The cosplay scene: bonds and production of subjectivity/A cena cosplay: vinculacoes e producao de subjetividade.
Nunes, Monica Rebecca Ferrari
Sexta-feira, manha. Zona Leste da cidade de Sao Paulo. Estacao do
metro Carrao. Dirijo-me a bilheteria e pergunto sobre o onibus que
devera percorrer o trajeto entre o terminal e a Universidade Cruzeiro do
Sul, onde ocorre o Anime Dreams 2012. O atendente explica com paciencia.
Caminho um pouco, o sol de janeiro escalda a calcada e a paisagem arida.
Logo a frente, um lugar marcado no meio fio sugere o espaco destinado a
parada do veiculo. Dois rapazes morenos, simpaticos, aplacam meu
desconhecimento. Um deles, Eduardo, motorista do transporte, reclama:
"Vou comecar a pagar mico [...] ter que por isso aqui".
Seu olhar volta-se para o alto da cabeca e conforme acerta a touca
Pikachu personagem bastante apreciada do anime Pokemon--ajeita o cabelo
e, falante, recebe os jovens de perucas e roupas coloridas, plugados aos
fones de ouvido, que aos poucos tomam seus acentos na conducao. O onibus
arranca. Abre-se, assim, a cena cosplay.
Composta pela juncao dos vocabulos, em ingles, cos = costume e play
= brincar, jogar, encenar, a palavra diz respeito as praticas de
comunicacao e de significacao culturais vividas por jovens que se vestem
e atuam como seus personagens preferidos. Amiude compartilham, com
outros fas, este desejo nas redes sociais, em encontros informais, em
parques, em reunioes caseiras ou em grandes eventos, como o Anime
Dreams, analisado aqui, que acontece em tres periodos em Sao Paulo:
janeiro, julho e dezembro.
Surgida nos EUA, em 1930, nas convencoes de ficcao cientifica, e
renovada no Japao, durante os anos 90, na continuidade do sucesso
comercial dos mangas--historias em quadrinhos japonesas impressas em
papel jornal, em preto e branco, que podem ser, posteriormente, animadas
para videos e para a teve, sob a denominacao de animes--a pratica do
cosplay chegou ao Brasil entre 1996 e 1997 (Amaral, Duarte, 2008; Coelho
Jr., Silva, 2007). A cada ano, as convencoes abarcam mais integrantes em
diversas regioes do pais, do sul ao nordeste, inclusive nas cidades do
interior de Sao Paulo.
Digna de nota, esta pratica se multiplica em variadas direcoes
eletivas, nao se limitando aos personagens da cultura pop japonesa, como
mangas, animes ou os live-actions de onde surgiram os tokusatsus (2),
mas tambem incorporando outros signos como Lady Gaga, Michael Jackson ou
videogames cujos personagens nao sao orientais, tais quais o Super Mario
e Luigi, pequenos italianos que atravessam varios mundos em busca da
namorada de Mario, uma princesa sequestrada. As personagens literarias e
cinematograficas de antigas ou novas producoes de sucesso tambem compoem
a intrincada rede de preferencias memoraveis destes jovens urbanos.
Esmeralda, Quasimodo, Harry Potter ou os Dementadores--assombrosas
criaturas depressivas criadas por J. K. Rowling--sao tao queridos quanto
Naruto, Yagami Raito, Misa ou Sakura Card Captors, personagens de animes
muito populares no Anime Dreams 2012.
A cena cosplay mobiliza narrativas midiaticas e emocoes nascidas da
interface comunicacao e consumo que, por seu turno, relaciona-se as
construcoes de vinculos entre publico e midia, tao fundamentais nas
culturas juvenis. Sabe-se que estes lacos se intensificaram no inicio do
seculo XX quando floresceu a industria do entretenimento. Este artigo
perscruta, justamente, as formas de vinculacao estabelecidas entre o
cosplayer e o cosplay, e entre os proprios cosplayers para apontar, nas
ranhuras urbanas, formas de sociabilidade e configuracoes subjetivas
geradas, conforme Guattari (2005; 1988; 1993).
