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文章基本信息

  • 标题:The cosplay scene: bonds and production of subjectivity/A cena cosplay: vinculacoes e producao de subjetividade.
  • 作者:Nunes, Monica Rebecca Ferrari
  • 期刊名称:Revista Famecos - Midia, Cultura e Tecnologia
  • 印刷版ISSN:1415-0549
  • 出版年度:2013
  • 期号:May
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Editora da PUCRS
  • 摘要:Seu olhar volta-se para o alto da cabeca e conforme acerta a touca Pikachu personagem bastante apreciada do anime Pokemon--ajeita o cabelo e, falante, recebe os jovens de perucas e roupas coloridas, plugados aos fones de ouvido, que aos poucos tomam seus acentos na conducao. O onibus arranca. Abre-se, assim, a cena cosplay.
  • 关键词:Anime (Animation);Cosplay;Festivals

The cosplay scene: bonds and production of subjectivity/A cena cosplay: vinculacoes e producao de subjetividade.


Nunes, Monica Rebecca Ferrari


Sexta-feira, manha. Zona Leste da cidade de Sao Paulo. Estacao do metro Carrao. Dirijo-me a bilheteria e pergunto sobre o onibus que devera percorrer o trajeto entre o terminal e a Universidade Cruzeiro do Sul, onde ocorre o Anime Dreams 2012. O atendente explica com paciencia. Caminho um pouco, o sol de janeiro escalda a calcada e a paisagem arida. Logo a frente, um lugar marcado no meio fio sugere o espaco destinado a parada do veiculo. Dois rapazes morenos, simpaticos, aplacam meu desconhecimento. Um deles, Eduardo, motorista do transporte, reclama: "Vou comecar a pagar mico [...] ter que por isso aqui".

Seu olhar volta-se para o alto da cabeca e conforme acerta a touca Pikachu personagem bastante apreciada do anime Pokemon--ajeita o cabelo e, falante, recebe os jovens de perucas e roupas coloridas, plugados aos fones de ouvido, que aos poucos tomam seus acentos na conducao. O onibus arranca. Abre-se, assim, a cena cosplay.

Composta pela juncao dos vocabulos, em ingles, cos = costume e play = brincar, jogar, encenar, a palavra diz respeito as praticas de comunicacao e de significacao culturais vividas por jovens que se vestem e atuam como seus personagens preferidos. Amiude compartilham, com outros fas, este desejo nas redes sociais, em encontros informais, em parques, em reunioes caseiras ou em grandes eventos, como o Anime Dreams, analisado aqui, que acontece em tres periodos em Sao Paulo: janeiro, julho e dezembro.

Surgida nos EUA, em 1930, nas convencoes de ficcao cientifica, e renovada no Japao, durante os anos 90, na continuidade do sucesso comercial dos mangas--historias em quadrinhos japonesas impressas em papel jornal, em preto e branco, que podem ser, posteriormente, animadas para videos e para a teve, sob a denominacao de animes--a pratica do cosplay chegou ao Brasil entre 1996 e 1997 (Amaral, Duarte, 2008; Coelho Jr., Silva, 2007). A cada ano, as convencoes abarcam mais integrantes em diversas regioes do pais, do sul ao nordeste, inclusive nas cidades do interior de Sao Paulo.

Digna de nota, esta pratica se multiplica em variadas direcoes eletivas, nao se limitando aos personagens da cultura pop japonesa, como mangas, animes ou os live-actions de onde surgiram os tokusatsus (2), mas tambem incorporando outros signos como Lady Gaga, Michael Jackson ou videogames cujos personagens nao sao orientais, tais quais o Super Mario e Luigi, pequenos italianos que atravessam varios mundos em busca da namorada de Mario, uma princesa sequestrada. As personagens literarias e cinematograficas de antigas ou novas producoes de sucesso tambem compoem a intrincada rede de preferencias memoraveis destes jovens urbanos. Esmeralda, Quasimodo, Harry Potter ou os Dementadores--assombrosas criaturas depressivas criadas por J. K. Rowling--sao tao queridos quanto Naruto, Yagami Raito, Misa ou Sakura Card Captors, personagens de animes muito populares no Anime Dreams 2012.

