetico, na medida em que
fundamentalmente divulga a si proprio.
Sendo assim, as analises nao recaem sobre as estruturas de conteudo
ou de expressao tal como em uma analise filmica, mas sobre as semioses
que formam os objetos dos quais falam. O mesmo discurso se distribui e
aparece em diferentes trailers, seja atraves de seus enunciados ou
atraves de suas imagens. E por essa razao que, metodologicamente,
trabalhamos as categorias do visivel e do enunciavel, discutidas por
Gilles Deleuze (2006) a luz de Michel Foucault. Com elas, observamos nos
trailers formacoes discursivas relativas a certas praticas audiovisuais
que transcendem o propriamente cinematografico.
A proposta teorico-metodologica ainda considera a formacao de um
arquivo (Foucault, 1995), local em que o movimento de autonomizacao do
trailer se explicita com maior clareza, uma vez que "o arquivo e,
tambem, o que faz com que todas as coisas ditas nao se acumulem
indefinidamente em uma massa amorfa [...] mas que se agrupem em figuras
distintas, se componham umas com as outras segundo relacoes
multiplas" (Foucault, 1995, p. 149).
Assim, estamos pensando em uma formacao discursiva dos trailers de
onde emergem enunciados especificos que, combinados no arquivo, dialogam
estruturalmente com outras materialidades audiovisuais. Existe uma
especificidade no interior do arquivo que caracteriza o trailer; no
entanto, coexistem com esse modo de ser do trailer outros formatos,
generos e modos de ser do audiovisual. Queremos dizer: porosidades de
outros campos, tais como o cinema, o video, a publicidade, a internet, a
televisao, que estabelecem relacoes de tensao com o trailer. Isto e, o
projeto consiste em desconstruir (no sentido derridiano) a perspectiva
identitaria do trailer como peca autonoma e, em um movimento de
desterritorializacao, investiga-lo a partir de novas paisagens
audiovisuais relativas a aspectos esteticos e produtivos.
A desconstrucao opera a montagem de um novo arquivo audiovisual de
experiencias que escapam aos modelos centrais da publicidade, que
habitualmente caracteriza a experiencia produtiva do trailer. Assim, a
desconstrucao "E uma fase de inversao necessaria para subverter a
hierarquia original, de tal modo que o primeiro componente passe a ser o
segundo" (2) (Powell, 1997, p. 30). No interior deste arquivo, a
publicidade aparece tal como um fantasma, e perde sua funcao hegemonica,
abrindo espacos para "uma pratica que faz surgir uma multiplicidade
de enunciados como tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas
oferecidas ao tratamento e a manipulacao" (Foucault, 1995, p. 150).
Os diferentes niveis que se formam no arquivo fazem aparecer as regras
de uma pratica que permite aos enunciados subsistirem, "e o sistema
geral da formacao e da transformacao dos enunciados" (Foucault,
1995, p. 150). Dai que, lembrando as consideracoes acerca dos rastros,
reconhecemos ser possivel dizer que o arquivo composto nao e de forma
alguma fechado e estatico, ou seja, ele esta ai para ser ampliado. Assim
como os audiovisuais que o compoem congregam marcas que direcionam a
formacao de um arquivo, esse ultimo deixa pistas para outros
audiovisuais que podem vir a integra-lo. Pois as remissivas a outros
elementos nao cessam: a cada nova relacao surgem outros questionamentos,
outras discursividades, novas paisagens audiovisuais.
O visivel e o enunciavel
Nos termos das audiovisualidades, pode-se pensar as estratificacoes
na ordem dos movimentos de territorializacao, desterritorializacao e
reterritorializacao. Isto e, existem fluxos, intensidades, movimentos
que, ao se sedimentarem, constituem os estratos, os quais, por sua vez,
constroem a nocao de territorio. Os estratos articulam um conteudo e uma
expressao, ou seja, tais estratos, de acordo com Deleuze (2006), sao
feitos de coisas e palavras, de ver e falar, de visivel e de dizivel, de
regioes de visibilidade e campos de legibilidade, de conteudos e
expressoes. Deleuze apresenta dois aspectos essenciais com relacao aos
estratos:
"Por um lado, cada estrato, cada formacao historica implica
uma reparticao do visivel e do enunciavel que se faz sobre si mesma; por
outro lado, de um estrato a outro varia a reparticao, porque a propria
visibilidade varia em modo e os proprios enunciados mudam de
regime."
(Deleuze, 2006, p. 58)
Assim, podemos afirmar que, no inicio do seculo XX, o cinema surgia
como uma nova maneira de ver e fazer ver, ou melhor, de registrar as
coisas do mundo. Ja, um pouco antes da metade do seculo, passou-se a ter
o cinema como outra maneira de contar historias, diferentemente da
literatura, do teatro. Para Deleuze (2006) ha ai uma evidencia, uma
percepcao historica ou sensibilidade, tanto quanto um regime discursivo.
"Maneira de dizer e forma de ver, discursividades e evidencias,
cada estrato e feito de uma combinacao de duas e, de um estrato a outro,
ha variacao de ambas e de sua combinacao" (Deleuze, 2006, p. 58).
Hoje, temos outra determinacao de visiveis e enunciaveis: o audiovisual,
sendo atualizado neste trabalho, pelo trailer, por exemplo.
O audiovisual entendido nesta perspectiva foucaultiana desenvolvida
por Deleuze (2006) seria caracterizado por uma tensa relacao entre os
regimes de enunciacao (enunciavel) e de visibilidade (visivel), os quais
corresponderiam, respectivamente e para os propositos deste artigo, ao
som e a luz. Cabe dizer, no entanto, que para Foucault, o enunciado tem
preferencia, mas somente porque o visivel tem suas proprias leis e uma
autonomia que o poe em relacao com o enunciado:
"As visibilidades nao se confundem com os elementos visuais ou
mais geralmente sensiveis, qualidades, coisas, objetos, compostos de
objetos [...] as visibilidades nao sao formas de objetos, nem mesmo
formas que se revelariam ao contato com a luz e com a coisa, mas formas
de luminosidade, criadas pela propria luz e que deixam as coisas e os
objetos subsistirem apenas como relampagos."