Por isso, as reflexoes propostas recuperam, brevemente, marcos da
cultura de massa e das midias que investiram nas emocoes do publico,
para, a seguir, mapear os motivos da realizacao do cosplay, os
movimentos de selecao e escolha de um determinado personagem, os
circuitos de transmissao e consumo de personagens e narrativas. Os
depoimentos alinhavados, no decorrer deste trabalho, evidenciam
processos de singularizacao (3) e "a nocao de resistencia
'plural, diversa, polimorfa', vinculada a experiencias (mesmo
que temporarias) [...] de relativizacao das identidades e de recusa as
formas 'normais' ou convencionais de comunicacao [...]"
(Freire Filho, 2007, p. 52).
Contudo, estes processos, que podem ser nomeados, seguindo Guattari
(2005, p. 54), como revolucoes moleculares ou o atrevimento de
singularizar convivem, aqui, com mecanismos disciplinares incidindo
sobre os corpos destes jovens, sobre o tempo e o espaco onde circulam a
festa, culturalmente vivenciada como espacotempo de rupturas e de
estados alterados da consciencia, torna-se um "bom evento":
com policiamento, sem bebida, sem bagunca, conforme relatam alguns dos
cosplayers entrevistados. Tais pontos tambem sao objetos de inquietacao
e investigacao neste paper.
A producao midiatica e as emocoes do publico
Conforme relata o historiador, Nicolau Sevcenko (2001), em 1903,
foi inaugurado, nos EUA, o Luna Park--um gigante parque de diversoes,
composto por enormes montanhas russas, cinemas e brinquedos eletricos.
Rapidamente estes parques se reproduziram por todo o mundo. Era a
Tecnologia do Fantastico usada para entreter as massas urbanas, e tambem
as populacoes rurais que experimentavam a metropole por meio da
diversao.
Ao longo das primeiras decadas do seculo XX, as emocoes do publico
foram sendo produzidas e amplificadas com o auxilio do cinema, que
ganhou som em 1927, fortalecendo a seducao das imagens velozes. Da
eletrola que permitiu aos discos sairem dos lares e chegarem aos saloes
de bailes, assim como o radio ganhou os espacos publicos. E, finalmente
a televisao integrou uma rede de meios tecnicos que proporcionaram
mudancas de percepcao do publico e novos modos de construcao das
subjetividades. Vale lembrar ainda, que o "Capitalismo Mundial
Integrado tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das
estruturas de producao de bens e servicos para as estrutura de producao
de signos, sintaxes e subjetividades" (Guattari, 1993, p. 31), o
que se verificou na consecucao da nova maquina de producao de
subjetividade que surgia: a cultura de massa.
Assim, as radios tocavam as musicas da industria fonografica, que
tinham sido lancadas pelos filmes musicais. Dali, astros e atrizes,
cantores, cantoras tinham suas vidas esquadrinhadas pelos programas
populares de auditorio e sessoes fotograficas das radios. Os anuncios
publicitarios ligavam os produtos ao estilo de vida dos astros do
cinema, do radio, e, posteriormente, da televisao.
Edgar Morin (1987) aponta outra variacao gerada pela cultura de
massa: a categoria do heroi--que deixou de ser o heroi que se conheceu
desde as primeiras tragedias gregas, perpetuado na literatura ocidental,
com variacoes dramaticas (a luta contra a fatalidade, o conflito com a
natureza, a cidade, o outro) que se solucionavam com a morte ou a
expiacao de seus atos desmedidos. Agora, o heroi protagonizado no
cinema, nas ficcoes seriadas radiofonicas e televisuais, e o heroi
simpatico contemplado pelo happy end. Toda esta conjuntura, o
entretenimento, as emocoes, o novo heroi massivo, aproximou afetivamente
o publico ao artista e ao seu estilo de vida.
Teoricamente a relacao afetiva entre o fa e o astro e assimetrica.
Fa e artista nao compartilham os episodios de suas vidas da mesma forma.
