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文章基本信息

  • 标题:A Folha de Boa Vista e a desintrusao na terra indigena Raposa Serra do Sol.
  • 作者:Heller, Barbara ; Alecrim, Wenya
  • 期刊名称:Revista Famecos - Midia, Cultura e Tecnologia
  • 印刷版ISSN:1415-0549
  • 出版年度:2013
  • 期号:January
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Editora da PUCRS
  • 摘要:Folha de Boa Vista and removing invaders from Raposa Serra do Sol
  • 关键词:Administracion de la justicia;Alocuciones, discursos, etc.;Periodicos de la comunidad;Pueblos indigenas;Tierra arable

A Folha de Boa Vista e a desintrusao na terra indigena Raposa Serra do Sol.


Heller, Barbara ; Alecrim, Wenya


Folha de Boa Vista and removing invaders from Raposa Serra do Sol

Entender o processo final de desintrusao da Terra Indigena Raposa Serra do Sol (TIRSS), localizada em Roraima (Brasil), e uma tarefa que exige do pesquisador um posicionamento critico, pois a terra, disputada por nao-indios e indios, foi palco de discussoes politicas, agressoes fisicas e disputas ideologicas por mais de 30 anos. Finalmente, em 30 de abril de 2009, o Supremo Tribunal Federal determinou que todos os nao-indios fossem imediatamente retirados da TI.

O termo "desintrusao", pouco usual em outros lugares, em Roraima e corriqueiro. Na verdade, ele significa, em linhas gerais, a acao de retirar de determinada area alguem que a invadiu. Varios atores sociais estavam envolvidos na desintrusao da TIRSS em Roraima: desde lideres indigenas, que defendiam veementemente a sua demarcacao em ilhas, o que permitiria que arrozeiros e pequenos colonos que habitavam a regiao havia anos continuassem na reserva, em um convivio a que eles mesmos chamavam de "harmonioso", ate outras liderancas, tambem indigenas, que pediam a retirada de todos nao indios da reserva. Nesse mesmo cenario, encontramos arrozeiros, que temiam perder suas terras depois de anos de conquista e trabalho, e parte da populacao do Estado que os apoiava.

Com tantos discursos contraditorios sobre o mesmo tema, nos propusemos a analisar neste artigo as maneiras pelas quais a midia local noticiou o processo final da retirada dos nao-indios, as mediacoes e representacoes dos grupos sociais envolvidos diretamente (indigenas, arrozeiros e politicos/fontes oficiais). Para isso, trabalhamos com o jornal Folha de Boa Vista (FBV), o maior e mais antigo periodico de Roraima (RR). Entre as 170 reportagens (tambem conhecidas como materias) publicadas sobre o tema, apresentamos neste artigo a analise de 23 textos que tiveram chamada na capa do jornal, mas reproduzimos trechos de quatro deles, por economia de espaco. Em algumas passagens de nossa analise, no entanto, sentimos necessidade de recorrer as materias que nao foram transcritas, a fim de contextualizar melhor o corpus selecionado e tornar mais claros os conceitos que deram suporte a nossas hipoteses.

Como ferramenta teorica, apoiamo-nos na Analise do Discurso, (AD), especialmente nos conceitos do filosofo Mikhail Bakhtin--enunciado (contexto de producao), enunciador (aquele que produz um discurso), palavra--e tambem em Dominique Maingueneau, no tocante a nocao de contexto.

Mikhail Bakhtin salienta que todos os processos de comunicacao sao dialogicos, isto e, sao atravessados pela palavra do outro, que por sua vez tambem e atravessada, e assim sucessivamente. Mais ainda: que a linguagem ocupa um papel fundamental nos processos sociais, pois como nao existe acesso direto a realidade--"o real apresenta-se para nos sempre semioticamente, ou seja, linguisticamente" (Fiorin, 2008, p. 19)--ela constitui os enunciados que marcam uma posicao dos sujeitos enunciadores:

"[...] o enunciado ocupa uma posicao definida em uma dada esfera da comunicacao, em uma dada questao, em um dado assunto, etc.. E impossivel alguem definir sua posicao sem relaciona-la com outras posicoes. Por isso, cada enunciado e pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicacao discursiva."