(Deleuze, 2006, p. 62)
Se nos remetermos ao cinema, veremos que as consideracoes de
Foucault quanto as visibilidades encontram certa correspondencia, quer
dizer, a imagem no cinema e a propria luz, que cria suas formas e
permite seus movimentos. A luz, inseparavelmente da maquina, cria
visibilidades. A formacao historica assim engendrada faz reverberar os
sintomas de uma maquina-audiovisual, que no caso do trailer, desdobra-se
em dimensoes de um dado desejo maquinico que produz, agencia elementos.
Por outro lado, sobre os enunciados, Foucault afirma que a condicao
mais geral dos mesmos nao esta na importancia de um sujeito, e sim, num
"Diz-se, murmurio anonimo no qual posicoes sao apontadas para
sujeitos possiveis: 'um grande zumbido incessante e desordenado do
discurso'" (Deleuze, 2006, p. 64). O autor se opoe a tres
maneiras de fazer comecar a linguagem: (1) pelas pessoas, ainda que nao
sejam entidades fisicas; (2) pelo significante enquanto organizacao
interna; e (3) por uma possibilidade fenomenologica, do tipo o
"Mundo diz". O grande murmurio, para Foucault, e o
ser-linguagem ou o 'ha' linguagem. Cada epoca tem a sua
maneira de reunir a linguagem, em funcao de seus corpus (Deleuze, 2006).
Sendo os enunciados inseparaveis dos regimes, considera-se que o
ser-linguagem da contemporaneidade e tambem da ordem de uma dada
producao audiovisual, que se enuncia, que se dispersa conforme seu
limiar. Uma das formas de enunciacao do audiovisual e o trailer, de modo
que as condicoes desse ultimo tornam enunciaveis, diziveis ou legiveis
suas promessas enunciadas: "o que se pode concluir e que cada
formacao historica ve e faz ver tudo o que pode, em funcao de suas
condicoes de visibilidade, assim como diz tudo o que pode, em funcao de
suas condicoes de enunciado" (Deleuze, 2006, p. 68).
Sobre as visibilidades, diz-se que elas nao sao definidas pela
visao, uma vez que se trata de complexos de acoes e paixoes, de acoes e
reacoes, ou seja, ha uma visibilidade virtual, que domina todas as
experiencias perceptivas. Deleuze (2006) mostra que entre a luz e a
linguagem, entre as visibilidades determinaveis e os enunciados
determinantes ha uma diferenca de natureza: "embora eles se insiram
um no outro e nao parem de se interpenetrar" entre os dois nao ha
isomorfismo. E o que ele chama de uma "nao relacao". Em suma,
existem procedimentos enunciativos e processos maquinicos.
"Ha uma disjuncao entre falar e ver, entre o visivel e o
enunciavel: 'o que se ve nao se aloja mais no que se diz', e
inversamente. A conjuncao e impossivel por duas razoes: o enunciado tem
seu proprio objeto correlativo, que nao e uma proposicao a designar um
estado de coisas ou um objeto visivel, como desejaria a logica; mas o
visivel nao e tampouco um sentido mudo, um significado de forca que se
atualizaria na linguagem, como desejaria a fenomenologia. O arquivo, o
audiovisual e disjuntivo. Por isso nao surpreende que os exemplos mais
completos de disjuncao ver-falar se encontram no cinema."
(Deleuze, 2006, p. 73)
Percebemos nessa problematica disjuncao/conjuncao um lugar do
trailer. As reflexoes que dizem do trailer enquanto um audiovisual que
busca justapor as imagens de acordo com os dialogos e textos
desconsideram o fato de que entre os regimes de visibilidade e de
enunciacao nao ha conformidade necessaria. Dai que nos trailers nao ha
encadeamento indo do visivel ao enunciado ou do enunciado ao visivel.
Por exemplo: a voz over (3) nao opera conjuncoes entre som e imagem,
mas, ao contrario, o que se fala e o que se ve nao sao a mesma coisa. No
entanto, e justamente nestas rupturas, e neste movimento que "o
visivel e o enunciavel formam um estrato, mas sempre atravessado,
constituido por uma fissura central" (Deleuze, 2006, p. 74).
"De um lado, 'por mais que se diga o que se ve, o que se
ve nao se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faca ver o que
se esta dizendo por imagens, metaforas, comparacoes, o lugar onde estas
resplandecem nao e aquele que os olhos descortinam, mas o que as
sucessoes da sintaxe definem'; de outro lado, 'e preciso
admitir, entre a figura e o texto, toda uma serie de entrecruzamentos,
ou antes ataques lancados de um ao outro, flechas dirigidas contra o
alvo adversario, operacoes de solapamento e de destruicao, golpes de
lanca e os ferimentos, uma batalha [...]', 'quedas de imagens
em meio as palavras, relampagos verbais que rasgam os desenhos',
'incisoes do discurso na forma das coisas', e
inversamente."
(Deleuze, 2006, p. 75)
Sendo assim, ha que se considerar a heterogeneidade das duas
formas: de um lado os enunciados do trailer, e de outro as visibilidades
do mesmo. As relacoes de tensao entre o som e a luz, entre a promessa
enunciavel e o maquinico visivel, respectivamente. Temos uma composicao
estratificada: o visivel e o enunciavel, "a receptividade da luz e
a espontaneidade da linguagem, operando alem das duas formas ou aquem
destas" (Deleuze, 2006, p. 77).
Do signo a semiose
Entremeada as reflexoes que visam desconstruir uma dada semiologia
do cinema, jaz uma ideia que pensamos ser de primordial importancia para
a compreensao do trailer e suas audiovisualidades: a semiose, que
"Nessa perspectiva, e um processo dinamico no qual o signo,
influenciado pelo seu objeto precedente, desenvolve o efeito do signo
num interpretante subsequente. O signo nao serve apenas como um mero
instrumento de pensamento, mas desenvolve sua propria dinamica que e, de
certo modo, independente da mente de um individuo. Alem disso, semiose
nao se restringe a producao e interpretacao de signos nos seres humanos;
tampouco existe dualismo entre mente e materia. Trata-se de uma teoria
sobre a continuidade entre ambos."
