A Folha de Boa Vista e a desintrusao na terra indigena Raposa Serra do Sol.
Heller, Barbara ; Alecrim, Wenya
Folha de Boa Vista and removing invaders from Raposa Serra do Sol
Entender o processo final de desintrusao da Terra Indigena Raposa
Serra do Sol (TIRSS), localizada em Roraima (Brasil), e uma tarefa que
exige do pesquisador um posicionamento critico, pois a terra, disputada
por nao-indios e indios, foi palco de discussoes politicas, agressoes
fisicas e disputas ideologicas por mais de 30 anos. Finalmente, em 30 de
abril de 2009, o Supremo Tribunal Federal determinou que todos os
nao-indios fossem imediatamente retirados da TI.
O termo "desintrusao", pouco usual em outros lugares, em
Roraima e corriqueiro. Na verdade, ele significa, em linhas gerais, a
acao de retirar de determinada area alguem que a invadiu. Varios atores
sociais estavam envolvidos na desintrusao da TIRSS em Roraima: desde
lideres indigenas, que defendiam veementemente a sua demarcacao em
ilhas, o que permitiria que arrozeiros e pequenos colonos que habitavam
a regiao havia anos continuassem na reserva, em um convivio a que eles
mesmos chamavam de "harmonioso", ate outras liderancas, tambem
indigenas, que pediam a retirada de todos nao indios da reserva. Nesse
mesmo cenario, encontramos arrozeiros, que temiam perder suas terras
depois de anos de conquista e trabalho, e parte da populacao do Estado
que os apoiava.
Com tantos discursos contraditorios sobre o mesmo tema, nos
propusemos a analisar neste artigo as maneiras pelas quais a midia local
noticiou o processo final da retirada dos nao-indios, as mediacoes e
representacoes dos grupos sociais envolvidos diretamente (indigenas,
arrozeiros e politicos/fontes oficiais). Para isso, trabalhamos com o
jornal Folha de Boa Vista (FBV), o maior e mais antigo periodico de
Roraima (RR). Entre as 170 reportagens (tambem conhecidas como materias)
publicadas sobre o tema, apresentamos neste artigo a analise de 23
textos que tiveram chamada na capa do jornal, mas reproduzimos trechos
de quatro deles, por economia de espaco. Em algumas passagens de nossa
analise, no entanto, sentimos necessidade de recorrer as materias que
nao foram transcritas, a fim de contextualizar melhor o corpus
selecionado e tornar mais claros os conceitos que deram suporte a nossas
hipoteses.
Como ferramenta teorica, apoiamo-nos na Analise do Discurso, (AD),
especialmente nos conceitos do filosofo Mikhail Bakhtin--enunciado
(contexto de producao), enunciador (aquele que produz um discurso),
palavra--e tambem em Dominique Maingueneau, no tocante a nocao de
contexto.
Mikhail Bakhtin salienta que todos os processos de comunicacao sao
dialogicos, isto e, sao atravessados pela palavra do outro, que por sua
vez tambem e atravessada, e assim sucessivamente. Mais ainda: que a
linguagem ocupa um papel fundamental nos processos sociais, pois como
nao existe acesso direto a realidade--"o real apresenta-se para nos
sempre semioticamente, ou seja, linguisticamente" (Fiorin, 2008, p.
19)--ela constitui os enunciados que marcam uma posicao dos sujeitos
enunciadores:
"[...] o enunciado ocupa uma posicao definida em uma dada
esfera da comunicacao, em uma dada questao, em um dado assunto, etc.. E
impossivel alguem definir sua posicao sem relaciona-la com outras
posicoes. Por isso, cada enunciado e pleno de variadas atitudes
responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicacao
discursiva."
(Bakhtin, 2003, p. 297)
Para Dominique Maingueneau, o contexto que cerca o fato desempenha
um papel muito importante e e fornecedor de dados que permitem nao so
desfazer ambiguidades, mas tambem compreender melhor os enunciados.
Nesse sentido, segundo Beth Brait (2007), e necessario "olhar para
fora do texto" ou, como tambem sugere Michael
Foucault, enfrentar a "massa de tracos" verbais e
extraverbais que povoa o texto e aponta para fora dele, vinculando,
social e historicamente, sujeito, vida e linguagem.