(Bakhtin, 2003, p. 297)

Para Dominique Maingueneau, o contexto que cerca o fato desempenha um papel muito importante e e fornecedor de dados que permitem nao so desfazer ambiguidades, mas tambem compreender melhor os enunciados. Nesse sentido, segundo Beth Brait (2007), e necessario "olhar para fora do texto" ou, como tambem sugere Michael

Foucault, enfrentar a "massa de tracos" verbais e extraverbais que povoa o texto e aponta para fora dele, vinculando, social e historicamente, sujeito, vida e linguagem.

"Embora o homem seja no mundo o unico ser que fala, nao constitui de modo algum ciencia humana o conhecer as mutacoes foneticas, o parentesco das linguas, a lei das derivacoes semanticas; em contrapartida, poder-se-a falar de ciencia humana desde que se procure definir a maneira como os individuos ou os grupos concebem as palavras, utilizam a sua forma e o seu sentido, compoem discursos reais, neles mostram e ocultam o que pensam, dizem, sem que talvez tenham consciencia disso, mais ou menos do que pretendem dizer, deixam, em todo caso, desses pensamentos, uma massa de tracos que e necessario decifrar e restituir tanto quanto e possivel a sua vivacidade representativa."

(Foucault [1966], pp. 458-459 apud Brait, 2007)

Isso posto, pretendemos, dentro dos limites permitidos em um artigo, "decifrar e restituir a veracidade representativa" dos enunciadores nas 23 reportagens publicadas pela Folha de Boa Vista.

Apresentando o corpus

A FBV foi inaugurada em 1983. Passou por varias maos, ate se tornar propriedade do ex-governador do, entao, Territorio de Roraima, Getulio Cruz. Hoje e a filha, Paula Cruz, quem coordena a empresa (Soares apud Lima, 2008, p. 30). O veiculo e visto no Estado como o jornal de maior credibilidade, tanto pelos anos de atuacao, quanto pela linha editorial desenvolvida.

As 23 reportagens que agrupamos neste artigo pertencem a um mesmo genero textual e buscam, por definicao, informar, apresentando "apenas" os fatos como eles aconteceram. A reportagem, rezam os manuais, responde as questoes "como?" e "por que?"; no entanto, as conclusoes cabem ao leitor (Zancheta, 2006).

Menos do que teorizar sobre cada um dos generos textuais--"tipos de enunciados relativamente estaveis, caracterizados por um conteudo tematico, uma construcao composicional e um estilo" (Fiorin, 2008, p. 61)--nosso objetivo e compreender, numa perspectiva bakhtiniana, como os textos de, um mesmo genero, da FBV, foram construidos e que circunstancias permearam o enunciador.

Fiorin (2008), um dos estudiosos de Bakhtin, esclarece ainda que, para o filosofo russo, o ponto de partida para compreender os generos textuais esta na analise da linguagem entrelacada com as atividades humanas, por compreender que nao ha producao dos textos fora das acoes.

Para Martin-Barbero (2003, p. 187), outro teorico em que nos apoiamos, os meios de comunicacao estabelecem uma mediacao institucional com o mercado, que reorienta, rearticula a intencionalidade do escritor. Essa mediacao, por vezes, interfere no que foi escrito, na selecao do que e noticia ou nao, ou ainda do que vai aparecer na capa ou no proprio corpo do jornal, produzindo sentidos diferentes.

O olho do jornalista e, ou pelo menos deveria ser, o olho da sociedade. No campo academico, o olho do jornalista e "educado" para ter visao critica e social. Pierre Bourdieu (1997, p. 25) diz que esses profissionais possuem uma especie de oculos especiais que veem, destacam algumas coisas e anulam outras.

