Between escape and invasion: otherness and citizenship of Haitian immigration in the Brazilian media/Entre a fuga e a invasao: alteridade e cidadania da imigracao haitiana na midia brasileira.
Cogo, Denise ; Silva, Terezinha
Introducao
A partir do inicio do ano de 2011, um movimento migratorio com
escassa presenca na historia brasileira--a imigracao haitiana--ganhou
notoriedade publica a partir de um intenso fluxo de informacoes e
imagens produzidas e difundidas pela midia brasileira em torno de seu
ingresso atraves da fronteira da regiao norte do Brasil. A novidade do
fenomeno, as trajetorias assumidas por essa imigracao e os
desdobramentos de sua presenca no debate publico em torno das politicas
migratorias e dos processos de cidadania das migracoes internacionais no
pais vao assumir visibilidade, especialmente a partir a intensificacao
dessas narrativas midiaticas que enunciam as dinamicas de chegada e
insercao de haitianos no Brasil.
O presente trabalho tem como objetivo, mapear e compreender como a
imigracao haitiana foi abordada por diferentes midias ou por narrativas
que nelas ganharam visibilidade nos primeiros quatro anos de presenca
significativa da diaspora haitiana no Brasil (2011-2014). Interessa-nos,
mais especificamente, apreender as disputas de sentido em torno da
alteridade representada pela presenca desses novos imigrantes e suas
repercussoes no debate publico sobre as politicas migratorias e
processos de cidadania das migracoes internacionais no pais.
Tres questoes orientam a reflexao aqui proposta: 1) Quais
acontecimentos e/ou temas relativos a imigracao haitiana ganham algum
tipo de visibilidade na agenda publico-midiatica? 2) Como, em sua
condicao de alteridade, a imigracao haitiana e os imigrantes sao
descritos ou enquadrados no contexto desses acontecimentos e temas
visibilizados pelas midias? 3) Como os acontecimentos e temas agendados
trazem ao debate publico dimensoes que evidenciam disputas em torno das
politicas migratorias brasileiras como instancias de constituicao da
cidadania da imigracao haitiana e das migracoes internacionais em geral?
A metodologia abrangeu a coleta e analise de um corpus de 162
materiais midiaticos, em versao digital, sobre a imigracao haitiana
publicados em portais, jornais, revistas, blogs, sites de redes sociais,
vinculados a organizacoes midiaticas publicas e privadas, assim como em
publicacoes mantidas por instituicoes publicas, privadas e sem fins
lucrativos--todos referenciados ao final do artigo. Entendemos que esse
conjunto de materiais midiaticos, selecionados, sao representativos dos
principais acontecimentos e temas ofertados pela midia brasileira sobre
a imigracao haitiana, inclusive em termos de pluralidade tematica.
Contudo, nao pretendemos dar conta (e nem poderiamos) de todo o escopo
de publicacoes midiaticas sobre a mobilidade haitiana, tendo em vista o
crescimento da producao sobre essa imigracao nas midias nos ultimos
quatros anos.
A analise foi desenvolvida a partir da leitura e categorizacao
tematica das materias coletadas, e da identificacao dos acontecimentos e
temas que pautaram a construcao da imigracao haitiana na midia
brasileira. Compreendemos a nocao de acontecimento como algo que emerge
ou provoca uma ruptura na continuidade da experiencia, que provoca acoes
e discursos por parte de individuos e instituicoes, revelando problemas,
temas, questoes da vida coletiva, conforme a abordagem proposta por
Quere (2005). Nesse sentido, entendemos a chegada dos imigrantes
haitianos ao Brasil, assim como outras ocorrencias a ela relacionadas,
como acontecimentos, que interpelam e agenciam diferentes atores,
instituicoes e discursos em torno de questoes coletivas que essa
imigracao suscita.
Atraves de uma analise qualitativa do conteudo das 162 materias,
identificamos um total de sete acontecimentos e temas, relacionados a
imigracao haitiana e abordados pelas midias, de modo central ou
exclusivo, ou de maneira articulada, de 2010 a 2014 (1). Desse conjunto
de acontecimentos e temas que compuseram a agenda midiatica do periodo
analisado, selecionamos tres para a analise: a chegada dos imigrantes ao
Brasil; o fechamento do abrigo em Brasileia (Acre) e a chegada de
haitianos a Sao Paulo; e a politica migratoria brasileira, tendo como
operador analitico O conceito de enquadramento, explicitado mais
adiante. Tal reducao deveu-se nao apenas a limitacao de espaco do
presente artigo, mas tambem, a observacao de que, no conjunto do
material coletado, foram os que mais ganharam repercussao e
desdobramentos na agenda midiatica.