(Noth, 2001, p. 54)
Essa nocao de semiose esta bastante relacionada ao que conhecemos
por um continuum virtual. Para Peirce (apud Noth, 2003), cada pensamento
tem de dirigir-se a outro, dai que o processo continuo, a que se chama
semiose, so pode ser interrompido, mas nunca realmente finalizado. Quer
dizer, a ideia de um ad infinitum esta presente: no entanto, podemos
associar o processo ilimitado da semiose com um continuum de
possibilidades. O plano de imanencia do virtual, os agenciamentos e as
conexoes rizomaticas, atraves da criacao de territorios,
desterritorializacoes e reterritorializacoes operam no processo continuo
de semioses.
Neste artigo, trabalhamos com duas semioses operadas pelo trailer:
uma semiose da falta (quando o mesmo e pensando em termos publicitarios
enquanto um objeto que promete outro: o filme), e outra que agencia a
presenca (pensando o trailer enquanto expressao do desejo como
positividade, ao estabelecer relacoes com outros audiovisuais). Neste
item gostariamos de acrescentar algumas reflexoes sobre falta e desejo.
As intensidades, os fluxos, as linhas de fuga que se agitam no
interior do territorio trailer-cinematografico sao agenciadas por uma
maquina-trailer que deseja outros corpos. Dai que o desejo se coloca,
aqui, nao como uma associacao a falta, mas como o que viabiliza as
passagens entre o virtual das intensidades e o atual das formas.
O problema do desejo associado a lei da falta e o pressuposto de
que "ja que tenho um desejo, ha em algum lugar, mas nao neste
mundo, esse tal objeto que e a chave do meu desejo" (Marcondes
Filho, 2004, p. 122). Instaura-se, assim, o par possivel/impossivel,
pois, atormentado pela falta, o individuo supoe uma imagem ideal,
transcendente, inacessivel, e se move, entao, pelo desejo. No entanto, o
desejo, de acordo com Deleuze e Guattari (apud Marcondes Filho, 2004),
nao carece de nada, o desejo, ao contrario, e um conjunto de sinteses
(conectivas, disjuntivas, conjuntivas) que fabricam os objetos parciais,
os fluxos, os corpos e funcionam como unidades de producao.
A semiose da falta agrega as nocoes de insuficiencia do ser e de
culpabilidade, uma vez que estamos sempre atras de algo mais, este
'algo' a que nao se alcanca, pelo qual nos culpamos por
desejar e pelo qual continuamos a existir. E a operacao de um regime
capitalistico que se apropriou dos discursos de liberdade e de criacao
para nos aprisionar nesta 'busca' (jornada) infindavel de uma
promessa que nunca sera cumprida, de modo que toda a potencialidade,
todo o excesso do desejo fica escondido. Mas continua ali, insiste e
subsiste a tudo,
"Ao desejo nao falta nada, nao falta seu objeto; desejo e
objeto sao uma e unica coisa. E antes o sujeito que falta ao desejo. O
desejo e maquina, o objeto do desejo e maquina ligada, o produto e
extraido do produzir, que vai dar um resto ao sujeito nomade e
vagabundo: o ser objetivo do desejo e o Real em si mesmo."
(Marcondes Filho, 2004, p. 122)
Sendo assim, observamos que, hoje, existe uma producao audiovisual
cujas caracteristicas referem-se, de modo homogeneo, a uma logica
globalizada. Isto e, produzem-se modelos-padrao que ditam as regras do
mercado. Podemos dizer que a producao do trailer esta delineada por
aspectos publicitarios do mercado cinematografico (como o desejo
construido no trailer que promete o filme); no entanto, dentro desta
mesma organizacao ha movimentos de desestabilizacao, provenientes do
desejo por outras sinteses, outros corpos, de modo que podemos
vislumbrar outros perfis desses trailers. Ou seja, nao importa para onde
o trailer e enviado, independentemente de paises, culturas, a producao
trailerifica esta infectada por certa homogeneidade, mas esta
homogeneidade coexiste com linhas de ruptura, as quais se movimentam no
interior do corpo-trailer, tal como atomos; e encontram nos
agenciamentos maquinicos vias de acesso para outras atualizacoes (o vir
a ser de um trailer que esteticamente se realiza para alem dos
parametros da publicidade).
As tecnologias audiovisuais, por exemplo, representam uma dessas
vias que pode mudar um dado regime identitario do trailer
cinematografico, pois a viabilizacao das copias digitais dos trailers
implica na possibilidade de mudancas na producao dos mesmos de uma
semana para outra. Assim, se determinado formato final for ao ar e nao
estiver agradando, ele podera ser exibido na outra semana com outra
configuracao. Alem disso, o nivel de valorizacao estetica cultural, de
acordo com o pais em que eles forem distribuidos, sera maior, ou seja,
cada pais podera ter um trailer diferente. Isso ja acontece no mercado,
porem nao com tanta frequencia, uma vez que as copias em pelicula custam
muito mais do que copias digitais.
Para alem das questoes tecnologicas contemporaneas, podemos pensar
os trailers referentes a outros periodos/momentos da producao
cinematografica, tais como os trailers dos filmes Cidadao Kane (Citizen
Kane, Orson Welles, 1941, EUA), Psicose (Psycho, Alfred Hitchcock, 1960,
EUA) e Laranja mecanica (A Clockwork Orange, Stanley Kubrick, 1971,
EUA). Uma vez considerados os elementos signicos de tais produtos
enquanto rastros que apontam para possiveis relacoes maquinicas do
desejo, abre-se espaco para os regimes de visibilidade e enunciabilidade
referentes a configuracoes esteticas que desestabilizam um dado cenario
audiovisual produtivo do trailer, ja estruturado em torno de modelos e
de padroes. Isto e, os regimes identitarios cedem aos regimes e semioses
imprevisiveis do desejo, que nao cessa suas producoes, conexoes,
disjuncoes.