Em nosso corpus, observamos alguns discursos que se repetiram, por isso tabulamos as reportagens em tres grandes eixos tematicos: Lutadores e injusticados, inversao de papeis?; Conflito e Reforco as tradicoes x desenvolvimento: da parixara ao forro. Como as reportagens analisadas foram escritas por reporteres mulheres, usaremos o genero feminino, a reporter, para falar de sua autoria, mas nao entraremos no merito da discussao do fato de se tratar ou nao de uma escrita feminina em oposicao a uma masculina.

Lutadores e injusticados: inversao de papeis?

Na maioria dos textos analisados os indigenas foram representados incitando conflitos ou afirmando que nao mediriam esforcos para ter a terra somente para si. Os arrozeiros, por sua vez, ganharam o discurso dos injusticados. Em boa parte das reportagens reclamaram do processo demarcatorio e afirmaram que iriam a falencia.

Na reportagem no 04, nao so o corpo do texto, mas tambem, o titulo incitam a comocao do leitor: Produtora diz que multa levara a falencia. Na sequencia, o primeiro paragrafo mostra a situacao praticamente precaria em que se encontravam os arrozeiros:

"A empresaria Regina Barili, proprietaria da marca de arroz Tio Ivo, procurou a Folha para narrar a situacao de desamparo em que estao vivendo os rizicultores que ha 12 dias deixaram as fazendas que ocupavam na terra indigena Raposa Serra do Sol, ao norte de Roraima."

(Folha de Boa Vista, 12/05/2009, destaque nosso)

Para completar a situacao de penuria, ainda pior que a dos arrozeiros irem a falencia, o enunciador mostra que os funcionarios demitidos, dificilmente, teriam condicoes de sobreviver dignamente sem o trabalho que desenvolviam nas terras. O problema ainda se agravava porque os arrozeiros nao tinham perspectivas de encontrar outra area semelhante:

"Os problemas nao se resumem apenas aos itens ja citados. O casal Barili ainda nao encontrou outra area para plantar, o arroz estocado esta acabando e os funcionarios estao sendo demitidos. "Estamos sem terra e nao identificaram outra area para nos produzirmos. O arroz que tenho estocado nao da para trabalhar ate dezembro, vai acabar antes, entao eu queria perguntar as autoridades o que e que vamos fazer", desabafou."

(Folha de Boa Vista, 12/05/2009, destaque nosso)

A reporter enfatizou, por meio de suas construcoes verbais, que os arrozeiros eram vitimas tanto da desintrusao, uma acao politica, quanto de intemperies da natureza.

Entendemos que os indios sao, em geral, vistos (por meio da construcao do imaginario popular) sob duas principais perspectivas: de um povo sem voz que merece ser cuidado e de um grupo lutador, em busca de seus direitos. Entretanto, a segunda imagem foi apresentada com maior veemencia, como no fragmento do texto no 02, de 19/03/2009.

"O coordenador-geral do Conselho Indigena de Roraima, Jose Dionito de Souza, acha improvavel que o Supremo Tribunal Federal (STF) mude o placar que mantem a homologacao continua da Terra Indigena Raposa/ Serra do Sol, mas enfatizou que independente do resultado do julgamento, se pela manutencao ou nao da area continua, os indios vao ocupar as fazendas de arroz ...

Vamos ocupar a terra, porque nao existe fazenda la, mas sim invasao. Vamos manter a Raposa Serra do Sol em area continua, seja la que decisao for o resultado do Supremo Tribunal Federal, nao vamos abrir mao da area continua, afirmou."

(Folha de Boa Vista, 19/03/2009, destaque nosso)

O texto mostrou que, independentemente, do desfecho do julgamento da acao do decreto do STF, que colocaria fim a demarcacao em area continua, ali estariam eles [os indios] prontos para continuar na luta pela terra. Dito de outra maneira, a intencao do enunciador foi nao so mostrar que os indigenas estavam ansiosos pelo desfecho do julgamento, mas tambem decididos a permanecer na reserva (nao vamos abrir mao), como ja vinham fazendo.