Imigracao haitiana no Brasil: contextualizacao
A diaspora haitiana que, apos o terremoto que atingiu o Haiti, em
2010, tornou-se realidade no Brasil, intensificou-se no inicio do seculo
XX, passando a ter presenca relevante em distintas regioes do mundo,
especialmente Caribe, America do Norte e Europa Ocidental. Estima-se que
um milhao e meio de haitianos, cerca de 15% da populacao do pais,
residam, atualmente, no exterior. As primeiras migracoes haitianas de
grande amplitude coincidem com a ocupacao militar do Haiti (2) pelos
Estados Unidos entre 1915 e 1934, nao podendo ser dissociadas da
conjuntura geopolitica intervencionista que visava atender aos
interesses economicos estadunidenses no Caribe no inicio do seculo XX
(Audebert, 2011).
Somam-se a isso, condicoes economicas e politicas anteriores que,
durante os seculos XVIII e XIX, tambem contribuiram para impulsionar
fluxos migratorios de haitianos, a partir da implantacao, no Haiti, de
um sistema economico de plantacao de cana e de cafe que, as custas da
exploracao da forca de trabalho e dos recursos naturais, visou a
obtencao de rentabilidade maxima em curto prazo (Audebert, 2011). A
sucessao de governos ditatoriais, golpes de estado e uma guerra civil
que durou varios anos contribuiram para aprofundar, nas ultimas decadas,
as dificuldades socioeconomicas e politicas enfrentadas pela populacao
haitiana. Soma-se a isso o terremoto que atingiu o pais em 12 de janeiro
de 2010, provocando cerca de 200 mil mortes e deixando cerca de 1,5
milhoes de desabrigados.
Em maio de 2015, o Embaixador do Haiti no Brasil, Madsen Cherubin,
informou que, ate dezembro 2014, 53 mil haitianos haviam ingressado no
pais, cerca de 20 mil regularizados atraves de vistos humanitarios (3).
Estudo realizado em 2014 pelo Observatorio das Migracoes Internacionais
indica que, dentre os imigrantes internacionais, os haitianos ja
constituem, quantitativamente, a nacionalidade com maior presenca no
mercado de trabalho formal brasileiro (Cavalcanti, Oliveira e Tonhati,
2014).
O ingresso de haitianos no Brasil tem sido feito atraves de rotas,
que incluem o deslocamento aereo da Republica Dominicana ou de Porto
Principe, para o Equador e, em alguns casos, por via terrestre para o
Peru. Esse trajeto e seguido de um percurso, tambem terrestre, ate as
cidades de Assis Brasil, Epitaciolandia e Brasileia (no estado do Acre)
ou Tabatinga, (no estado do Amazonas). Em alguns casos, os imigrantes
chegam tambem pela cidade de Corumba, Mato Grosso do Sul ou, ainda, por
aeroportos de grandes cidades brasileiras, como Sao Paulo (Cogo, 2014).
As escolhas das rotas de ingresso estao condicionadas por variaveis como
as facilidades e custos de transporte, as possibilidades efetivas de
entrar no pais, alem de interesses e estrategias tracadas pelos
"coiotes" (4). Entre os imigrantes que chegam ao Brasil,
predominam homens jovens entre os 25 aos 34 anos, embora, a partir de
2013, se observe tambem um aumento do numero de mulheres, criancas e
idosos que migram para o pais (Ximenes e Almeida, 2014).
A mobilidade haitiana para o Brasil e um movimento migratorio que
se insere nas reconfiguracoes dos movimentos migratorios internacionais
que tem se caracterizado por maior diversidade e multidirecionalidade.
Nesse contexto, a partir de 2008, o Brasil passa a ocupar um especifico
posicionamento como pais receptor de imigrantes, tornando-se novamente
opcao de grupos migratorios diversos, dentre os quais norte-americanos,
espanhois, portugueses, senegaleses e haitianos- Esse reposicionamento
vai decorrer especialmente da crise economica global que, a partir de
2007, atingiu, de modo mais acentuado, Estados Unidos e Europa, assim
como das possibilidades de trabalho abertas, no pais, pela realizacao
das obras de infraestrutura relacionadas aos grandes eventos como a Copa
do Mundo de 2014 e as Olimpiadas de 2016 (Cogo, Souza, 2013).
O crescimento da imigracao haitiana para o Brasil nao pode,
contudo, ser compreendido como decorrencia unicamente do terremoto que
agravou as ja precarias condicoes de sobrevivencia de grande parte da
populacao haitiana. Alem da experiencia diasporica que demarca a
trajetoria do povo haitiano, e preciso considerar tambem a existencia de
vinculacoes geopoliticas e simbolicas anteriores entre Brasil e Haiti.