"Embora o homem seja no mundo o unico ser que fala, nao
constitui de modo algum ciencia humana o conhecer as mutacoes foneticas,
o parentesco das linguas, a lei das derivacoes semanticas; em
contrapartida, poder-se-a falar de ciencia humana desde que se procure
definir a maneira como os individuos ou os grupos concebem as palavras,
utilizam a sua forma e o seu sentido, compoem discursos reais, neles
mostram e ocultam o que pensam, dizem, sem que talvez tenham consciencia
disso, mais ou menos do que pretendem dizer, deixam, em todo caso,
desses pensamentos, uma massa de tracos que e necessario decifrar e
restituir tanto quanto e possivel a sua vivacidade representativa."
(Foucault [1966], pp. 458-459 apud Brait, 2007)
Isso posto, pretendemos, dentro dos limites permitidos em um
artigo, "decifrar e restituir a veracidade representativa" dos
enunciadores nas 23 reportagens publicadas pela Folha de Boa Vista.
Apresentando o corpus
A FBV foi inaugurada em 1983. Passou por varias maos, ate se tornar
propriedade do ex-governador do, entao, Territorio de Roraima, Getulio
Cruz. Hoje e a filha, Paula Cruz, quem coordena a empresa (Soares apud
Lima, 2008, p. 30). O veiculo e visto no Estado como o jornal de maior
credibilidade, tanto pelos anos de atuacao, quanto pela linha editorial
desenvolvida.
As 23 reportagens que agrupamos neste artigo pertencem a um mesmo
genero textual e buscam, por definicao, informar, apresentando
"apenas" os fatos como eles aconteceram. A reportagem, rezam
os manuais, responde as questoes "como?" e "por
que?"; no entanto, as conclusoes cabem ao leitor (Zancheta, 2006).
Menos do que teorizar sobre cada um dos generos
textuais--"tipos de enunciados relativamente estaveis,
caracterizados por um conteudo tematico, uma construcao composicional e
um estilo" (Fiorin, 2008, p. 61)--nosso objetivo e compreender,
numa perspectiva bakhtiniana, como os textos de, um mesmo genero, da
FBV, foram construidos e que circunstancias permearam o enunciador.
Fiorin (2008), um dos estudiosos de Bakhtin, esclarece ainda que,
para o filosofo russo, o ponto de partida para compreender os generos
textuais esta na analise da linguagem entrelacada com as atividades
humanas, por compreender que nao ha producao dos textos fora das acoes.
Para Martin-Barbero (2003, p. 187), outro teorico em que nos
apoiamos, os meios de comunicacao estabelecem uma mediacao institucional
com o mercado, que reorienta, rearticula a intencionalidade do escritor.
Essa mediacao, por vezes, interfere no que foi escrito, na selecao do
que e noticia ou nao, ou ainda do que vai aparecer na capa ou no proprio
corpo do jornal, produzindo sentidos diferentes.
O olho do jornalista e, ou pelo menos deveria ser, o olho da
sociedade. No campo academico, o olho do jornalista e
"educado" para ter visao critica e social. Pierre Bourdieu
(1997, p. 25) diz que esses profissionais possuem uma especie de oculos
especiais que veem, destacam algumas coisas e anulam outras.
Em nosso corpus, observamos alguns discursos que se repetiram, por
isso tabulamos as reportagens em tres grandes eixos tematicos: Lutadores
e injusticados, inversao de papeis?; Conflito e Reforco as tradicoes x
desenvolvimento: da parixara ao forro. Como as reportagens analisadas
foram escritas por reporteres mulheres, usaremos o genero feminino, a
reporter, para falar de sua autoria, mas nao entraremos no merito da
discussao do fato de se tratar ou nao de uma escrita feminina em
oposicao a uma masculina.
Lutadores e injusticados: inversao de papeis?
Na maioria dos textos analisados os indigenas foram representados
incitando conflitos ou afirmando que nao mediriam esforcos para ter a
terra somente para si. Os arrozeiros, por sua vez, ganharam o discurso
dos injusticados. Em boa parte das reportagens reclamaram do processo
demarcatorio e afirmaram que iriam a falencia.