A cena cosplay mobiliza narrativas midiaticas e emocoes nascidas da interface comunicacao e consumo que, por seu turno, relaciona-se as construcoes de vinculos entre publico e midia, tao fundamentais nas culturas juvenis. Sabe-se que estes lacos se intensificaram no inicio do seculo XX quando floresceu a industria do entretenimento. Este artigo perscruta, justamente, as formas de vinculacao estabelecidas entre o cosplayer e o cosplay, e entre os proprios cosplayers para apontar, nas ranhuras urbanas, formas de sociabilidade e configuracoes subjetivas geradas, conforme Guattari (2005; 1988; 1993).

Por isso, as reflexoes propostas recuperam, brevemente, marcos da cultura de massa e das midias que investiram nas emocoes do publico, para, a seguir, mapear os motivos da realizacao do cosplay, os movimentos de selecao e escolha de um determinado personagem, os circuitos de transmissao e consumo de personagens e narrativas. Os depoimentos alinhavados, no decorrer deste trabalho, evidenciam processos de singularizacao (3) e "a nocao de resistencia 'plural, diversa, polimorfa', vinculada a experiencias (mesmo que temporarias) [...] de relativizacao das identidades e de recusa as formas 'normais' ou convencionais de comunicacao [...]" (Freire Filho, 2007, p. 52).

Contudo, estes processos, que podem ser nomeados, seguindo Guattari (2005, p. 54), como revolucoes moleculares ou o atrevimento de singularizar convivem, aqui, com mecanismos disciplinares incidindo sobre os corpos destes jovens, sobre o tempo e o espaco onde circulam a festa, culturalmente vivenciada como espacotempo de rupturas e de estados alterados da consciencia, torna-se um "bom evento": com policiamento, sem bebida, sem bagunca, conforme relatam alguns dos cosplayers entrevistados. Tais pontos tambem sao objetos de inquietacao e investigacao neste paper.

A producao midiatica e as emocoes do publico

Conforme relata o historiador, Nicolau Sevcenko (2001), em 1903, foi inaugurado, nos EUA, o Luna Park--um gigante parque de diversoes, composto por enormes montanhas russas, cinemas e brinquedos eletricos. Rapidamente estes parques se reproduziram por todo o mundo. Era a Tecnologia do Fantastico usada para entreter as massas urbanas, e tambem as populacoes rurais que experimentavam a metropole por meio da diversao.

Ao longo das primeiras decadas do seculo XX, as emocoes do publico foram sendo produzidas e amplificadas com o auxilio do cinema, que ganhou som em 1927, fortalecendo a seducao das imagens velozes. Da eletrola que permitiu aos discos sairem dos lares e chegarem aos saloes de bailes, assim como o radio ganhou os espacos publicos. E, finalmente a televisao integrou uma rede de meios tecnicos que proporcionaram mudancas de percepcao do publico e novos modos de construcao das subjetividades. Vale lembrar ainda, que o "Capitalismo Mundial Integrado tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas de producao de bens e servicos para as estrutura de producao de signos, sintaxes e subjetividades" (Guattari, 1993, p. 31), o que se verificou na consecucao da nova maquina de producao de subjetividade que surgia: a cultura de massa.

Assim, as radios tocavam as musicas da industria fonografica, que tinham sido lancadas pelos filmes musicais. Dali, astros e atrizes, cantores, cantoras tinham suas vidas esquadrinhadas pelos programas populares de auditorio e sessoes fotograficas das radios. Os anuncios publicitarios ligavam os produtos ao estilo de vida dos astros do cinema, do radio, e, posteriormente, da televisao.

Edgar Morin (1987) aponta outra variacao gerada pela cultura de massa: a categoria do heroi--que deixou de ser o heroi que se conheceu desde as primeiras tragedias gregas, perpetuado na literatura ocidental, com variacoes dramaticas (a luta contra a fatalidade, o conflito com a natureza, a cidade, o outro) que se solucionavam com a morte ou a expiacao de seus atos desmedidos. Agora, o heroi protagonizado no cinema, nas ficcoes seriadas radiofonicas e televisuais, e o heroi simpatico contemplado pelo happy end. Toda esta conjuntura, o entretenimento, as emocoes, o novo heroi massivo, aproximou afetivamente o publico ao artista e ao seu estilo de vida.