Cidadao Kane, Psicose e Laranja Mecanica: da promessa publicitaria
ao agenciamento estetico
Nesta secao do artigo, problematizamos aspectos analiticos do
trailer, buscando elucidar os mecanismos de producao do trailer e seus
procedimentos esteticos, os quais se situam em uma zona opaca, que se
ilumina, se faz ver quando o olhar sobre esse audiovisual ultrapassa o
teor conteudistico das imagens. Isto e, quando se compreende que para
alem de seus discursos publicitarios existem "contrastes
dialeticos" (Benjamin, 2006, p. 501) que sinalizam a potencialidade
de o trailer se tornar outro em relacao a si mesmo.
Operacionalmente, partimos para a identificacao das imagens mais
expressivas do trailer enquanto visibilidades carregadas de
enunciabilidades outras que aquelas que ela da a ver. Trata-se de uma
forma de trabalho de realizadores audiovisuais, como Walter Murch, que
conceitua tal pratica como "momentos decisivos":
"Ao escolher um quadro representativo, o que se esta
procurando e uma imagem que sintetize a essencia dos milhares de outros
quadros que formam a tomada em questao. E o que
Cartier-Bresson--referindo-se a fotografia--chamou de 'momento
decisivo'."
(Murch, 2004, p. 44)
Aqui, o olhar, obviamente, nao recai sobre a fotografia e
iluminacao dos frames; porem, a relevancia do seu conceito diz respeito
ao aspecto representativo da imagem, isto e, tal frame visibiliza
significancias para alem das descricoes conteudisticas. O movimento e
sempre direcionado para a desconstrucao, de maneira a passar pelas
consideracoes ja habituais do trailer. Assim, propomos: identificar qual
a promessa do trailer e seu carater publicitario, buscar o que ha de
especifico em cada trailer e agrupar tendencias (se existirem) em um
arquivo e, por ultimo entao, buscar as possibilidades de concepcoes
sobre o audiovisual: "o que este trailer x me diz sobre uma dada
producao audiovisual? De que forma ele contribui na reflexao conceitual
e pratica do audiovisual?".
Cidadao Kane
A imagem que abre o trailer de Cidadao Kane e a marca da RKO Radio
Pictures, e, logo em seguida, corta-se para o estudio de som, onde um
feixe de luz direcional ilumina um microfone. A partir dai a voz de
Orson Welles se poe a narrar, em nome dos estudios Mercury. O diretor e
narrador se identifica no comeco da fala e logo explicita a intencao do
presente trailer: "O que veremos a seguir serve para publicizar
nosso primeiro longa-metragem, o nome do filme e Cidadao Kane, e
esperamos poder chama-lo de uma possivel atracao" (4).
Este comeco explicita uma dada funcao publicitaria, fortemente
ressaltada pelas proprias palavras do diretor. No entanto, o que vemos,
posteriormente a isso, foge as regras e estrategias utilizadas nos
trailers, pois o que e dado ao conhecimento do espectador,
diferentemente de outros trailers que buscam contar a historia do filme,
mostrando cenas do mesmo, e o backstage da producao e os artistas que
fazem parte da equipe. Orson Welles opta por fazer uma apresentacao de
seu elenco de atores e atrizes, para depois, entao, narrar sobre o que
trata seu filme. Ele ocupa a posicao de um divulgador dos astros de seu
filme (Star system), bem como um propagador das celebridades do estudio
responsavel pela producao, uma vez que esses sao membros integrantes
("propriedade") do proprio Mercury Studio (Studio system). O
objetivo aqui nao e apenas divulgar um filme, mas uma equipe, um grupo
de pessoas que faz o filme acontecer.
Dai que a promessa do trailer recai de forma central nao sobre
questoes de genero ou de estetica, mas sobre a figura do
personagem-titulo, nao apenas pelo discurso dos personagens, mas tambem,
e principalmente, pelo fato de que ao final do trailer Orson Welles,
cuja imagem nao nos e mostrada, revela ao espectador que ele mesmo
interpreta o papel de Kane.
A publicidade paira sobre a atmosfera do trailer de Cidadao Kane
tal como um fantasma, pois ainda que Welles realize um trailer distinto
e inovador, ha que se considerar que tal realizacao funciona como uma
estrategia persuasiva, a fim de que o diretor conseguisse vender e fazer
sucesso com seu primeiro filme. Ora, em uma epoca em que as disputas
entre os grandes estudios comecavam a se delinear cada vez mais fortes,
os trailers instigantes e 'diferentes' constituiam boas armas
do negocio cinematografico. Consideramos, evidentemente, que o apelo
comercial esteja rondando o trailer de Cidadao Kane. Mas, para alem das
fortes marcas da publicidade e da inovacao, tambem identificamos neste
trailer uma discussao mais profunda que se refere as dimensoes sonoras e
visuais da producao cinematografica. Tal aspecto pode ser identificado a
partir de elementos especificos que o trailer de Cidadao Kane contem.
Podemos dizer que, mais do que saber sobre o filme, o que importa, e
conhecer quem faz o filme, quem esta por detras das 'mascaras dos
personagens'. Com relacao a isso, o regime operado por Welles no
trailer e o de enunciar o ator ou atriz que estaremos visualizando na
tela. Porem, vale mencionar que o que vemos sao cenas mostrando esses
artistas nos seus momentos de ensaio, de preparo, de intervalo; enfim, o
espectador e conduzido ao backstage, e inserido no universo da producao
cinematografica, o que, obviamente, da a sequencia um tom do que hoje
conhecemos por making of.
Todas as cenas que aparecem nao estao relacionadas ao filme ou a
historia do filme. Mas, entao, o que essas imagens produzem? Se
lembrarmos das consideracoes de Derrida acerca dos rastros, podemos
entender que tais imagens presentes nao estao sozinhas, nem mesmo
encerram em si suas significacoes. Ao contrario, operam marcas
remissivas a outro "tipo" de trailer. Um trailer que se faz ao
mostrar o backstage, ao revelar o que acontece por detras das cameras,
ao enunciar e tornar visivel o making of das producoes. Isso nos leva a
considerar um jogo de devires entre os making of e os trailers. Nao se
pode mais falar em definicoes universais, apenas no vir a ser dos
objetos.