Na reportagem no 04, nao so o corpo do texto, mas tambem, o titulo
incitam a comocao do leitor: Produtora diz que multa levara a falencia.
Na sequencia, o primeiro paragrafo mostra a situacao praticamente
precaria em que se encontravam os arrozeiros:
"A empresaria Regina Barili, proprietaria da marca de arroz
Tio Ivo, procurou a Folha para narrar a situacao de desamparo em que
estao vivendo os rizicultores que ha 12 dias deixaram as fazendas que
ocupavam na terra indigena Raposa Serra do Sol, ao norte de
Roraima."
(Folha de Boa Vista, 12/05/2009, destaque nosso)
Para completar a situacao de penuria, ainda pior que a dos
arrozeiros irem a falencia, o enunciador mostra que os funcionarios
demitidos, dificilmente, teriam condicoes de sobreviver dignamente sem o
trabalho que desenvolviam nas terras. O problema ainda se agravava
porque os arrozeiros nao tinham perspectivas de encontrar outra area
semelhante:
"Os problemas nao se resumem apenas aos itens ja citados. O
casal Barili ainda nao encontrou outra area para plantar, o arroz
estocado esta acabando e os funcionarios estao sendo demitidos.
"Estamos sem terra e nao identificaram outra area para nos
produzirmos. O arroz que tenho estocado nao da para trabalhar ate
dezembro, vai acabar antes, entao eu queria perguntar as autoridades o
que e que vamos fazer", desabafou."
(Folha de Boa Vista, 12/05/2009, destaque nosso)
A reporter enfatizou, por meio de suas construcoes verbais, que os
arrozeiros eram vitimas tanto da desintrusao, uma acao politica, quanto
de intemperies da natureza.
Entendemos que os indios sao, em geral, vistos (por meio da
construcao do imaginario popular) sob duas principais perspectivas: de
um povo sem voz que merece ser cuidado e de um grupo lutador, em busca
de seus direitos. Entretanto, a segunda imagem foi apresentada com maior
veemencia, como no fragmento do texto no 02, de 19/03/2009.
"O coordenador-geral do Conselho Indigena de Roraima, Jose
Dionito de Souza, acha improvavel que o Supremo Tribunal Federal (STF)
mude o placar que mantem a homologacao continua da Terra Indigena
Raposa/ Serra do Sol, mas enfatizou que independente do resultado do
julgamento, se pela manutencao ou nao da area continua, os indios vao
ocupar as fazendas de arroz ...
Vamos ocupar a terra, porque nao existe fazenda la, mas sim
invasao. Vamos manter a Raposa Serra do Sol em area continua, seja la
que decisao for o resultado do Supremo Tribunal Federal, nao vamos abrir
mao da area continua, afirmou."
(Folha de Boa Vista, 19/03/2009, destaque nosso)
O texto mostrou que, independentemente, do desfecho do julgamento
da acao do decreto do STF, que colocaria fim a demarcacao em area
continua, ali estariam eles [os indios] prontos para continuar na luta
pela terra. Dito de outra maneira, a intencao do enunciador foi nao so
mostrar que os indigenas estavam ansiosos pelo desfecho do julgamento,
mas tambem decididos a permanecer na reserva (nao vamos abrir mao), como
ja vinham fazendo.
Amenizando o conflito e a representacao dos indios, como invasores
dispostos a chegar as ultimas consequencias, o texto seguinte constroi a
nocao do indio aculturado, adaptado, sem conflitos de identidade e com
demandas tipicas da sociedade capitalista, que vende o excedente com
margem de lucro:
"Abel Barbosa informou que essa nao e a realidade, que os
indigenas da area em litigio nao vivem mais assim. "Somos
aculturados, temos filhos estudando na cidade, fazendo faculdade.
Queremos o desenvolvimento, nao vivemos isolados. A gente quer criar,
plantar, comprar e vender gado, produzir", defendeu o tuxaua."