Alem do afeto incondicional, o fa conhece intimamente aquele produto,
seja ele um astro, uma personagem ou narrativa, e, sobretudo, consome
seus derivados, a exemplo dos cosplayers, que consomem os animes,
mangas, livros sobre mitologias, filmes, bottons, toucas, bones,
camisetas, mochilas, mascaras, cards, cartas de animes que servem como
jogo--colecoes de DVDs, pulseiras, aneis e, durante os encontros,
reproduzem nao so as roupas de personagens preferidos ou seus
acessorios, mas tambem seus gestos e suas performances.
Neste grupo particular de fas, o que se pode observar e um
direcionamento do afeto para a personagem, deslocando este afeto ao
astro que interpreta. Dependendo da atividade proposta nos eventos de
cosplay, a personagem favorita e subtraida da propria narrativa de onde
surgiu--como nos desfiles, pois o que esta em jogo e a perfeicao do
cosplay e a cena representada.
Para compreender esse fenomeno, talvez a tese do historiador da
cultura, Neal Gabler (1999), possa ajudar. Ele afirma que o cinema
inicialmente reproduzia a vida nas telas, era o filme-vida, e,
posteriormente, com o auxilio dos jornais, das revistas, do radio e da
televisao, a vida dos atores se tornou objeto de idolatria. E o fenomeno
da celebridade com sua vida intima, os lifes, repletos de emocoes que
tratam de transformar a propria vida em filme.
Parece que a pratica do cosplay responde tambem a essa dinamica,
ainda que em suas multiplas ocorrencias e variacoes. As personagens sao
mais reais que seus interpretes, saem das telas, dos games, dos livros,
dos filmes, do mundo da musica pop para a vida. Assim, Lady Gaga e uma
artista, mas, como celebridade, e tambem personagem de si mesma, e se
iguala a Harry Potter, concebido inicialmente como personagem literario,
ou a Sakura, as Meninas Super Poderosas ou Kirby, criados para serem
mangas, animes, desenhos e games, mas igualmente celebridades, gracas a
circulacao que tem na rede midiatica e os lucros que mobilizam. Todos
eles, e outros tantos, podem ser evocados pelo cosplayer, que da vida a
personagem, insuflando-lhe animus, pneuma, psiche, o sopro da voz, o
ritmo do gesto, a memoria dos atos.
Fazer cosplay
Fazer cosplay nao e somente vestir uma roupa, mas encarnar um
personagem, seu jeito, suas poses, seu modo de falar, de se portar
(Akemi apud Coelho Jr. et al., 2007). Ou como sintetiza Rafael Akira
(4), jornalista e fotografo, 23 anos, cosplayer desde 2005: "toda a
vez que eu estou em um evento como um personagem, eu tenho que agir como
o personagem agiria".
Mas, por que fazem cosplay? Esta primeira questao, bastante obvia,
desvelou aliancas e rupturas entre a producao de subjetividades
serializadas, acionada por poderosas maquinas de investimentos
identitarios reconhecidos, e subjetividades singulares--possivel quando
os inconscientes protestam: "desinvestem-se as linhas de montagem
da subjetividade, investem-se outras linhas, inventam-se outros
mundos" (Rolnik, 2005, p. 16).
Encontro Fernanda, 13 anos, no terceiro dia do evento--lotado,
garoando fininho. A garota fazia cosplay de Kagamine Len--personagem-voz
criado para um sintetizador de musicas na internet. Estava acompanhada
por Gabriel, cujo cosplay limitava-se a uma daquelas toucas com olhos de
bichinhos animados e orelhas caidas pelos ombros. Fernanda responde
convicta porque faz cosplay: "E uma liberdade de expressao, e para
se libertar da sociedade. Aqui, voce nao tem medo de ser julgado, voce
esta numa familia". Gabriel so pode dizer que sua mae nao o deixava
participar com um cosplay de verdade Nao sabia explicar os motivos da
proibicao materna.