Estas estao relacionadas, principalmente, a atuacao, no Haiti, do
exercito brasileiro que, em 2004, assumiu o controle das tropas da
Missao das Nacoes Unidas para a Estabilizacao do Haiti (MINUSTAH), e de
organizacoes nao governamentais (ONGs), previa e posteriormente ao
terremoto.
Assim, a visibilidade publica dessa imigracao produzida pela midia
brasileira pode ser pensada como resultado e ao mesmo tempo instancia
que vai evidenciar e (re) atualizar esses enlaces geopoliticos e
imaginarios simbolicos entre Brasil e Haiti, que operam como
antecedentes e tambem impulsionadores dos fluxos migratorios de
haitianos para o pais. A midia vai atuar na producao e proposicao de
modos de vivenciar a alteridade nas interacoes entre esses novos
imigrantes e a sociedade brasileira, se entendemos a nocao de alteridade
como um processo de constituicao de subjetividades e identidades sociais
que assume uma perspectiva classificatoria e relacional. E na dinamica
de relacao com o outro, na sua condicao de "diferente", que se
tecem as experiencias de alteridade migratoria. Estas sao impactadas ao
mesmo tempo em que impactam os discursos sobre os imigrantes e as
politicas migratorias produzidos por diferentes instituicoes como as
midiaticas, estatais, etc.
Enquadramentos da imigracao haitiana na midia
O enquadramento e um conceito util para identificar as formas de
interpretar ou significar um acontecimento, tema etc., e as disputas de
sentido ai implicadas, alem de permitir ver como os atores envolvidos
sao posicionados ou qualificados numa determinada situacao. Entendemos
esse conceito a partir das reflexoes de Goffman (1991) sobre os
"quadros da experiencia", definidos como sendo
"principios de organizacao ou elementos de base que estruturam os
acontecimentos [...], e servem para definir a situacao e a nossa
implicacao neles" (Goffman,1991, p.19). Nesta perspectiva, conforme
destacam Franca, Silva e Vaz (2014, p. 83), "os quadros sao como
matrizes interpretativas as quais os individuos recorrem cotidianamente
para entender e se posicionar em diferentes situacoes. E o
'enquadramento' e a mobilizacao desses quadros--um proces so
fundamental na organizacao da experiencia", pois permite aos
individuos definir o que acontece, para se posicionarem e atuarem em
determinada situacao. "Tais quadros, porem, nao sao construcoes
individuais e sim socioculturais", que "os individuos mantem,
transformam, atualizam, em suas interacoes e relacoes sociais"
(Franca, Silva e Vaz, 2014, p. 83).
No caso da imigracao haitiana no Brasil, o conceito de
enquadramento nos permite analisar como a alteridade representada por
essa imigracao e descrita e construida pela midia na perspectiva de
compreendermos as incidencias desses quadros de sentido nos processos de
cidadania e politicas migratorias relacionadas a imigracao de haitianos
e, de modo articulado, a imigracao internacional no Brasil. E o que
apresentamos na sequencia a partir da analise da chegada dos imigrantes
ao Brasil; do fechamento do abrigo em Brasileia (Acre) e da chegada de
haitianos a Sao Paulo; e do debate em torno da politica migratoria
brasileira.
A chegada dos haitianos como "fuga"
Embora tenha iniciado a partir de fevereiro e, sobretudo, setembro
de 2010 meses apos o terremoto no Haiti--, a chegada de haitianos ao
Brasil ganha visibilidade nas midias brasileiras principalmente no
comeco de 2011 (5). Essa imigracao e descrita, naquele momento, como
"um fluxo migratorio inedito" provocado pelas
"consequencias da tragedia" que foi o terremoto de janeiro de
2010 no Haiti (Rocha e Aranha, 2011). Trata-se, conforme as narrativas,
da "chegada de Haitianos em fuga", que "surpreendeu o
governo brasileiro", o qual "ainda nao tem uma solucao
definitiva para os 700 Haitianos" que, em um ano,
"atravessaram a fronteira empurrados pela catastrofe" e
entraram no Brasil--"grande parte deles [...] ilegalmente"
(Rocha e Aranha, 2011; Sabadini, 2011).