O que tambem podemos observar no trailer e a estrategia de Orson
Welles em se colocar como narrador e, para isso, utilizar a imagem de um
microfone. O diretor que ganhou notoriedade com suas locucoes no radio
ocupa esse lugar novamente, e acaba possibilitando, tambem, uma reflexao
sobre o som e a imagem no cinema. E relevante lembrar que o advento
sonoro no cinema data de 1930, e por mais que tenham se passado dez anos
quando do lancamento de Cidadao Kane, tal problematica ainda se fazia
presente, como se faz ate hoje. Ha quem diga que cinema e imagem em
movimento, e que o sonoro nao desempenha papel determinante, que esse e
apenas um preenchimento da obra. Ha tambem aqueles que na epoca, tal
como Chaplin, detestaram a possibilidade de falas no cinema, e ha
aqueles que por causa disso perderam seus empregos como atores ou
atrizes, ja que seus rostos ficavam otimos na tela, mas suas vozes nao.
Ao se esconder atras da voz e da imagem do microfone, Orson Welles
faz despontar uma relacao tensa entre som e imagem. Tensa, pois se
valoriza extremamente, no seu trailer, o regime sonoro, e atraves de
seus comandos verbais e audiveis (palavras de ordem) que a imagem se da
a ver. Ou melhor, a palavra, o som, tem voz de comando no cinema; ela
tambem, tal qual a imagem, "ilumina", ja que sao as falas e os
dizeres os responsaveis por "iluminarem" um dado Cidadao Kane.
De uma maneira geral, o trailer de Cidadao Kane pode ser dividido nessas
tres grandes partes (inicio, meio e final do trailer) que sao
intercaladas pelas imagens do elenco no backstage e pelas cenas dos
personagens falando sobre Kane. O curioso e que essas imagens em que os
personagens aparecem nao fazem parte do filme, sao cenas que foram
cortadas da edicao final do filme. Tudo o que o espectador ve neste
trailer nao esta no filme. Acreditamos que essa falta de
referencialidade ao filme e a maior especificidade do trailer de Welles,
aspecto que vem ao encontro das ideias de desreferenciacao do trailer em
relacao ao filme e da sua potencialidade de gerar textos diferentes
daqueles a que estamos habituados.
Psicose
Assim como o trailer de Cidadao Kane, o trailer de Psicose agrega o
carater inovador ao apresentar o diretor Alfred Hitchcock como o
condutor do passeio pela locacao de seu novo filme. Aqui a marca da
autoria parece ser mais forte pelo fato de que podemos ver Hitchcock.
Este trailer faz dos locais e dos cenarios personagens do filme, e a
forma como eles sao descritos busca mostra-los nao como algo construido
para a obra, mas como algo pertencente a realidade. Isso fica bastante
claro quando o diretor diz "Eu acho que nos podemos entrar porque a
casa esta a venda. Oh, mas nao sei quem poderia compra-la agora"
(5).
O trailer de Psicose e pura promessa, pois a todo o momento o
relato e suspenso por comentarios do tipo "e dificil de
descrever", "so voce vendo" ou entao por cortes da fala
interrompida por novos direcionamentos do espectador na locacao, do tipo
"vamos ate la embaixo", "vamos ate o quarto". Todos
esses movimentos contribuem para que o publico fique imaginando a cena e
como ela e filmada, isto e, a brincadeira de comecar a contar uma
historia e subitamente interrompe-la, certamente, instiga e captura a
atencao da audiencia. Porem, retomando a ideia da figura de Hitchcock
como investimento de valor e credibilidade, tambem vemos a presenca do
diretor como a evidencia de uma promessa personificada, que usa das
omissoes descritivas das cenas para desviar do fato de que aqui o autor
e a promessa e o fantasma, e nao o genero do filme ou o suspense das
cenas. O aspecto publicitario, neste caso, e o proprio fantasma
Hitchcock, que perambula pelo cenario de seu mais novo filme e, ainda
por cima, conversa com o espectador.
Vale referir ainda que no final do trailer o espectador e
surpreendido pelo corte brusco de Hitchcock para a cena do chuveiro em
que o grito da vitima e a trilha sonora bastante forte criam a atmosfera
do horror. Subsequente a isso, aparecem as inscricoes graficas
direcionadas ao publico: "O filme que voce DEVE assistir desde o
comeco ... ou nao ... porque ninguem ficara sentado depois de comecar
PSICOSE (6)" (sic).
O que se percebe nesse trailer e o cuidado e a intencionalidade da
narrativa. Existe o objetivo de contar algo, e o relevante nisso tudo e
que, por mais que Hitchcock saiba que se trata de um filme, de uma
historia ficcional, ele busca contar os acontecimentos inserindo-os em
uma dada realidade (1) extra-diegetica ou (2) diegetica. Se observarmos
o tempo do verbo utilizado na narracao, veremos que se trata de um tempo
passado: ou (1) os eventos realmente aconteceram (sao reais, estao para
fora do filme); ou (2) sao eventos que fazem parte de um filme, de um
filme que ja foi feito, quer dizer, o trailer localiza-se num tempo
pos-filme, desse modo os acontecimentos seriam diegeticos. De uma
maneira ou de outra, o que parece despontar neste trailer e a relacao de
Hitchcock com o cinema, com a imagem: uma imagem sem tempo, uma imagem
que e conceitual. Sua preocupacao jaz sobre os enquadramentos que
valorizam a cena filmica e investem valores sobre ela. Ele complementa
tal perspectiva ao recobrir sua narracao com adjetivos e tentativa de
descricoes minuciosas, mas que sao suspensas com o intuito de instigar a
curiosidade do espectador.
O relato verbal, que e enunciado por Hitchcock, nao e inteiramente
dado a conhecer, pois as enunciacoes descritivas dos assassinatos nao
sao visiveis. O que acontece no trailer e o atento acompanhamento da
camera, que se preocupa em tornar visiveis os ambientes em que o diretor
se encontra. Dai que temos planos abertos para inserir o espectador na
atmosfera do cenario, planos fechados no rosto do diretor para legitimar
sua posicao de contador e orquestrador da historia, e planos medios, de
modo a enquadrar a movimentacao de Hitchcock pelo espaco. Devemos
ressaltar tambem, o tom bem-humorado da narrativa, que combina uma
trilha sonora dividida entre os momentos tensos e ironicos das falas.