Amenizando o conflito e a representacao dos indios, como invasores dispostos a chegar as ultimas consequencias, o texto seguinte constroi a nocao do indio aculturado, adaptado, sem conflitos de identidade e com demandas tipicas da sociedade capitalista, que vende o excedente com margem de lucro:

"Abel Barbosa informou que essa nao e a realidade, que os indigenas da area em litigio nao vivem mais assim. "Somos aculturados, temos filhos estudando na cidade, fazendo faculdade. Queremos o desenvolvimento, nao vivemos isolados. A gente quer criar, plantar, comprar e vender gado, produzir", defendeu o tuxaua."

(Folha de Boa Vista, 20/03/2009, destaque nosso)

Esses exemplos, embora em pouca quantidade, sao suficientes para mostrar que, num primeiro momento, seus enunciadores buscaram construir um discurso em que indios e arrozeiros sao igualmente vitimas e merecedores de apoio da opiniao publica. No entanto, outros registros mostraram que os indios, habitualmente representados como subordinados ao poder politico e economico dos brancos, receberam outra imagem dentro do jornal: sao bem informados sobre o tema, a ponto de utilizar esse discurso, por vezes ensaiado, para participar de foruns de discussao e estao dispostos a chegar as ultimas consequencias para lutar pela permanencia nas terras. Pode-se supor que os indios foram representados como fortes em oposicao aos fracos, os arrozeiros, que precisariam do apoio dos demais setores da sociedade roraimense, entre eles, dos donos do jornal.

Conflito

A Terra Indigena Raposa Serra do Sol, vale repetir, ha muito tempo foi objeto de disputa entre indios e nao-indios. O conflito apresentado pela FBV ora foi entre indios com opinioes diferentes, ora entre policia e indios, ora entre policia e arrozeiros e ora entre arrozeiros e indios. Nas 23 reportagens, a palavra conflito foi empregada 19 vezes. O verbo ocupar ou o substantivo ocupacao, por sua vez, foram usados em dez oportunidades.

O texto no 01, de 28/01, seguramente foi um dos que mais apresentaram este embate. No titulo, a reporter anuncia: Indios ocupam predio da Funai e mantem o administrador refem durante seis horas. No corpo do texto, percebemos que a reporter nao mediu esforcos para passar ao leitor a tensao do clima vivenciado. Isso pode ser explicado porque em outros trechos, que por motivo de economia nao foram aqui reproduzidos, observamos que o enunciador esteve durante boa parte do tempo na sede da Fundacao Nacional do Indio (FUNAI) e nao so relatou, como tambem viveu parte da ocupacao/ invasao:

"Cerca de 200 indios contrarios a demarcacao da terra indigena Raposa Serra do Sol em area continua invadiram na tarde de ontem a sede da Fundacao Nacional do Indio (FUNAI) e fizeram refem Petronio Laranjeira, administrador substituto do orgao.

(Folha de Boa Vista, 28/01/2009, destaque nosso)

No trecho a seguir, observamos a manifestacao de um autor-criador. O conceito, apresentado por Bakhtin (2009, p. 38), nos diz que e esse elemento que da forma a um objeto estetico, o pivo que sustenta a unidade do todo esteticamente consumado. Esse autor olha os fatos com simpatia ou antipatia, distancia ou proximidade, reverencia ou critica, gravidade ou deboche, aplauso ou sarcasmo, alegria ou amargura, generosidade ou crueldade, jubilo ou melancolia. A forma detalhada de dizer como os indigenas estavam armados revelou tracos de proximidade. O sentido produzido foi de que, a qualquer instante, o refem poderia ser atingido e o conflito ter um desfecho mais tragico:

"Estavam armados com arcos, flechas e bordunas (pedacos de madeira). Ao tomar o predio, eles esvaziaram as salas, mas mantiveram Laranjeira em carcere privado por seis horas. A ideia era encarcerar o administrador Goncalo Teixeira, que esta de ferias.