Talvez, fazer cosplay possibilite inventar outro mundo, criar novas
territorialidades maquinicas, onde seja viavel se "libertar cada
vez mais", como disse outra jovem no primeiro dia do Anime Dreams
2012. Naquela tarde de janeiro, Kakao, "19 eterno", estava
montada de fairy kei:5 peruca rosa, tapa orelhas de pelucia rosa e azul,
polainas lilases sobre meia calca estampada em tons pasteis, vestido
curto, recheado de babados nos mesmos tons, bolsa a tiracolo de coracao,
unhas pintadas alternadamente de cor de rosa e azul. Narrou, em longo
depoimento, parcialmente transcrito aqui, suas primeiras experiencias
com os eventos de cosplay:
"Eu gostava de anime com 13 anos de idade. Eu era totalmente
zoada na escola e ai eu me achei... era o mundo que eu me encaixava, o
evento era menor... era 99, 2000, o evento era pequeno, mas era um monte
de gente igual eu. Eu pensei, poxa, aqui eu nao preciso fingir ser uma
pessoa que eu nao sou, posso ser quem eu sou e ai eu fui fazendo cosplay
por quase 10 anos
(Kakao, grifos meus)
Ela conta que, gracas ao cosplay, cursou faculdade de moda e
descobriu, em um livro, o bairro de Harajuko, no Japao: "eu adorei!
Aquilo e uma liberdade de expressao tao grande, por que eu tenho que
seguir um padrao? Eu nao tenho que seguir um padrao, e ai eu comecei a
me libertar cada vez mais" (Kakao).
Vale observar que ela nao quis dizer sua idade e optou por
defini-la como "19 eterno", corroborando as reflexoes de
Canevacci sobre as consequencias das culturas juvenis (2005, p. 29):
"cada jovem, ou melhor, cada ser humano, cada individuo pode
perceber sua propria condicao de jovem como nao terminada ou como nao
terminavel".
A juventude infinita de Kakao mostra-se alem do fairy kei, cujo
estilo define como "uma coisa Ursinhos Carinhosos, Meu Querido
Ponei (6) mais contos de fadas, mas que pega uma vibe anos 80".
Muitas sao as estrategias signicas da producao midiatica, o uso da cor,
por exemplo, responde "por organizar e hierarquizar informacoes ou
lhes atribuir significados" (Guimaraes, 2003, p. 31). A
cor-informacao, na midia, tambem regula, classifica e cria ordenacoes
sociais, subjetivando seus sujeitos, criando distincoes de genero, de
idade, e tantas outras.
Nao por acaso, ursinhos carinhosos e poneis magicos tem corpos
coloridos em tons pasteis, cores normatizadas para roupas, brinquedos e
acessorios destinados a bebes ou a criancas pequenas, meninas,
preferencialmente, reforcando o estereotipo da feminilidade associada a
ingenuidade infantil, erigindo, nao raro, um unico jeito de ser menina:
menininha doce, ingenua, de rosinha claro. Ao comentar sobre como se
veste no cotidiano, Kakao revela as tentativas da producao de
subjetividade em escala planetaria e os pontos de ruptura desse complexo
dispositivo, parafraseando Guattari e Rolnik (2005), ao consumir os tons
pasteis para suas roupas diarias, reproduzindo o discurso dominante das
narrativas midiaticas, mas, paradoxalmente, destroi as mesmas ordenacoes
sociais, "[...] virando do avesso as categorias que fixavam faixas
etarias definidas e claras passagens geracionais" (Canevacci, 2005,
p. 28), mesmo quando nao faz cosplay ou a garota fairy kei--e ousa
singularizar em outros espacos alem do delimitado para o evento.
"Eu prefiro usar tom clarinho, eu ja passei da idade, mas eu
nao ligo. Eu vou numa Marisa assim da vida, secao infantil. Nao compro
nada da minha idade [...] vou comprar o que? Uma camisa ... muito chato,
nao gosto. Eu gosto de coisa graciosa, que represente um pouco da
personalidade."
(Kakao, grifos meus)
Ter 19 anos eternamente, comprar roupas em secoes infantis,
transitar pela cidade com olhos de boneca, gracas as pupilas dilatadas
pelas lentes de contato, colorir cilios e sombrear as palpebras
exageradamente em tons de azul e rosa, em sua rotina, ainda que
"usar a peruca ja seja demais", como ela mesma ironiza,
demonstram a ressignificacao dos signos apreendidos nos discursos
midiaticos hegemonicos. Das cores pasteis dos desenhos animados, que
participam do estilo fairy, ao target definido pelo marketing
gerenciando lojas de departamentos.