Com Hitchcock, temos um trailer em que nenhuma cena corresponde ao
filme original. Podemos identificar aqui uma peca audiovisual bastante
independente do filme, uma vez que a narrativa, ainda que faca mencao a
algo ja ocorrido (no caso, o proprio filme), pode ser, suficientemente,
fechada em si mesma. E como se estivessemos diante de um
trailer-curta-metragem ou ate mesmo um trailer-making of, isto e, as
linhas de fuga que coexistem no interior do trailer-publicidade de
Psicose movimentam-se no sentido de agenciarem e reivindicarem outros
lugares de ocupacao para o trailer: "as multiplicidades definem-se
pelo externo, pela linha de fuga, segundo a qual elas mudam de natureza
e se conectam a outras multilplicidades" (Marcondes Filho, 2004, p.
150). Em outras palavras, teriamos a mobilidade das fronteiras da
publicidade e do cinema configurando experimentacoes e transformacoes
que conduzem a formacao de outros territorios, tais como o
trailer-curta-metragem e o trailer-making of, uma vez que "as
linhas de fuga, que atravessam as territorialidades, dao provas da
presenca nelas do imperceptivel, do inencontravel (da
desterritorializacao) e de sua intervencao efetiva
(reterritorializacao)" (Marcondes Filho, 2004, p. 151). Trailers
que assumem o papel de versoes curtas do longa-metragem, ou trailers em
que as marcas de uma narrativa making of se sobressaltam, sao exemplos
de elementos que escapam aos modelos preconcebidos de uma dada producao
audiovisual, mas que obviamente irao encontrar reorganizacoes que
estratificam, novamente, essas producoes.
No trailer de Psicose "falar e ver, ou melhor, os enunciados e
as visibilidades, sao elementos puros, condicoes a priori sob as quais
todas as ideias se formulam num momento e os comportamentos se
manifestam" (Deleuze, 2006, p. 69). Assim sendo, Hitchcock se faz
ver, mas nessa visibilidade existe tambem um enunciado, pois como diz
Deleuze (2006, p. 69), que tudo seja sempre dito, em cada epoca, talvez
seja esse o maior principio historico de Foucault: atras da cortina nao
ha nada para se ver, mas seria ainda mais importante, a cada vez,
descrever a cortina ou o pedestal, pois nada ha atras ou embaixo. Ou
seja, ha que se olhar para a complexidade da construcao audiovisual
trailerifica procurando nao o que se esconde, pois nao ha nada ali, e
sim, procurando observar o modo como as coisas se fazem ver num
determinado tempo. Dai que os enunciados estao do lado de uma formacao
historica, mas neles subsistem formas e funcoes relacionadas a outros
discursos produtivos e esteticos do trailer, que permitem uma reescrita
dos conceitos e das regras que lhes dao materialidade.
Laranja Mecanica
Ao som da Abertura de Guilherme Tell de Rossini, em ritmo mais
acelerado, Kubrick faz do trailer de Laranja mecanica (7) um espetaculo
visual que desorienta qualquer espectador, ao mesmo tempo em que o
convida para uma viagem ao desconhecido, sem revelar nada da trama do
filme. Mistura cenas aleatoriamente, intercalando-as com inscricoes de
palavras na tela. Sao essas palavras que, de certa forma, constroem uma
possivel promessa da obra, ou seja, temos adjetivos e substantivos
qualificando o filme: "mordaz, engracado, satirico, excitante,
bizarro, politico, emocionante, assustador, metaforico, comico,
sarcastico, Beethoven" (8).
Tais palavras sao referencias para a obra, que possibilitam dizer
que sobre elas recai o potencial de vender uma ideia do filme, ou
melhor, uma ideia dos temas que circundam o filme, pois o carater nao
narrativo do trailer impossibilita a construcao ordenada de qualquer
tipo de trama. Dai que o aspecto publicitario deste trailer se encontra
no fato de que nada da historia do filme e revelado, ou seja, temos uma
valorizacao e promessa do plano expressivo em detrimento do narrativo. E
nesta construcao que o fantasma publicitario se manifesta, com promessas
que nao sao objetivas, cujo funcionamento se instaura no nivel da
experiencia estetica provocada no espectador, que podera ou nao
engajar-se na proposta. De qualquer forma, o espirito consumidor e
despertado no plano de expectativas pelo que podera ver, o que se
instaura enquanto uma marca da estrategia publicitaria.
Sustentado por uma montagem ritmica, que acompanha a aceleracao da
musica de Rossini, bem como por uma alternancia de cenas e palavras, tal
como a clipagem, o trailer de Kubrick encontra sua especificidade na
experimentacao de uma linguagem bastante proxima do que hoje conhecemos
por "videoclipe". "Com efeito, nao e raro verem-se
montagens destinadas a produzir um conceito [...] associado a um
produto, mais do que a narracao de uma historia demonstrativa"
(Joly, 2002, p. 223). Isto e, o que o trailer de Laranja mecanica se
propoe e jogar com os "conceitos" propostos pelas palavras que
aparecem na tela entre as cenas.
De forma emocionante, mas tambem assustadora, politica e comica,
temos um trailer cuja estetica rompe com a logica narrativa da epoca,
bem como com a logica expressiva, ja que as sobreposicoes de imagens sao
experimentalmente realizadas. Tais sobreposicoes serao fortemente
desenvolvidas a partir da decada de 80 com as producoes videograficas.
Ou seja, quando Kubrick gritava no set "Luz, video, acao", e
como se ele estivesse antevendo as transformacoes esteticas. Dai que os
movimentos de significacao em suas obras contenham elementos cujos
rastros nos remetem a um dado futuro.
No caso do trailer de Laranja mecanica, existem imagens que
conservam marcas de uma producao audiovisual passada bem como futura: o
analogico com inscricoes e modificacoes que remetem as tecnicas digitais
contemporaneas. O conhecimento da tecnica, e tambem da linguagem, passa
a ser exigido do espectador. Isso passa a ser intensificado no final do
seculo XX com a imagem analogicodigital.