(Folha de Boa Vista, 20/03/2009, destaque nosso)
Esses exemplos, embora em pouca quantidade, sao suficientes para
mostrar que, num primeiro momento, seus enunciadores buscaram construir
um discurso em que indios e arrozeiros sao igualmente vitimas e
merecedores de apoio da opiniao publica. No entanto, outros registros
mostraram que os indios, habitualmente representados como subordinados
ao poder politico e economico dos brancos, receberam outra imagem dentro
do jornal: sao bem informados sobre o tema, a ponto de utilizar esse
discurso, por vezes ensaiado, para participar de foruns de discussao e
estao dispostos a chegar as ultimas consequencias para lutar pela
permanencia nas terras. Pode-se supor que os indios foram representados
como fortes em oposicao aos fracos, os arrozeiros, que precisariam do
apoio dos demais setores da sociedade roraimense, entre eles, dos donos
do jornal.
Conflito
A Terra Indigena Raposa Serra do Sol, vale repetir, ha muito tempo
foi objeto de disputa entre indios e nao-indios. O conflito apresentado
pela FBV ora foi entre indios com opinioes diferentes, ora entre policia
e indios, ora entre policia e arrozeiros e ora entre arrozeiros e
indios. Nas 23 reportagens, a palavra conflito foi empregada 19 vezes. O
verbo ocupar ou o substantivo ocupacao, por sua vez, foram usados em dez
oportunidades.
O texto no 01, de 28/01, seguramente foi um dos que mais
apresentaram este embate. No titulo, a reporter anuncia: Indios ocupam
predio da Funai e mantem o administrador refem durante seis horas. No
corpo do texto, percebemos que a reporter nao mediu esforcos para passar
ao leitor a tensao do clima vivenciado. Isso pode ser explicado porque
em outros trechos, que por motivo de economia nao foram aqui
reproduzidos, observamos que o enunciador esteve durante boa parte do
tempo na sede da Fundacao Nacional do Indio (FUNAI) e nao so relatou,
como tambem viveu parte da ocupacao/ invasao:
"Cerca de 200 indios contrarios a demarcacao da terra indigena
Raposa Serra do Sol em area continua invadiram na tarde de ontem a sede
da Fundacao Nacional do Indio (FUNAI) e fizeram refem Petronio
Laranjeira, administrador substituto do orgao.
(Folha de Boa Vista, 28/01/2009, destaque nosso)
No trecho a seguir, observamos a manifestacao de um autor-criador.
O conceito, apresentado por Bakhtin (2009, p. 38), nos diz que e esse
elemento que da forma a um objeto estetico, o pivo que sustenta a
unidade do todo esteticamente consumado. Esse autor olha os fatos com
simpatia ou antipatia, distancia ou proximidade, reverencia ou critica,
gravidade ou deboche, aplauso ou sarcasmo, alegria ou amargura,
generosidade ou crueldade, jubilo ou melancolia. A forma detalhada de
dizer como os indigenas estavam armados revelou tracos de proximidade. O
sentido produzido foi de que, a qualquer instante, o refem poderia ser
atingido e o conflito ter um desfecho mais tragico:
"Estavam armados com arcos, flechas e bordunas (pedacos de
madeira). Ao tomar o predio, eles esvaziaram as salas, mas mantiveram
Laranjeira em carcere privado por seis horas. A ideia era encarcerar o
administrador Goncalo Teixeira, que esta de ferias.
(Folha de Boa Vista, 28/01/2009, destaque nosso)
Naquele momento, quando tinham um refem sob seu poder, eram os
indigenas que tinham maior dominio, apesar de suas armas serem
consideradas mais frageis.
"Logo que chegaram, os indigenas impuseram suas condicoes.
Exigiram que o administrador substituto entrasse em contato com a
presidencia da Funai, em Brasilia, e informasse a situacao de invasao.
Ao mesmo tempo, condicionaram a liberdade de Laranjeira a 60 passagens
aereas com destino a Capital Federal."
(Folha de Boa Vista, 28/01/2009, destaque nosso)
Os verbos impor, exigir e condicionar reforcam a ideia de que os
indigenas estavam no controle da situacao. E importante dizer ainda que,
na maioria dos textos, quando a palavra conflito foi empregada, esteve
quase sempre relacionada aos indigenas, sugerindo que eram eles os que
desejavam resolver os impasses por meio da forca.