(Folha de Boa Vista, 28/01/2009, destaque nosso)

Naquele momento, quando tinham um refem sob seu poder, eram os indigenas que tinham maior dominio, apesar de suas armas serem consideradas mais frageis.

"Logo que chegaram, os indigenas impuseram suas condicoes. Exigiram que o administrador substituto entrasse em contato com a presidencia da Funai, em Brasilia, e informasse a situacao de invasao. Ao mesmo tempo, condicionaram a liberdade de Laranjeira a 60 passagens aereas com destino a Capital Federal."

(Folha de Boa Vista, 28/01/2009, destaque nosso)

Os verbos impor, exigir e condicionar reforcam a ideia de que os indigenas estavam no controle da situacao. E importante dizer ainda que, na maioria dos textos, quando a palavra conflito foi empregada, esteve quase sempre relacionada aos indigenas, sugerindo que eram eles os que desejavam resolver os impasses por meio da forca.

O conflito de indio contra indio ainda foi descrito de maneira dramatica no texto no 02, como sugere o subtitulo: O tuxaua do Flexal, Abel Barbosa, diz que vai ter briga de indio contra indio e derramamento de sangue.

No corpo do texto, um tuxaua respondeu a outra materia publicada no dia anterior, no qual um lider indigena tinha dito qual destino daria aos quase dois milhoes de terra.

"Se eu chegar na sua casa e querer mandar, a senhora nao vai aceitar, ne? Assim tambem vai ser com a gente. Ele (Dionito) quer ser o governador da Raposa, vai querer mandar, mas nao sera do jeito que ele esta pensando. Vai ter briga de indio contra indio, vai ter derramamento de sangue, porque a gente nao vai aceitar isso", disse Abel Barbosa, de Brasilia, no intervalo do julgamento no STF.

(Folha de Boa Vista, 19/03/2009, destaque nosso)

Acreditamos que o clima de tensao e conflito de fato existiu durante o processo final de desintrusao. Apesar disso, pensamos que essa tematica, anunciada pelo jornal, exagerou no sensacionalismo, mecanismo utilizado pelos veiculos para chamar a atencao dos leitores. E fato que noticias sobre catastrofes, acidentes despertam o interesse do publico, causando comocao. Por isso, os momentos em que de fato havia conflitos nao foram desperdicados, ao contrario, foram bastante divulgados.

Reforco as tradicoes x desenvolvimento: da parixara ao forro

O convivio entre seres humanos pertencentes a esse ou aquele povo da origem ao conceito de cultura. Dentro de uma realidade economica, regiao, ou grupo politico caracteristicas peculiares desses grupos sao construidas e consolidadas. Vannucchi (1999, p. 21) acredita que se pode conceituar cultura como autorrealizacao da pessoa humana no seu mundo. Algo que nao se cristaliza apenas no campo teorico, mas tambem no da sensibilidade, acao e comunicacao. Quando se procura extrair dessa realidade o conceito unico de cultura surge a dificuldade. E certo que o que se pretende aqui nao e polemizar sobre o conceito de cultura, pois sabemos da polissemia que o permeia e, ainda, que o significado equivalente nao existe em boa parte das linguas orais e sociedades pesquisadas por etnologos (Cuche, 1999, p. 15), mas apenas entender os significados intimamente ligados a tradicao.

Compreendemos que a cultura reune um conjunto de sistemas de signos e significados criados pelos grupos sociais. Dessa forma, interpretar as culturas significa interpretar simbolos, mitos, ritos. Guareschi (2002, p. 16) afirma que e no campo da cultura que se percebe a importancia dos meios de comunicacao, pois sao indispensaveis nao so para a criacao, mas tambem para a transmissao dos simbolos e ritos. As tradicoes indigenas, como dancas tipicas e o uso de objetos artesanais, foram, em varios momentos, destacados no discurso da Folha de Boa Vista. Entretanto, o que chamou a atencao e que em alguns textos o desejo de haver desenvolvimento esteve praticamente lado a lado com elas. Cuche (1999, p. 136) esclarece que nenhuma cultura existe em estado puro, sem jamais ter sofrido influencias externas. Dessa maneira o grau de aculturacao e um fenomeno praticamente impossivel de ser barrado, existe em maior ou menor grau, como observaremos nos proximos exemplos.