A ressignificacao e a apropriacao destes discursos configuram
singularidades e indicam a resistencia a ordenacao de certos codigos de
comportamento previstos para o consumo adulto. Aqui e valido pensar na
potencia criativa do inconsciente maquinicodesejante, fluido,
atravessando as cristalizacoes sociais e produzindo intensidades: a
forma de habitar a memoria das fairies expandida na continuidade dos
dias.
A liberdade proporcionada pelo ato de fazer cosplay e a tonica de
muitos depoentes. Ana Regina, 24 anos, vestida de Zelda, personagem do
jogo eletronico da Nintendo, afirma: "todo mundo tem que ser igual.
Eu comecei a querer ser diferente". Ainda que a marca da diferenca
possa ser compartilhada no evento e neutralizada, a exemplo da fala de
Reinaldo, 25 anos, "aqui todo mundo e igual, nao tem
diferenca". Os frequentadores entrevistados, presentes no Anime
Dreams 2012, parecem sentir que ali e um lugar a margem, livre do outro
que exclui o que nao foi normatizado, onde "ninguem estranha
nada", conforme relata Beatriz, 19 anos. Um mundo sem conflitos?
Outra dimensao, nas palavras de Lucas.
Lucas, assim como Kakao, retrata a escola como lugar em que a
construcao da diferenca foi simbolizada negativamente gracas,
justamente, as marcas significantes que materializavam singularidades:
gostar de animes, com 13 anos, como Kakao, ou vestir acessorios
incomuns, como Lucas: "eu costumava ir pra escola com esta touca
(mostra a touca de orelhas compridas) e o pessoal olhava ... oh! Meu
Deus! ... eu nao to nem ai (em tom mais alterado), e o meu estilo".
O encontro com os outros iguais, porem diferentes da ordem dominante,
proporciona-lhe o acolhimento da intimidade: "aqui eu me sinto em
casa mesmo, num outro mundo, e a minha dimensao".
O lugar onde acontece a congregacao de cosplayers ganha a condicao
de espaco atopico e utopico, onde moram personagens amados, acionados
por uma memoria de afetos e conectados a muitos tempos simultaneamente:
a infancia mediatizada e protegida, gracas as narrativas, seus elementos
magicos e miticos, e ao tempo dilatado da juventude inapreensivel. E,
pelas alamedas da Universidade, comungam do tempo bondoso na flanerie de
seus corpos-personagens-mercadorias.
Como nos corpos amplificados na metropole, nos
objetos-coisas-mercadorias, imagens, estudados por Canevacci (2008), o
corpo do cosplayer tambem se expande no cosplay ou o cosplay perfura o
cosplayer, transpondo os limites do organico, do imaginario, da
fantasia. Inconsciente que se derrama no exterior, por toda parte;
inconsciente articulado ao campo social, maquinas de maquinas, cujo
elemento conector e o desejo, lembrando Guattari (1988).
Entretanto, o espaco da realizacao do evento, semiotizado de modos
diversos, parece promover acordos ambiguos e, para estar dentro dele,
cosplay-cosplayer serao tambem disciplinados, ainda que sob o broquel da
liberdade, da parodia, do espirito ludico e da juventude. E,
acompanhados por Guattari (1988, p. 157), pode-se confirmar que "as
fugas do desejo, das quais elas (a adolescencia, a infancia) sao
portadoras, sao sistematicamente contidas [...] por todas as
regulamentacoes e leis e sao reputadas para reger o comportamento
'normal' do individuo".