O conflito de indio contra indio ainda foi descrito de maneira
dramatica no texto no 02, como sugere o subtitulo: O tuxaua do Flexal,
Abel Barbosa, diz que vai ter briga de indio contra indio e derramamento
de sangue.
No corpo do texto, um tuxaua respondeu a outra materia publicada no
dia anterior, no qual um lider indigena tinha dito qual destino daria
aos quase dois milhoes de terra.
"Se eu chegar na sua casa e querer mandar, a senhora nao vai
aceitar, ne? Assim tambem vai ser com a gente. Ele (Dionito) quer ser o
governador da Raposa, vai querer mandar, mas nao sera do jeito que ele
esta pensando. Vai ter briga de indio contra indio, vai ter derramamento
de sangue, porque a gente nao vai aceitar isso", disse Abel
Barbosa, de Brasilia, no intervalo do julgamento no STF.
(Folha de Boa Vista, 19/03/2009, destaque nosso)
Acreditamos que o clima de tensao e conflito de fato existiu
durante o processo final de desintrusao. Apesar disso, pensamos que essa
tematica, anunciada pelo jornal, exagerou no sensacionalismo, mecanismo
utilizado pelos veiculos para chamar a atencao dos leitores. E fato que
noticias sobre catastrofes, acidentes despertam o interesse do publico,
causando comocao. Por isso, os momentos em que de fato havia conflitos
nao foram desperdicados, ao contrario, foram bastante divulgados.
Reforco as tradicoes x desenvolvimento: da parixara ao forro
O convivio entre seres humanos pertencentes a esse ou aquele povo
da origem ao conceito de cultura. Dentro de uma realidade economica,
regiao, ou grupo politico caracteristicas peculiares desses grupos sao
construidas e consolidadas. Vannucchi (1999, p. 21) acredita que se pode
conceituar cultura como autorrealizacao da pessoa humana no seu mundo.
Algo que nao se cristaliza apenas no campo teorico, mas tambem no da
sensibilidade, acao e comunicacao. Quando se procura extrair dessa
realidade o conceito unico de cultura surge a dificuldade. E certo que o
que se pretende aqui nao e polemizar sobre o conceito de cultura, pois
sabemos da polissemia que o permeia e, ainda, que o significado
equivalente nao existe em boa parte das linguas orais e sociedades
pesquisadas por etnologos (Cuche, 1999, p. 15), mas apenas entender os
significados intimamente ligados a tradicao.
Compreendemos que a cultura reune um conjunto de sistemas de signos
e significados criados pelos grupos sociais. Dessa forma, interpretar as
culturas significa interpretar simbolos, mitos, ritos. Guareschi (2002,
p. 16) afirma que e no campo da cultura que se percebe a importancia dos
meios de comunicacao, pois sao indispensaveis nao so para a criacao, mas
tambem para a transmissao dos simbolos e ritos. As tradicoes indigenas,
como dancas tipicas e o uso de objetos artesanais, foram, em varios
momentos, destacados no discurso da Folha de Boa Vista. Entretanto, o
que chamou a atencao e que em alguns textos o desejo de haver
desenvolvimento esteve praticamente lado a lado com elas. Cuche (1999,
p. 136) esclarece que nenhuma cultura existe em estado puro, sem jamais
ter sofrido influencias externas. Dessa maneira o grau de aculturacao e
um fenomeno praticamente impossivel de ser barrado, existe em maior ou
menor grau, como observaremos nos proximos exemplos.
O interessante nos textos e ver nao so a oposicao tradicoes x
desenvolvimento, mas a critica implicita nas palavras do enunciador,
como no texto no 02. A reporter que esteve na Vila Surumu, uma das
entradas da Raposa Serra do Sol, conferiu de perto como estavam as
manifestacoes durante o julgamento em area continua.
"Os indios abriram as comemoracoes pelo retorno do julgamento
com uma oracao, seguida de ritos tradicionais, na quadra de esportes
situada na vila. Dancaram a Parixara com rostos pintados e
confeccionaram com palhas utensilios domesticos [...]. Ao final do dia,
quando ainda era lido o voto do ministro Marco Aurelio, fizeram uma
procissao seguida de vigilia por um resultado favoravel aos seus
pleitos. Posteriormente o forro ocupou o espaco."