No caso do trailer de Laranja mecanica, trata-se de uma modalidade
de discurso audiovisual energetico, "neste caso, a tendencia e que
a ideia de producao de sentidos propriamente dita seja substituida pela
producao de afetos" (Bamba, 2005, p. 321). O enunciavel e tambem
visivel, e sua importancia se da em termos de direcionamento do olhar
sobre a propria obra do trailer, ou seja, e como se as palavras fossem
referenciais a ambos, ao filme e ao trailer, pois os conceitos de
"mordaz, engracado, satirico, excitante, bizarro, politico,
emocionante, assustador, metaforico, comico, sarcastico, Beethoven"
estao presentes na propria estetica do trailer.
A aproximacao com a linguagem videocliptica se da pela fragmentacao
da narrativa e do significado, "podendo acarretar em adiamentos de
sentido ou um "soterramento" deste sentido (o sentido
encontra-se "submerso", no meio das tramas das imagens
"recortadas")" (Soares, 2004, p. 15). Cabe ressaltar que
a relacao com a musica tambem e um elemento chave no trailer de Laranja
mecanica; mais um motivo que nos leva a pensa-lo paralelamente ao
videoclipe, uma vez que neste a musica e um constituinte responsavel
pelo ritmo da montagem: "se a cancao apresenta-se mais
"rapida", por exemplo, atraves de arranjos eletronicos e
batidas sincopadas, ha uma tendencia que o videoclipe tambem se
referencie com uma edicao mais rapida" (Soares, 2004, p. 31). E e
justamente isso que acontece nesse trailer: a relacao entre a musica e a
imagem se efetiva.
As cenas que aparecem alternadamente fazem parte do filme; no
entanto, a alternancia acelerada, no intuito de acompanhar a musica,
gera bastante desconforto e confusao no espectador, de modo a nao
comprometer a historia. Kubrick proporciona inovacoes na linguagem
trailerifica, as quais estao mais proximas de obras de valor estetico do
que comercial, no caso de Laranja mecanica. Alem disso, percebe-se que
tal como os trailers de Cidadao Kane e de Psicose, o trailer de Laranja
mecanica apoiase no fator diretor, ou seja, ressalta-se o fato de que o
filme e de Stanley Kubrick, pois isso confere legitimidade e
credibilidade a producao. Tanto na abertura do trailer como no
encerramento, aparece na tela "Stanley Kubrick's Clockwork
Orange", sob as variacoes de fundo colorido, que sao quase
imperceptiveis devido a rapidez com que surgem na tela.
As producoes atuais incorporam muitos aspectos da estetica
videocliptica: no entanto o mais comum e encontrarmos uma composicao
trailerifica que conjuga momentos de objetividade narrativa com momentos
de espetaculo audiovisual. Geralmente, em uma primeira parte do trailer
existe uma preocupacao com o fornecimento de informacoes atraves de uma
construcao discursiva em que se salientam aspectos concernentes ao
genero do filme, ao diretor, ao elenco e a trama, e, em um segundo
momento, opta-se por uma montagem que justapoe cenas, aleatoriamente,
combinadas a uma determinada musica. Em alguns casos esses momentos nao
ocorrem separadamente, mas de forma concomitante, isto e, a trilha
sonora dita o ritmo da montagem das imagens, dos dialogos, das insercoes
graficas que acontecem ao longo de todo o trailer, tal como uma
composicao.
Por vezes essa composicao sofre rupturas, diferenciacoes as quais
merecem uma atencao redobrada, pois e diante desses movimentos,
aparentemente estranhos, que conseguimos identificar as potencias
produtivas e esteticas que coexistem dentro das padronizacoes e dos
modelos. E o caso de trailers de Laranja mecanica, Cidadao Kane,
Psicose, os quais, ainda que assombrados pelos fantasmas da publicidade,
instauram relacoes para alem do filme, evidenciando preocupacoes tambem
de ordem estetica tanto quanto o filme que anunciam, porem a partir de
procedimentos semioticos diversos.
O arquivo trailerifico: Welles, Hitchcock e Kubrick
A composicao de um arquivo constitui, neste artigo, uma pratica
desconstrutiva, ja que, em primeiro lugar, trabalhamos para entender uma
dada logica de composicao do trailer, para observar e capturar elementos
que escapam a essa logica e que configuram outra ordem de construcao,
minoritaria, um cinema menos, em lingua menor (9).
No que diz respeito a Cidadao Kane, Psicose e Laranja mecanica,
evidenciam-se neles certas regularidades especificas, certas tendencias
narrativas, produtivas e esteticas.
No arquivo que montamos com os trailers desses filmes, o traco mais
importante esta vinculado a um fazer autoral do trailer e nao apenas do
filme. Haveria um trailer de autor? Welles, Hitchcock e Kubrick produzem
pecas trailerificas autorais, e cada uma delas revela suas concepcoes
sobre o audiovisual.
Em Cidadao Kane, Orson Welles tensiona a relacao entre o som e a
luz no cinema, uma vez que o fio narrativo condutor de todo trailer diz
respeito a voz do diretor, que em momento algum e iluminada pela imagem.
Quer dizer, o som e o que comanda a imagem, ja que essas apenas aparecem
quando Welles "ordena" que elas aparecam. Alem disso, o fato
de nao utilizar cenas do filme e de visibilizar o backstage da producao
instaura um movimento que pensa o trailer como uma peca com certa
autonomia, que funciona sem precisar recorrer aos pedacos do filme.
No caso de Psicose, Hitchcock tambem nao utiliza cenas do filme e
reforca a autoralidade, tornando-se visivel e presente durante o
trailer. Produz uma reflexao sobre a dimensao temporal da imagem, pois o
tempo do trailer, que via de regra e anterior ao filme, neste caso
situa-se no pos-filme. Isso fica evidente na sua fala, ao descrever
aquilo que ja aconteceu no cenario--o proprio filme. Hitchcock, ao fazer
isso, de certa forma, tensiona a preocupacao do cinema de localizar suas
historias em um espaco-tempo determinados, e propoe uma operacao com
imagens sem tempo, imagens que sao conceituais.