Atopia, utopia e disciplinas na cena cosplay
"A famosa regra do se vestir direito..." comentam, entre
risadas, Akira e Ana Regina durante a "contacao" de um
episodio memoravel. Em 2006, durante o Anime Friends, algumas meninas
enroladas em toalhas de banho, inesperadamente, abriram suas toalhas
atribulando o evento com a nudez inoportuna, facilitando a lei. (7)
As regras para participar dos festivais organizados pela Yamato
Corporation foram sistematizadas em muitas determinacoes: revista
policial a entrada, obrigatoriedade de pulseiras identificatorias para
permanecer no evento, ausencia de bebidas alcoolicas, em posse do
visitante ou para vender, armas de brinquedo ou de material inofensivo
no caso dos acessorios para determinados cosplays. A assepsia do espaco
seguro, murado pela protecao policial, espraia-se nos corpos
disciplinados e bem vestidos. Interessante relevar o poder das
disciplinas, em Foucault (1987), como tecnica para ordenar as multidoes,
docilizar corpos, acatando a imobilizacao dos movimentos do acaso:
"o bom evento e o que nao tem confusao", como disseram os
entrevistados.
Participes e plateia cumprem inumeras ordens durante os concursos
de cosplays e animekes: nao xingar, nao atirar objetos, nao desrespeitar
os jurados, etc. E, como todo processo disciplinar, as categorias dos
desfiles tratam, igualmente, de enquadrar a festa. Os concursos reunem
diversas modalidades: a tradicional, desfile e a livre. A tradicional
envolve a interpretacao. Sao apresentacoes em que os participantes,
individualmente ou em grupo, sobem ao palco para realizarem suas
exibicoes baseadas na personalidade, postura, comportamento, entonacao
da personagem e da historia na qual ela esta inserida. O cosplayer deve
ser fiel a narrativa e a construcao da personagem.
No desfile, o cosplayer apenas se preocupa em mostrar a sua criacao
para os juizes e para a plateia, nao ha interpretacao. Ja as
apresentacoes livres desobrigam o candidato a interpretar a risca o que
a sua personagem faz, imiscuindo a historia original, outros generos
como o drama ou a comedia.
Os depoimentos de alguns jovens sugerem que, mesmo na categoria
livre, a "alma" da personagem deve ser preservada, porem,
curiosamente, a narrativa original sera ressignificada por meio da
fragmentacao ou invencao de cenas incrementadas pelo desejo do
cosplayer: "em casa, fico imaginando a cena, se seria legal o Yoga,
personagem do anime Cavaleiros do Zodiaco, fazer isso e isso no palco,
brincar com a plateia fazendo isso, isso, isso [...] na categoria livre,
voce pode esculachar, fazer qualquer cena com a personagem"
(Akira).
Vozes dissonantes se poem em conflito: a voz do texto original, a
dos criadores de Yoga, e a do novo autor, Akira--quem esculacha os
sentidos apreendidos na historia e, por isso, pode subverter a cena,
introduzindo uma intencionalidade oposta a da equipe de realizadores do
anime. O cosplayer desautomatiza sintagmas narrativos estabelecidos e,
apropriando-se de seus efeitos, pela contradicao, gera novas
possibilidades para a historia e para a personagem.
Estes principios parodicos convivem com certa preparacao, quase um
estudo do processo da criacao midiatica--como assistir varias vezes a
cena que escolhe para executar no festival ou pautar sua interpretacao
em uma entrevista em que o dublador, de um anime marcante, possa revelar
dados inusitados da personagem e inspirar a producao da nova cena. Uma
vez mais, acordos ambiguos se poem em andamento nos modos de
subjetivacao do cosplayer-cosplay: do espaco esquadrinhado por redes de
poder disciplinar ao espaco atopico que promove a ruptura, a apropriacao
e a invencao de outros mundos e sociabilidades.
Selecao, transmissao e consumo de personagens e narrativas
Muitas sao as motivacoes para que um cosplayer selecione e escolha
um cosplay. As identificacoes fisicas e/ou psicologicas estabelecidas
entre cosplayer, personagem e narrativa sao as razoes mais citadas,
entre as delimitacoes impostas pelo clima ou pelo tamanho do evento. De
toda maneira, gostar da personagem e condicao primordial. Entre os
depoimentos coletados, um merece ser rapidamente mapeado. Durante boa
parte da entrevista, Caio nao quis ser filmado. Falava animadamente
sobre os 48 cosplays feitos pela mae. Ele conta que, dias antes da
apresentacao, ela se acomoda de um lado da mesa, costurando com a
maquina portatil, enquanto ele, de outro, fabrica as armas das
personagens.