Teoricamente a relacao afetiva entre o fa e o astro e assimetrica. Fa e artista nao compartilham os episodios de suas vidas da mesma forma. Alem do afeto incondicional, o fa conhece intimamente aquele produto, seja ele um astro, uma personagem ou narrativa, e, sobretudo, consome seus derivados, a exemplo dos cosplayers, que consomem os animes, mangas, livros sobre mitologias, filmes, bottons, toucas, bones, camisetas, mochilas, mascaras, cards, cartas de animes que servem como jogo--colecoes de DVDs, pulseiras, aneis e, durante os encontros, reproduzem nao so as roupas de personagens preferidos ou seus acessorios, mas tambem seus gestos e suas performances.

Neste grupo particular de fas, o que se pode observar e um direcionamento do afeto para a personagem, deslocando este afeto ao astro que interpreta. Dependendo da atividade proposta nos eventos de cosplay, a personagem favorita e subtraida da propria narrativa de onde surgiu--como nos desfiles, pois o que esta em jogo e a perfeicao do cosplay e a cena representada.

Para compreender esse fenomeno, talvez a tese do historiador da cultura, Neal Gabler (1999), possa ajudar. Ele afirma que o cinema inicialmente reproduzia a vida nas telas, era o filme-vida, e, posteriormente, com o auxilio dos jornais, das revistas, do radio e da televisao, a vida dos atores se tornou objeto de idolatria. E o fenomeno da celebridade com sua vida intima, os lifes, repletos de emocoes que tratam de transformar a propria vida em filme.

Parece que a pratica do cosplay responde tambem a essa dinamica, ainda que em suas multiplas ocorrencias e variacoes. As personagens sao mais reais que seus interpretes, saem das telas, dos games, dos livros, dos filmes, do mundo da musica pop para a vida. Assim, Lady Gaga e uma artista, mas, como celebridade, e tambem personagem de si mesma, e se iguala a Harry Potter, concebido inicialmente como personagem literario, ou a Sakura, as Meninas Super Poderosas ou Kirby, criados para serem mangas, animes, desenhos e games, mas igualmente celebridades, gracas a circulacao que tem na rede midiatica e os lucros que mobilizam. Todos eles, e outros tantos, podem ser evocados pelo cosplayer, que da vida a personagem, insuflando-lhe animus, pneuma, psiche, o sopro da voz, o ritmo do gesto, a memoria dos atos.

Fazer cosplay

Fazer cosplay nao e somente vestir uma roupa, mas encarnar um personagem, seu jeito, suas poses, seu modo de falar, de se portar (Akemi apud Coelho Jr. et al., 2007). Ou como sintetiza Rafael Akira (4), jornalista e fotografo, 23 anos, cosplayer desde 2005: "toda a vez que eu estou em um evento como um personagem, eu tenho que agir como o personagem agiria".

Mas, por que fazem cosplay? Esta primeira questao, bastante obvia, desvelou aliancas e rupturas entre a producao de subjetividades serializadas, acionada por poderosas maquinas de investimentos identitarios reconhecidos, e subjetividades singulares--possivel quando os inconscientes protestam: "desinvestem-se as linhas de montagem da subjetividade, investem-se outras linhas, inventam-se outros mundos" (Rolnik, 2005, p. 16).

Encontro Fernanda, 13 anos, no terceiro dia do evento--lotado, garoando fininho. A garota fazia cosplay de Kagamine Len--personagem-voz criado para um sintetizador de musicas na internet. Estava acompanhada por Gabriel, cujo cosplay limitava-se a uma daquelas toucas com olhos de bichinhos animados e orelhas caidas pelos ombros. Fernanda responde convicta porque faz cosplay: "E uma liberdade de expressao, e para se libertar da sociedade. Aqui, voce nao tem medo de ser julgado, voce esta numa familia". Gabriel so pode dizer que sua mae nao o deixava participar com um cosplay de verdade Nao sabia explicar os motivos da proibicao materna.

Talvez, fazer cosplay possibilite inventar outro mundo, criar novas territorialidades maquinicas, onde seja viavel se "libertar cada vez mais", como disse outra jovem no primeiro dia do Anime Dreams 2012. Naquela tarde de janeiro, Kakao, "19 eterno", estava montada de fairy kei:5 peruca rosa, tapa orelhas de pelucia rosa e azul, polainas lilases sobre meia calca estampada em tons pasteis, vestido curto, recheado de babados nos mesmos tons, bolsa a tiracolo de coracao, unhas pintadas alternadamente de cor de rosa e azul. Narrou, em longo depoimento, parcialmente transcrito aqui, suas primeiras experiencias com os eventos de cosplay:

"Eu gostava de anime com 13 anos de idade. Eu era totalmente zoada na escola e ai eu me achei... era o mundo que eu me encaixava, o evento era menor... era 99, 2000, o evento era pequeno, mas era um monte de gente igual eu. Eu pensei, poxa, aqui eu nao preciso fingir ser uma pessoa que eu nao sou, posso ser quem eu sou e ai eu fui fazendo cosplay por quase 10 anos

(Kakao, grifos meus)

Ela conta que, gracas ao cosplay, cursou faculdade de moda e descobriu, em um livro, o bairro de Harajuko, no Japao: "eu adorei! Aquilo e uma liberdade de expressao tao grande, por que eu tenho que seguir um padrao? Eu nao tenho que seguir um padrao, e ai eu comecei a me libertar cada vez mais" (Kakao).

Vale observar que ela nao quis dizer sua idade e optou por defini-la como "19 eterno", corroborando as reflexoes de Canevacci sobre as consequencias das culturas juvenis (2005, p. 29): "cada jovem, ou melhor, cada ser humano, cada individuo pode perceber sua propria condicao de jovem como nao terminada ou como nao terminavel".

A juventude infinita de Kakao mostra-se alem do fairy kei, cujo estilo define como "uma coisa Ursinhos Carinhosos, Meu Querido Ponei (6) mais contos de fadas, mas que pega uma vibe anos 80". Muitas sao as estrategias signicas da producao midiatica, o uso da cor, por exemplo, responde "por organizar e hierarquizar informacoes ou lhes atribuir significados" (Guimaraes, 2003, p. 31). A cor-informacao, na midia, tambem regula, classifica e cria ordenacoes sociais, subjetivando seus sujeitos, criando distincoes de genero, de idade, e tantas outras.

Nao por acaso, ursinhos carinhosos e poneis magicos tem corpos coloridos em tons pasteis, cores normatizadas para roupas, brinquedos e acessorios destinados a bebes ou a criancas pequenas, meninas, preferencialmente, reforcando o estereotipo da feminilidade associada a ingenuidade infantil, erigindo, nao raro, um unico jeito de ser menina: menininha doce, ingenua, de rosinha claro. Ao comentar sobre como se veste no cotidiano, Kakao revela as tentativas da producao de subjetividade em escala planetaria e os pontos de ruptura desse complexo dispositivo, parafraseando Guattari e Rolnik (2005), ao consumir os tons pasteis para suas roupas diarias, reproduzindo o discurso dominante das narrativas midiaticas, mas, paradoxalmente, destroi as mesmas ordenacoes sociais, "[...] virando do avesso as categorias que fixavam faixas etarias definidas e claras passagens geracionais" (Canevacci, 2005, p. 28), mesmo quando nao faz cosplay ou a garota fairy kei--e ousa singularizar em outros espacos alem do delimitado para o evento.

"Eu prefiro usar tom clarinho, eu ja passei da idade, mas eu nao ligo. Eu vou numa Marisa assim da vida, secao infantil. Nao compro nada da minha idade [...] vou comprar o que? Uma camisa ... muito chato, nao gosto. Eu gosto de coisa graciosa, que represente um pouco da personalidade."

(Kakao, grifos meus)

Ter 19 anos eternamente, comprar roupas em secoes infantis, transitar pela cidade com olhos de boneca, gracas as pupilas dilatadas pelas lentes de contato, colorir cilios e sombrear as palpebras exageradamente em tons de azul e rosa, em sua rotina, ainda que "usar a peruca ja seja demais", como ela mesma ironiza, demonstram a ressignificacao dos signos apreendidos nos discursos midiaticos hegemonicos. Das cores pasteis dos desenhos animados, que participam do estilo fairy, ao target definido pelo marketing gerenciando lojas de departamentos.

A ressignificacao e a apropriacao destes discursos configuram singularidades e indicam a resistencia a ordenacao de certos codigos de comportamento previstos para o consumo adulto. Aqui e valido pensar na potencia criativa do inconsciente maquinicodesejante, fluido, atravessando as cristalizacoes sociais e produzindo intensidades: a forma de habitar a memoria das fairies expandida na continuidade dos dias.