Ja em Laranja mecanica, Kubrick explicita suas criticas sobre as
producoes cinematograficas industrialmente organizadas. Por isso busca
no ritmo acelerado e no acompanhamento da trilha sonora o
desenvolvimento de uma linguagem desarmonica, ironica e fragmentada,
passivel de comparacao com o videoclipe, cujos elementos apontam outros
rumos para a producao audiovisual.
De uma maneira geral, as experiencias de Cidadao Kane, Psicose e
Laranja mecanica podem ser consideradas "trailers de autor",
ou melhor, de diretores que se colocaram imersos no universo de uma dada
producao, e que vislumbraram nos trailers um novo espaco--independente
do filme--, de expressao politica e conceitual sobre a realizacao
cinematografica. A formacao de um arquivo audiovisual permite, portanto,
o reconhecimento de modos de expressao minoritarios do trailer e a
criacao de acontecimentos audiovisuais 'menores' (na
perspectiva deleuzeana). As relacoes entre os seus componentes
evidenciam praticas e concepcoes de autoria, originalidade, producao e
circulacao do audiovisual. Os trailers analisados sao obras com
abordagens especificas (visuais, narrativas e tematicas), extrapolam a
funcao publicitaria, e instauram uma ordem discursiva que movimenta as
experiencias autonomas da producao trailerifica. Dai que o arquivo
"e o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa; e o
sistema de seu funcionamento" (Foucault, 1995, p. 149).
A formacao de um arquivo audiovisual permite, portanto, o
reconhecimento de modos de expressao minoritarios do trailer e a criacao
de acontecimentos audiovisuais inusitados, por vezes. O que se reforca,
portanto, e que o trailer nao esta relacionado apenas com o cinema ou
com a publicidade, mas, para alem deles, conecta-se com outras maquinas
audiovisuais agenciando novas paisagens. Sendo assim, descrevendo os
componentes do arquivo, constata-se que a maquina trailer funciona e
produz reflexoes acerca de si mesmo.
Enunciados recorrentes em diferentes trailers integram o arquivo,
de modo que os mesmos se poem em relacao com outros enunciados e outras
visibilidades, o que produz as multiplicidades do ser, ou seja, a cada
relacao o ser-trailer pode vir a ser outro. Trata-se de observacoes em
dispersao que, agregadas no arquivo, permitem perceber um movimento de
autoria trailerifica que se constroi nas relacoes com outros corpos
audiovisuais.
O arquivo, trabalhado nessa perspectiva, enquanto um lugar em que
se agrupam tendencias esteticas visiveis e enunciaveis, propoe uma
postura metodologica capaz de dar a ver dimensoes inusitadas do trailer,
tantas vezes pensado como mera peca mercadologica.
REFERENCIAS
BAMBA, Mohamed. Proposta para uma abordagem critica do trailer. In:
CATANI, Afranio Mendes; GARCIA, Wilson; FABRIS, Mariarosalia (Org.).
Estudos Socine de Cinema: ano VI. Sao Paulo: Nojosa Edicoes, 2005. pp.
317-324. Disponivel em:
<http://www.socine.org.br/livro/VI_Estudos_Socine.pdf>. Acesso em:
18 jul. 2013.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
DELEUZE, Gilles. Kafka, por uma literatura menor. Rio de Janeiro:
Imago, 1977.
--. Logica do sentido. Sao Paulo: Perspectiva, 1989.
--. Foucault. Sao Paulo: Brasiliense, 2006.
DERRIDA, Jacques. Posicoes. Belo Horizonte: Autentica, 2001.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense,
1995.
JOLY, Martine. A imagem e a sua interpretacao. Lisboa: Edicoes 70,
2002.
MARCONDES FILHO, Ciro. O escavador de silencios. Sao Paulo: Paulus,
2004.
MURCH, Walter. Num piscar de olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004.
NOTH, Winfried. Maquinas semioticas. Revista Galaxia, Sao Paulo, v.
1, n. 1, pp. 51-73, 2001.
--. Panorama da semiotica de Platao a Peirce. Sao Paulo: Annablume,
2003.
PELBART, Peter P. O tempo nao reconciliado. Sao Paulo: Perspectiva,
2004.
POWELL, Jim. Derrida para principiantes. Buenos Aires: Era Naciente
SRL, 1997.
SOARES, Thiago. Videoclipe: o elogio da desarmonia. Recife: Autor,
2004.
NOTAS
(1) De acordo com Pelbart (2004, pp. 67-68), o tempo de Aion e o
tempo incorporal, da co-presenca, nao linear.
(2) Traducao do revisor. "Es un estadio de inversion necesario
para subvertir la jerarquia original de modo tal que el primer
componente pase a ser al segundo".
(3) A voz over e aquela cuja fonte encontra-se fora do universo
diegetico, tal como uma instancia narradora fora do filme e/ou do
trailer. Esse e um uso bastante recorrente na producao
'trailerifica'.
(4) "What follows is supposed to advertise our first motion
picture, Citizen Kane is the title and we hope it can correctly be
called a coming attraction".
(5) "I think we can go inside because the place is up for
sale. Oh, I don't know who could it buy it now".
(6) "The picture you MUST see from the beginning ... Or not at
all! ... for no one will be seated after the start of ... PSYCHO".
(7) Trata-se de uma adaptacao do romance de Anthony Burgess do ano
de 1962.
(8) "witty, funny, satiric, musical, exciting, bizarre,
political, thrilling, frightening, metaphorical, comic, sardonic,
Beethoven".
(9) Em Kafka, Gilles Deleuze (1977) refere-se a uma literatura
menos para discutir questoes semelhantes as nossas.
Alexandre Rocha da Silva
Professor do Programa de Pos-Graduacao em Comunicacao e Informacao
da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicacao da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul--UFRGS.
<
[email protected]>
Patricia de Oliveira Iuva
Doutoranda em Comunicacao e Informacao pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul--UFRGS.
<
[email protected]>