O interessante nos textos e ver nao so a oposicao tradicoes x desenvolvimento, mas a critica implicita nas palavras do enunciador, como no texto no 02. A reporter que esteve na Vila Surumu, uma das entradas da Raposa Serra do Sol, conferiu de perto como estavam as manifestacoes durante o julgamento em area continua.

"Os indios abriram as comemoracoes pelo retorno do julgamento com uma oracao, seguida de ritos tradicionais, na quadra de esportes situada na vila. Dancaram a Parixara com rostos pintados e confeccionaram com palhas utensilios domesticos [...]. Ao final do dia, quando ainda era lido o voto do ministro Marco Aurelio, fizeram uma procissao seguida de vigilia por um resultado favoravel aos seus pleitos. Posteriormente o forro ocupou o espaco."

(Folha de Boa Vista, 19/03/2011, destaque nosso)

Os ritos tradicionais foram dancados em uma quadra de esporte, lugar que nao faz parte da cultura original dos indigenas. De rostos pintados, produziram artesanato, como se quisessem reforcar, materialmente, as tradicoes que estavam sob ameaca. A marca da critica ficou por conta da ultima frase do paragrafo, na qual se afirmou implicitamente e sem nenhum elemento de ligacao com a oracao anterior, que o forro, danca dos brancos, ocupou, com espontaneidade, o lugar da parixara, tipica dos indios. Ou, em outras palavras: que, dependendo das circunstancias e dos interesses, os indios, uma das ultimas comunidades autenticas, como sugere Martin-Barbero, ora praticam uma coreografia, ora outra, sem qualquer crise identitaria, resultando na espetacularizacao e subordinacao da sua cultura a modernidade.

No final do texto no 03 sao os indigenas que reforcam a ideia de desenvolvimento. Um tuxaua, contrario a demarcacao continua, reclamava da decisao do STF, que nao teria ouvido os interessados para deferir o processo. Ele mesmo destaca que muitos ja nao vivem mais isolados, como os Yanomami, outra etnia.

"Segundo o tuxaua, os ministros votaram sem ouvir todos os segmentos, em especial aqueles que discordam da area continua, acreditando que os moradores da Raposa/Serra do Sol ainda vivem como os yanomami, que moram no meio da mata e sobrevivem da caca e pesca. Abel Barbosa informou que essa nao e a realidade, que os indigenas da area em litigio nao vivem mais assim. 'Somos aculturados, temos filhos estudando na cidade, fazendo faculdade. Queremos o desenvolvimento, nao vivemos isolados. A gente quer criar, plantar, comprar e vender gado, produzir', defendeu o tuxaua."

(Folha de Boa Vista, 20/03/2011, destaque nosso)

O tuxaua Abel Barbosa reivindica aqui o direito de lutar, ter acesso ao que ele considera desenvolvimento: plantar, comprar e vender produtos para estabelecer uma relacao de oferta e procura e, ainda, lucro. Afinal os indios nao vivem mais isolados, fazem parte nao de uma comunidade, como apresentada por Bauman (1), e sim de uma sociedade, supostamente com mais possibilidades de crescimento economico.

"Os integrantes do CIR, que ate o voto do presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, estavam dormindo em redes ou sentados conversando na frente de suas casas aguardando a decisao, retomaram as comemoracoes iniciadas na quarta-feira, quando o julgamento da legalidade da demarcacao foi retomado. Eles vestiram roupas tradicionais e dancaram o Parixara, sob o olhar atento dos agentes federais. Um deles carregava uma bandeira com o mapa da Raposa Serra do Sol. Eles ainda mataram um boi e fizeram churrasco. Mas a comemoracao mesmo, segundo eles, deve ocorrer no dia 19 de abril, Dia do Indio."