A liberdade proporcionada pelo ato de fazer cosplay e a tonica de muitos depoentes. Ana Regina, 24 anos, vestida de Zelda, personagem do jogo eletronico da Nintendo, afirma: "todo mundo tem que ser igual. Eu comecei a querer ser diferente". Ainda que a marca da diferenca possa ser compartilhada no evento e neutralizada, a exemplo da fala de Reinaldo, 25 anos, "aqui todo mundo e igual, nao tem diferenca". Os frequentadores entrevistados, presentes no Anime Dreams 2012, parecem sentir que ali e um lugar a margem, livre do outro que exclui o que nao foi normatizado, onde "ninguem estranha nada", conforme relata Beatriz, 19 anos. Um mundo sem conflitos? Outra dimensao, nas palavras de Lucas.

Lucas, assim como Kakao, retrata a escola como lugar em que a construcao da diferenca foi simbolizada negativamente gracas, justamente, as marcas significantes que materializavam singularidades: gostar de animes, com 13 anos, como Kakao, ou vestir acessorios incomuns, como Lucas: "eu costumava ir pra escola com esta touca (mostra a touca de orelhas compridas) e o pessoal olhava ... oh! Meu Deus! ... eu nao to nem ai (em tom mais alterado), e o meu estilo". O encontro com os outros iguais, porem diferentes da ordem dominante, proporciona-lhe o acolhimento da intimidade: "aqui eu me sinto em casa mesmo, num outro mundo, e a minha dimensao".

O lugar onde acontece a congregacao de cosplayers ganha a condicao de espaco atopico e utopico, onde moram personagens amados, acionados por uma memoria de afetos e conectados a muitos tempos simultaneamente: a infancia mediatizada e protegida, gracas as narrativas, seus elementos magicos e miticos, e ao tempo dilatado da juventude inapreensivel. E, pelas alamedas da Universidade, comungam do tempo bondoso na flanerie de seus corpos-personagens-mercadorias.

Como nos corpos amplificados na metropole, nos objetos-coisas-mercadorias, imagens, estudados por Canevacci (2008), o corpo do cosplayer tambem se expande no cosplay ou o cosplay perfura o cosplayer, transpondo os limites do organico, do imaginario, da fantasia. Inconsciente que se derrama no exterior, por toda parte; inconsciente articulado ao campo social, maquinas de maquinas, cujo elemento conector e o desejo, lembrando Guattari (1988).

Entretanto, o espaco da realizacao do evento, semiotizado de modos diversos, parece promover acordos ambiguos e, para estar dentro dele, cosplay-cosplayer serao tambem disciplinados, ainda que sob o broquel da liberdade, da parodia, do espirito ludico e da juventude. E, acompanhados por Guattari (1988, p. 157), pode-se confirmar que "as fugas do desejo, das quais elas (a adolescencia, a infancia) sao portadoras, sao sistematicamente contidas [...] por todas as regulamentacoes e leis e sao reputadas para reger o comportamento 'normal' do individuo".

Atopia, utopia e disciplinas na cena cosplay

"A famosa regra do se vestir direito..." comentam, entre risadas, Akira e Ana Regina durante a "contacao" de um episodio memoravel. Em 2006, durante o Anime Friends, algumas meninas enroladas em toalhas de banho, inesperadamente, abriram suas toalhas atribulando o evento com a nudez inoportuna, facilitando a lei. (7)

As regras para participar dos festivais organizados pela Yamato Corporation foram sistematizadas em muitas determinacoes: revista policial a entrada, obrigatoriedade de pulseiras identificatorias para permanecer no evento, ausencia de bebidas alcoolicas, em posse do visitante ou para vender, armas de brinquedo ou de material inofensivo no caso dos acessorios para determinados cosplays. A assepsia do espaco seguro, murado pela protecao policial, espraia-se nos corpos disciplinados e bem vestidos. Interessante relevar o poder das disciplinas, em Foucault (1987), como tecnica para ordenar as multidoes, docilizar corpos, acatando a imobilizacao dos movimentos do acaso: "o bom evento e o que nao tem confusao", como disseram os entrevistados.

Participes e plateia cumprem inumeras ordens durante os concursos de cosplays e animekes: nao xingar, nao atirar objetos, nao desrespeitar os jurados, etc. E, como todo processo disciplinar, as categorias dos desfiles tratam, igualmente, de enquadrar a festa. Os concursos reunem diversas modalidades: a tradicional, desfile e a livre. A tradicional envolve a interpretacao. Sao apresentacoes em que os participantes, individualmente ou em grupo, sobem ao palco para realizarem suas exibicoes baseadas na personalidade, postura, comportamento, entonacao da personagem e da historia na qual ela esta inserida. O cosplayer deve ser fiel a narrativa e a construcao da personagem.