Personagens estranhas, esquecidas na grande rede midiatica que
valoriza celebridades. Geralmente viloes, muito grandes, desajeitados:
"todos fazem as Meninas Super Poderosas, mas ninguem faz o Macaco
Louco [...] sempre gostei dos malvados, sao diferentes, o heroi e sempre
o mesmo", explica.
Caio investe na diferenca, "que se recusa a se fundir com o
identico", conforme Tadeu da Silva (2009, p. 100). As escolhas do
jovem cosplayer se opoem as interpelacoes do consumo devorador, seja o
das narrativas mais populares, com personagens em alta, seja o de
materiais disponiveis pela industria do cosplay. Caio recicla, usa
tecidos baratos, encontrados gracas ao gesto materno, inspirado e
expandido pelas imagens disponiveis na internet. Textos orais
mitologicos, mangas, animes, imagens digitais entrelacam-se ao
corpo-midia do cosplayer e, durante o processo de feitura da personagem,
torna-se sujeito de sua propria narrativa.
Caio, Ana Regina e Akira se conheceram em momentos diversos,
durante os inumeros festivais que frequentaram. Ficaram amigos e agora
bebem guarana enquanto conversamos. Percebo um jogo discursivo
diferente, repetido, ao longo do tempo em que estivemos juntos: especie
de desafio: "se voce fizer o Squilter, eu faco a Rita Repulso, se
voce fizer, eu faco..." Sao personagens de um mesmo anime que
reconstroem, reinventando, a narrativa no corpo-midia--multiplataforma
do cosplayer que se vincula ao outro ali adiante--para onde convergem
todos os tempos das historias mediatizadas, transmitidas e
retransmitidas infinitamente.
Esperamos a hora do rush passar. Os tres dirigem-se a plataforma da
estacao do metro. Tatuape, Pirituba e Osasco sao seus destinos. Irao se
reencontrar brevemente, na reuniao do Clube Cosplay Voluntario, um modo
que acharam para fazer cosplay em outros espacos alem dos eventos da
Yamato. Visitam escolas e creches para recontar animes as criancas. Como
o tempo das culturas jovens, a cena cosplay tambem parece interminavel.
REFERENCIAS
AMARAL, Adriana; DUARTE, Renato. A Subcultura cosplay no Orkut:
comunicacao e sociabilidade online e off-line. In: BORELLI, Silvia;
FREIRE FILHO, Joao. Culturas juvenis no seculo XXI. Sao Paulo: Educ,
2008.
CANEVACCI, Massimo. Culturas extremas: mutacoes juvenis nos corpos
das metropoles. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
--. Fetichismos visuais--Corpos eropticos e metropole
comunicacional. Sao Paulo: Atelie Editorial, 2008.
COELHO Jr, Leconte; SILVA, Sara Santos. Cosplayers como fenomeno
psicossocial: do reflexo da cultura de massa ao desejo de ser heroi.
Revista Brasileira de Desenvolvimento e Humano, v. 17, n. 1, pp. 64-75,
2007. Disponivel em:
<http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rbcdh/v17n1/06.pdf>.
Acesso em: 25 set. 2011.
FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal,
1979.
--. Vigiar e punir: nascimento da prisao. Petropolis: Vozes, 1987.
FREIRE F, Joao. Reinvencoes da resistencia juvenil: os estudos
culturais e as micropoliticas do cotidiano. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.
GABLER, Neal. Vida, O filme. Sao Paulo: Cia das Letras. 1999.
GUATTARI, Felix. O inconsciente maquinico: ensaios de
esquizo-analise. Campinas, Sao Paulo: Papirus, 1988.
--. As tres ecologias. Campinas, Sao Paulo: Papirus, 1993.
GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolitica: cartografias do
desejo. Petropolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
GUIMARAES, Luciano. as cores na midia: a organizacao da
cor-informacao no jornalismo. Sao Paulo: Annablume, 2003.
LUYTEN, Sonia. (Org.). Cultura pop japonesa--manga e anime. Sao
Paulo: Hedra, 2005.