(Folha de Boa Vista, 19/03/2011, destaque nosso)
Os ritos tradicionais foram dancados em uma quadra de esporte,
lugar que nao faz parte da cultura original dos indigenas. De rostos
pintados, produziram artesanato, como se quisessem reforcar,
materialmente, as tradicoes que estavam sob ameaca. A marca da critica
ficou por conta da ultima frase do paragrafo, na qual se afirmou
implicitamente e sem nenhum elemento de ligacao com a oracao anterior,
que o forro, danca dos brancos, ocupou, com espontaneidade, o lugar da
parixara, tipica dos indios. Ou, em outras palavras: que, dependendo das
circunstancias e dos interesses, os indios, uma das ultimas comunidades
autenticas, como sugere Martin-Barbero, ora praticam uma coreografia,
ora outra, sem qualquer crise identitaria, resultando na
espetacularizacao e subordinacao da sua cultura a modernidade.
No final do texto no 03 sao os indigenas que reforcam a ideia de
desenvolvimento. Um tuxaua, contrario a demarcacao continua, reclamava
da decisao do STF, que nao teria ouvido os interessados para deferir o
processo. Ele mesmo destaca que muitos ja nao vivem mais isolados, como
os Yanomami, outra etnia.
"Segundo o tuxaua, os ministros votaram sem ouvir todos os
segmentos, em especial aqueles que discordam da area continua,
acreditando que os moradores da Raposa/Serra do Sol ainda vivem como os
yanomami, que moram no meio da mata e sobrevivem da caca e pesca. Abel
Barbosa informou que essa nao e a realidade, que os indigenas da area em
litigio nao vivem mais assim. 'Somos aculturados, temos filhos
estudando na cidade, fazendo faculdade. Queremos o desenvolvimento, nao
vivemos isolados. A gente quer criar, plantar, comprar e vender gado,
produzir', defendeu o tuxaua."
(Folha de Boa Vista, 20/03/2011, destaque nosso)
O tuxaua Abel Barbosa reivindica aqui o direito de lutar, ter
acesso ao que ele considera desenvolvimento: plantar, comprar e vender
produtos para estabelecer uma relacao de oferta e procura e, ainda,
lucro. Afinal os indios nao vivem mais isolados, fazem parte nao de uma
comunidade, como apresentada por Bauman (1), e sim de uma sociedade,
supostamente com mais possibilidades de crescimento economico.
"Os integrantes do CIR, que ate o voto do presidente do
Supremo, ministro Gilmar Mendes, estavam dormindo em redes ou sentados
conversando na frente de suas casas aguardando a decisao, retomaram as
comemoracoes iniciadas na quarta-feira, quando o julgamento da
legalidade da demarcacao foi retomado. Eles vestiram roupas tradicionais
e dancaram o Parixara, sob o olhar atento dos agentes federais. Um deles
carregava uma bandeira com o mapa da Raposa Serra do Sol. Eles ainda
mataram um boi e fizeram churrasco. Mas a comemoracao mesmo, segundo
eles, deve ocorrer no dia 19 de abril, Dia do Indio."
(Folha de Boa Vista, 20/03/2009, destaque nosso)
No mesmo texto, o enunciador mostrou outro contraste. Na vila
Surumu, no meio da Terra Indigena, havia tecnologia, pois os nao-indios
assistiam ao desenrolar do processo de desintrusao em uma TV por
assinatura.
"Cerca de 20 habitantes nao-indios tambem choraram ao saber
que terao que sair da reserva. Eles acompanharam o julgamento do STF por
meio de uma TV por assinatura. Ao final se abracaram, choraram, rezaram
e reafirmaram que so deixarao suas casas quando forem reassentados e
receberem indenizacao previa e de justo valor.