(Folha de Boa Vista, 20/03/2009, destaque nosso)

No mesmo texto, o enunciador mostrou outro contraste. Na vila Surumu, no meio da Terra Indigena, havia tecnologia, pois os nao-indios assistiam ao desenrolar do processo de desintrusao em uma TV por assinatura.

"Cerca de 20 habitantes nao-indios tambem choraram ao saber que terao que sair da reserva. Eles acompanharam o julgamento do STF por meio de uma TV por assinatura. Ao final se abracaram, choraram, rezaram e reafirmaram que so deixarao suas casas quando forem reassentados e receberem indenizacao previa e de justo valor.

(Folha de Boa Vista, 20/03/2009, destaque nosso)

Consideracoes finais

A partir desses exemplos, ja podemos comecar a concluir que nem enunciadores, nem a propria redacao do jornal FBV, que publicou as reportagens, soube diferenciar a identidade e a cultura dos indios das dos nao-indios. Os proprios indigenas, por sua vez, parecem nao saber resolver o conflito entre tradicao e ruptura, entre natureza e cultura (ou progresso). Talvez seja esse o grande problema da cultura indigena que acabou manifestado nas reportagens selecionadas: nao negar as tradicoes e, ao mesmo tempo, acompanhar as inovacoes tecnologicas, sob pena de exclusao social, economica e politica.

O jornal apresentou um indio em conflito. De um lado, assistia a TV a cabo para acompanhar a votacao em Brasilia e falava em desenvolvimento e, do outro, um povo que fazia dancas tipicas, produzia artesanato, mas que tambem dancava forro.

As representacoes dos indigenas oscilaram de acordo com o contexto que os cercavam. Ora era interessante parecer ainda mais indio, ora era conveniente falar em desenvolvimento, lancar no grupo o desejo pela autossustentacao. De fato, hoje em dia, praticamente aculturados e com tamanho contato com o homem branco, essas contradicoes seriam inevitaveis. Mas e importante enfatizar que quando o indio e apresentado de forma estereotipada esse discurso esta nas palavras do enunciador do jornal. Em quase todas as situacoes analisadas, na qual havia indicios da cultura indigena, o jornal fazia questao de destaca-la. Ja a busca do desenvolvimento esta nos enunciados proferidos pelos proprios indios, como se quisessem responder a fala do enunciador.

Tambem observamos, que a Folha de Boa Vista, no que diz respeito a indios e arrozeiros, deu igual abertura de espaco aos dois grupos sociais. No entanto, enquanto na maior parte a representacao dos indios foi de luta e sujeitos agressivos, a dos rizicultores foi de homens injusticados, que precisavam do jornal para tornar publicos seus pensamentos.

Acreditamos tambem que a tentativa de vitimizar os arrozeiros serviu como pano de fundo para que a populacao se compadecesse; afinal, a maior economia do Estado estava sendo abalada. Dessa forma, muitas pessoas seriam afetadas e indiretamente nao seriam simpatizantes a luta dos indigenas. Isso quer dizer que, ainda que de maneira implicita, a FBV deu apoio aos rizicultores.

Mas, ao final e ao cabo, o que a FBV mostrou e que, alem de fazer questao de reforcar o poder que tem para tornar publicas as informacoes, quis convencer os leitores de sua credibilidade. Por fim, reforcamos, por meio desses exemplos, o conceito de palavra para Bakhtin: que ela "[se] constitui como produto ideologico, ou seja, e resultado de um processo de interacao" (Stella apud Brait, 2005, p. 178).

REFERENCIAS

BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da Linguagem: problemas fundamentais da linguagem. 13. ed. Sao Paulo: Hucitec, 2009.