NAGADO, Alexandre. O manga no contexto da cultura pop japonesa e
universal. In: LUYTEN, Sonia (Org.). Cultura pop japonesa. Sao Paulo:
Hedra, 2005.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no seculo XX. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitaria, 1987.
SATO, Cristiane. A cultura popular japonesa: anime; In: LUYTEN, S.
(Org.). Cultura pop japonesa. Sao Paulo: Hedra, 2005.
SEVCENKO, Nicolau. A Corrida para o Seculo XXI. Sao Paulo: Cia das
Letras, 2001.
SILVA, Tadeu (Org.). Identidade e diferenca. Petropolis: Vozes.
2009.
NOTAS
(1) Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicacao e
Sociabilidade do XXI Encontro da Compos, na Universidade Federal de Juiz
de Fora, Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012.
(2) Live-actions sao producoes audiovisuais japonesas que trazem os
herois dos mangas ou dos animes para filmagens com atores. O genero
contempla ainda os filmes de efeitos especiais, os tokusatsus, ficcoes
que congregam monstros e herois. A producao de Godzilla, nos anos 50,
abriu caminho para a forca desta industria expandida em decadas
posteriores. Muitos dos criadores de mangas, como o lendario Osamu
Tezuka, "aclamado o Deus do manga" (Nagado, 2005, p. 49),
foram tambem idealizadores de tokusatsus de muita popularidade, a
exemplo da serie traduzida, no Brasil, como Vingadores do Espaco, do
proprio Tezuka--o primeiro seriado colorido da teve japonesa produzido
em 1966.
(3) Felix Guattari (2005, p. 80) considera que os processos de
singularizacao podem ser "simplesmente viver, sobreviver num
determinado lugar, num determinado momento, ser a gente mesmo [...] e
tem a ver com a maneira como em principio todos os elementos que
constituem o ego funcionam e se articulam".
(4) O evento Anime Dreams 2012 ocorreu durante os dias 13, 14 e 15
de janeiro. Conheci Akira no primeiro dia em que la estive. Logo se
mostrou solicito, pronto a dar entrevistas e a colaborar com a pesquisa
mobilizando todo o seu conhecimento sobre a cultura pop japonesa e sobre
os eventos de cosplays. Apresentou-me para outras pessoas citadas neste
trabalho como Ana Regina, Akemi e Kakao. No terceiro dia, entrevistei,
ao acaso, sugestionada pelos cosplays em que esbarrava durante a
flanerie, quatorze cosplayers. No dia 02 de fevereiro, Akira, Ana Regina
e Caio encontraram-se comigo no Centro Cultural Sao Paulo onde novos
depoimentos foram arrolados de modo impresso e em video. Os que constam
deste paper estao inseridos seguindo um fluxo diferente da cronologia
das coletas.
(5) Estilo de moda urbana japonesa inspirada em tons pasteis,
pelucias, bonecas, papeis de carta de tematica delicada, infantil.
Disponivel em <http://www.harajukulovers.com.br/index.php/2009/12/03/estilo-fairykei/>. Acesso em: 13 fev. 2012. Considero o Fairy Kei
tambem um cosplay, seguindo a logica da introducao deste paper.
(6) Meu Querido Ponei foi idealizado inicialmente como brinquedo
pela empresa Hasbro e, em 1984, ganhou versao para televisao e
posteriormente para o cinema. Ainda na decada de 80, esta mesma
estrategia foi utilizada para alcar os Ursinhos Carinhosos do status de
colecao de pelucias para desenho de animacao (Walt Disney Pictures).
Disponivel em <http://www.infantv.com.br/poney.htm>. Acesso em: 11
fev. 2012.
(7) Na entrevista, os dois amigos descreveram as meninas como
fazendo cosplay de hentai--palavra japonesa que designa representacoes
pornograficas. Nao foi possivel pesquisar, ate a finalizacao deste
artigo, se o episodio realmente marca a origem desta regra. Decidi
incluir o depoimento para refletir sobre o espaco em sua conotacao
disciplinar.
Monica Rebecca Ferrari Nunes
Professora do Programa de Pos-Graduacao em Comunicacao e Praticas
de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing de Sao
Paulo--PPGCOM/ESPM-Sp
<
[email protected]>