(Folha de Boa Vista, 20/03/2009, destaque nosso)
Consideracoes finais
A partir desses exemplos, ja podemos comecar a concluir que nem
enunciadores, nem a propria redacao do jornal FBV, que publicou as
reportagens, soube diferenciar a identidade e a cultura dos indios das
dos nao-indios. Os proprios indigenas, por sua vez, parecem nao saber
resolver o conflito entre tradicao e ruptura, entre natureza e cultura
(ou progresso). Talvez seja esse o grande problema da cultura indigena
que acabou manifestado nas reportagens selecionadas: nao negar as
tradicoes e, ao mesmo tempo, acompanhar as inovacoes tecnologicas, sob
pena de exclusao social, economica e politica.
O jornal apresentou um indio em conflito. De um lado, assistia a TV
a cabo para acompanhar a votacao em Brasilia e falava em desenvolvimento
e, do outro, um povo que fazia dancas tipicas, produzia artesanato, mas
que tambem dancava forro.
As representacoes dos indigenas oscilaram de acordo com o contexto
que os cercavam. Ora era interessante parecer ainda mais indio, ora era
conveniente falar em desenvolvimento, lancar no grupo o desejo pela
autossustentacao. De fato, hoje em dia, praticamente aculturados e com
tamanho contato com o homem branco, essas contradicoes seriam
inevitaveis. Mas e importante enfatizar que quando o indio e apresentado
de forma estereotipada esse discurso esta nas palavras do enunciador do
jornal. Em quase todas as situacoes analisadas, na qual havia indicios
da cultura indigena, o jornal fazia questao de destaca-la. Ja a busca do
desenvolvimento esta nos enunciados proferidos pelos proprios indios,
como se quisessem responder a fala do enunciador.
Tambem observamos, que a Folha de Boa Vista, no que diz respeito a
indios e arrozeiros, deu igual abertura de espaco aos dois grupos
sociais. No entanto, enquanto na maior parte a representacao dos indios
foi de luta e sujeitos agressivos, a dos rizicultores foi de homens
injusticados, que precisavam do jornal para tornar publicos seus
pensamentos.
Acreditamos tambem que a tentativa de vitimizar os arrozeiros
serviu como pano de fundo para que a populacao se compadecesse; afinal,
a maior economia do Estado estava sendo abalada. Dessa forma, muitas
pessoas seriam afetadas e indiretamente nao seriam simpatizantes a luta
dos indigenas. Isso quer dizer que, ainda que de maneira implicita, a
FBV deu apoio aos rizicultores.
Mas, ao final e ao cabo, o que a FBV mostrou e que, alem de fazer
questao de reforcar o poder que tem para tornar publicas as informacoes,
quis convencer os leitores de sua credibilidade. Por fim, reforcamos,
por meio desses exemplos, o conceito de palavra para Bakhtin: que ela
"[se] constitui como produto ideologico, ou seja, e resultado de um
processo de interacao" (Stella apud Brait, 2005, p. 178).
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NOTA
(1) Zygmunt Bauman, sociologo polones e teorico sobre identidade,
parte da mitologia grega para afirmar que o sentimento de comunidade e o
ponto de partida de determinado povo. Em comunidade as pessoas nao
precisam explicar o que falam, pensam ou como agem. Ou seja,
"dentro do circulo aconchegante elas nao precisam provar nada e
podem, o que quer que tenham feito, esperar simpatia e ajuda"
(Bauman, 2003 p. 16). E aconchegante permanecer dentro da comunidade. No
entanto, este circulo pode ser aberto por outras culturas. Essa fissura,
como argumentou o teorico, surge com o aparecimento da informacao,
independente de quem a leva.
Barbara Heller
Professora do Mestrado em Comunicacao na Universidade
Paulista--UNIP. <
[email protected]>
Wenya Alecrim
Professora do Instituto de Ensino Superior de Rio Verde--IESRIVER e
Faculdade de Ciencias Sociais e Tecnologicas--Facitec.
<
[email protected] >
Tabela 1--Exemplos enumerados por ordem cronologica
de publicacao
No Dia publicado Titulo (no interior do jornal)
01 28/01/2009 Indios ocupam predio da Funai e mantem
administrador refem durante seis horas
02 19/03/2009 Suspensao temporaria de julgamento nao
acirra animos em Surumu
03 20/03/2009 Sodiur alerta para conflito entre indios
04 12/05/2009 Produtora diz que multa levara a falencia