No desfile, o cosplayer apenas se preocupa em mostrar a sua criacao para os juizes e para a plateia, nao ha interpretacao. Ja as apresentacoes livres desobrigam o candidato a interpretar a risca o que a sua personagem faz, imiscuindo a historia original, outros generos como o drama ou a comedia.

Os depoimentos de alguns jovens sugerem que, mesmo na categoria livre, a "alma" da personagem deve ser preservada, porem, curiosamente, a narrativa original sera ressignificada por meio da fragmentacao ou invencao de cenas incrementadas pelo desejo do cosplayer: "em casa, fico imaginando a cena, se seria legal o Yoga, personagem do anime Cavaleiros do Zodiaco, fazer isso e isso no palco, brincar com a plateia fazendo isso, isso, isso [...] na categoria livre, voce pode esculachar, fazer qualquer cena com a personagem" (Akira).

Vozes dissonantes se poem em conflito: a voz do texto original, a dos criadores de Yoga, e a do novo autor, Akira--quem esculacha os sentidos apreendidos na historia e, por isso, pode subverter a cena, introduzindo uma intencionalidade oposta a da equipe de realizadores do anime. O cosplayer desautomatiza sintagmas narrativos estabelecidos e, apropriando-se de seus efeitos, pela contradicao, gera novas possibilidades para a historia e para a personagem.

Estes principios parodicos convivem com certa preparacao, quase um estudo do processo da criacao midiatica--como assistir varias vezes a cena que escolhe para executar no festival ou pautar sua interpretacao em uma entrevista em que o dublador, de um anime marcante, possa revelar dados inusitados da personagem e inspirar a producao da nova cena. Uma vez mais, acordos ambiguos se poem em andamento nos modos de subjetivacao do cosplayer-cosplay: do espaco esquadrinhado por redes de poder disciplinar ao espaco atopico que promove a ruptura, a apropriacao e a invencao de outros mundos e sociabilidades.

Selecao, transmissao e consumo de personagens e narrativas

Muitas sao as motivacoes para que um cosplayer selecione e escolha um cosplay. As identificacoes fisicas e/ou psicologicas estabelecidas entre cosplayer, personagem e narrativa sao as razoes mais citadas, entre as delimitacoes impostas pelo clima ou pelo tamanho do evento. De toda maneira, gostar da personagem e condicao primordial. Entre os depoimentos coletados, um merece ser rapidamente mapeado. Durante boa parte da entrevista, Caio nao quis ser filmado. Falava animadamente sobre os 48 cosplays feitos pela mae. Ele conta que, dias antes da apresentacao, ela se acomoda de um lado da mesa, costurando com a maquina portatil, enquanto ele, de outro, fabrica as armas das personagens.

Personagens estranhas, esquecidas na grande rede midiatica que valoriza celebridades. Geralmente viloes, muito grandes, desajeitados: "todos fazem as Meninas Super Poderosas, mas ninguem faz o Macaco Louco [...] sempre gostei dos malvados, sao diferentes, o heroi e sempre o mesmo", explica.

Caio investe na diferenca, "que se recusa a se fundir com o identico", conforme Tadeu da Silva (2009, p. 100). As escolhas do jovem cosplayer se opoem as interpelacoes do consumo devorador, seja o das narrativas mais populares, com personagens em alta, seja o de materiais disponiveis pela industria do cosplay. Caio recicla, usa tecidos baratos, encontrados gracas ao gesto materno, inspirado e expandido pelas imagens disponiveis na internet. Textos orais mitologicos, mangas, animes, imagens digitais entrelacam-se ao corpo-midia do cosplayer e, durante o processo de feitura da personagem, torna-se sujeito de sua propria narrativa.

Caio, Ana Regina e Akira se conheceram em momentos diversos, durante os inumeros festivais que frequentaram. Ficaram amigos e agora bebem guarana enquanto conversamos. Percebo um jogo discursivo diferente, repetido, ao longo do tempo em que estivemos juntos: especie de desafio: "se voce fizer o Squilter, eu faco a Rita Repulso, se voce fizer, eu faco..." Sao personagens de um mesmo anime que reconstroem, reinventando, a narrativa no corpo-midia--multiplataforma do cosplayer que se vincula ao outro ali adiante--para onde convergem todos os tempos das historias mediatizadas, transmitidas e retransmitidas infinitamente.