--. Estetica da criacao verbal. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: A busca por uma seguranca no mundo atual. Trad. Plinio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisao. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BRAIT, Beth. O texto mostra a lingua, costura e descostura discursos. Revista de Filologia e Linguistica Portuguesa, Sao Paulo, v. 3, Humanitas, 2007.

COTTA, Pery. Jornalismo: Teoria e pratica. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Rubio, 2005.

CUCHE, Denys. A nocao da Cultura nas ciencias sociais. Bauru: EDUSC, 1999.

FERREIRA, Junior Jose. Capas de jornal. Sao Paulo: Senac, 2003.

FIORIN, Jose Luiz. Introducao do pensamento de Bakhtin. Sao Paulo: Atica, 2008.

GUARESCHI, Pedrinho A. Comunicacao: Controle Social. Petropolis: Editora Vozes, 2002.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropologico. 23. ed. Rio de Janeiro, 2009.

LIMA, Maria Goretti Leite de. O indio na midia impressa em Roraima. Boa Vista: Editora UFRR, 2008.

LIMA, Vanessa. Indios ocupam predio da Funai e mantem administrador refem durante seis horas. Folha de Boa Vista, 28/01/2009.

--. Sodiur alerta para conflito entre indios. Folha de Boa Vista, 20/03/2009.

MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios as mediacoes: comunicacao, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.

SANTOS, Andrea Paula dos, 2005. Trajetorias da Historia Social e da Nova Historia Cultural: cultura, civilizacao e costumes no cotidiano do mundo do trabalho. Disponivel em: <http://www.fef.unicamp.br/sipc/anais9/ artigos/mesa_debates/art3.pdf>. (IX Simposio Internacional Processo Civilizador--Tecnologia e Civilizacao, 2005, Ponta Grossa. Anais do IX Simposio Internacional Processo Civilizador--Tecnologia e Civilizacao, 2005. V. 1.) Acesso em: 24 nov. 2011.

STELLA, Paulo. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: Conceitos-chaves. 4. ed. 3a reimpressao. Sao Paulo: Contexto, 2005.

TRAJANO, Andrezza. Suspensao temporaria de julgamento nao acirra animos em Surumu. Folha de Boa Vista, 19/03/2009.

--. Produtora diz que multa levara a falencia. Folha de Boa Vista, 12/05/2009.

VANNUCCHI, Aldo. Cultura Brasileira: O que e, como se faz. Sao Paulo: Edicoes Loyola, 1999.

ZANCHETTA, Juvenal. Imprensa escrita e telejornal. Sao Paulo: UNESP, 2006.

NOTA

(1) Zygmunt Bauman, sociologo polones e teorico sobre identidade, parte da mitologia grega para afirmar que o sentimento de comunidade e o ponto de partida de determinado povo. Em comunidade as pessoas nao precisam explicar o que falam, pensam ou como agem. Ou seja, "dentro do circulo aconchegante elas nao precisam provar nada e podem, o que quer que tenham feito, esperar simpatia e ajuda" (Bauman, 2003 p. 16). E aconchegante permanecer dentro da comunidade. No entanto, este circulo pode ser aberto por outras culturas. Essa fissura, como argumentou o teorico, surge com o aparecimento da informacao, independente de quem a leva.

Barbara Heller

Professora do Mestrado em Comunicacao na Universidade Paulista--UNIP. <[email protected]>

Wenya Alecrim

Professora do Instituto de Ensino Superior de Rio Verde--IESRIVER e Faculdade de Ciencias Sociais e Tecnologicas--Facitec. <[email protected] >
Tabela 1--Exemplos enumerados por ordem cronologica
de publicacao

No   Dia publicado   Titulo (no interior do jornal)

01   28/01/2009      Indios ocupam predio da Funai e mantem
                           administrador refem durante seis horas
02   19/03/2009      Suspensao temporaria de julgamento nao
                           acirra animos em Surumu
03   20/03/2009      Sodiur alerta para conflito entre indios
04   12/05/2009      Produtora diz que multa levara a falencia


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