Esperamos a hora do rush passar. Os tres dirigem-se a plataforma da estacao do metro. Tatuape, Pirituba e Osasco sao seus destinos. Irao se reencontrar brevemente, na reuniao do Clube Cosplay Voluntario, um modo que acharam para fazer cosplay em outros espacos alem dos eventos da Yamato. Visitam escolas e creches para recontar animes as criancas. Como o tempo das culturas jovens, a cena cosplay tambem parece interminavel.

REFERENCIAS

AMARAL, Adriana; DUARTE, Renato. A Subcultura cosplay no Orkut: comunicacao e sociabilidade online e off-line. In: BORELLI, Silvia; FREIRE FILHO, Joao. Culturas juvenis no seculo XXI. Sao Paulo: Educ, 2008.

CANEVACCI, Massimo. Culturas extremas: mutacoes juvenis nos corpos das metropoles. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

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NOTAS

(1) Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicacao e Sociabilidade do XXI Encontro da Compos, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012.

(2) Live-actions sao producoes audiovisuais japonesas que trazem os herois dos mangas ou dos animes para filmagens com atores. O genero contempla ainda os filmes de efeitos especiais, os tokusatsus, ficcoes que congregam monstros e herois. A producao de Godzilla, nos anos 50, abriu caminho para a forca desta industria expandida em decadas posteriores. Muitos dos criadores de mangas, como o lendario Osamu Tezuka, "aclamado o Deus do manga" (Nagado, 2005, p. 49), foram tambem idealizadores de tokusatsus de muita popularidade, a exemplo da serie traduzida, no Brasil, como Vingadores do Espaco, do proprio Tezuka--o primeiro seriado colorido da teve japonesa produzido em 1966.

(3) Felix Guattari (2005, p. 80) considera que os processos de singularizacao podem ser "simplesmente viver, sobreviver num determinado lugar, num determinado momento, ser a gente mesmo [...] e tem a ver com a maneira como em principio todos os elementos que constituem o ego funcionam e se articulam".

(4) O evento Anime Dreams 2012 ocorreu durante os dias 13, 14 e 15 de janeiro. Conheci Akira no primeiro dia em que la estive. Logo se mostrou solicito, pronto a dar entrevistas e a colaborar com a pesquisa mobilizando todo o seu conhecimento sobre a cultura pop japonesa e sobre os eventos de cosplays. Apresentou-me para outras pessoas citadas neste trabalho como Ana Regina, Akemi e Kakao. No terceiro dia, entrevistei, ao acaso, sugestionada pelos cosplays em que esbarrava durante a flanerie, quatorze cosplayers. No dia 02 de fevereiro, Akira, Ana Regina e Caio encontraram-se comigo no Centro Cultural Sao Paulo onde novos depoimentos foram arrolados de modo impresso e em video. Os que constam deste paper estao inseridos seguindo um fluxo diferente da cronologia das coletas.

(5) Estilo de moda urbana japonesa inspirada em tons pasteis, pelucias, bonecas, papeis de carta de tematica delicada, infantil. Disponivel em <http://www.harajukulovers.com.br/index.php/2009/12/03/estilo-fairykei/>. Acesso em: 13 fev. 2012. Considero o Fairy Kei tambem um cosplay, seguindo a logica da introducao deste paper.

(6) Meu Querido Ponei foi idealizado inicialmente como brinquedo pela empresa Hasbro e, em 1984, ganhou versao para televisao e posteriormente para o cinema. Ainda na decada de 80, esta mesma estrategia foi utilizada para alcar os Ursinhos Carinhosos do status de colecao de pelucias para desenho de animacao (Walt Disney Pictures). Disponivel em <http://www.infantv.com.br/poney.htm>. Acesso em: 11 fev. 2012.

(7) Na entrevista, os dois amigos descreveram as meninas como fazendo cosplay de hentai--palavra japonesa que designa representacoes pornograficas. Nao foi possivel pesquisar, ate a finalizacao deste artigo, se o episodio realmente marca a origem desta regra. Decidi incluir o depoimento para refletir sobre o espaco em sua conotacao disciplinar.

Monica Rebecca Ferrari Nunes

Professora do Programa de Pos-Graduacao em Comunicacao e Praticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing de Sao Paulo--PPGCOM/ESPM-Sp

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