O titulo da reportagem da revista Epoca em 05/02/2011--"O que
fazer com os haitianos?" (Rocha e Aranha, 2011)--prenuncia
questionamentos que vao emergir posteriormente em torno da politica
migratoria brasileira. Relatos do periodo situam os haitianos em um
"limbo burocratico", porque o governo brasileiro suspendeu, em
fevereiro de 2011, a concessao dos protocolos de refugio que concedia
aos haitianos, alegando a identificacao de "uma rota de trafico
humano" (Estado de Minas, 2011a) e o fato de que os haitianos nao
podiam obter o status de refugiados6 (Jornal do Commercio, 2011), tendo
que aguardar na fronteira a definicao sobre a concessao de um
"visto especial" por "questao humanitaria" (Camargos
e Prates, 2011).
A partir da chegada mais significativa dos imigrantes e do inicio
da insercao laboral de alguns grupos na regiao Norte--e, depois,
Centro-Oeste, Sudeste e Sul--ja surgem narrativas apontando a
existencia, no Acre, de um "excesso de imigrantes ilegais"
(Luiz, 2011). Apos meados de 2011, outros relatos reforcam esta
descricao da chegada dos haitianos pelo vies da "quantidade" e
da "ilegalidade". Destacam que "o volume de imigrantes no
pais fez com o Brasil entrasse no roteiro da diaspora haitiana"
(Camargos, 2011) 7 e qualificam esta imigracao como uma "nova mare
migratoria clandestina" que "nao para" (Trezzi, 2011a).
A quantificacao da presenca dos haitianos, associada a sua condicao
de "ilegalidade" (8) acaba contribuindo, em grande parte, para
a instauracao de uma "semantica do panico" frente a presenca
da alteridade migratoria. E um recurso que privilegia um enquadramento
objetivo e conclusivo das migracoes em detrimento da compreensao do seu
carater sociocultural e cidadao, alem de fortalecer o protagonismo das
nacoes e governos (e nao das sociedades) na gestao e controle da
realidade dos movimentos migratorios (Van Dijk, 1997).
Ao tematizarem o movimento inicial mais significativo da chegada
dos haitianos, ocorrido entre 2010 e meados de 2011, as narrativas vao
constituindo e cristalizando uma descricao deles como "vitimas da
miseria" e da devastacao, a quem "a pobreza ronda a
vida". Os haitianos sao aqueles que "fogem" do
"terremoto, pobreza, epidemia de colera, fome e violencia"
(Trezzi, 2011a). Sao "esperancosos", buscam no aliado Brasil
"refugio, sobrevivencia, oportunidades de trabalho",
"melhores condicoes de vida", e "dinheiro para mandar aos
familiares que ficaram para tras" (Rocha e Aranha, 2011; Camargos e
Prates, 2011; Sabadini, 2011; Estado de Minas, 2011b). Mas "chegam
com fome, sede, sem dinheiro e pedindo de tudo", em "um exodo
que atormenta as autoridades e comove entidades humanitarias"
(Trezzi, 2011a).
Na dimensao da alteridade de um Outro (Haiti) frente a um Nos
(Brasil), as narrativas vitimam os haitianos como individuos e povo,
associando-os a uma realidade de pobreza e catastrofe. Ao chegar ao
Brasil, eles enfrentam dificuldades, mas encontram uma situacao
"melhor do que no Haiti". O jornal Correio Braziliense
descreve-a assim:
A situacao dos haitianos e tao dramatica e dependente da boa
vontade dos brasileiros que ninguem fica a vontade com a ideia de ser
fotografado. Temem que as fotos mostrem a situacao de miseria em que
vivem e que os familiares, no Haiti, descubram que o sonho de uma vida
melhor ainda esta distante (Correio Braziliense, 2011).
A "invasao haitiana" do Brasil
A tonica inicial das narrativas midiaticas sobre a imigracao
haitiana ao Brasil somam-se outros discursos que vao enfatizar o quanto
a chegada dos haitianos expoe as fragilidades da politica migratoria
brasileira e da atuacao da esfera publica governamental no atendimento
aos imigrantes. Defendem maior "coordenacao" e organizacao
para lidar com a imigracao e uma postura no tratamento aos estrangeiros
que os veja "como causa da riqueza cultural, social e
economica" e nao "como problema" (Pinto, 2011).
A politica migratoria brasileira e a atuacao governamental passam a
ser mais diretamente discutidas no final de 2011, a partir de relatos
indicando um novo movimento de chegada de haitianos pelos estados do
Amazonas e do Acre--que se intensificara na virada para 2012. As
criticas partem tanto de individuos e entidades voluntarias que atuam no
acolhimento aos haitianos quanto das proprias midias. No primeiro caso,
os atores reivindicam um maior envolvimento e responsabilidade dos
governos--federal e estaduais--em acoes de "inclusao" e
"integracao dos haitianos a sociedade brasileira", alertam
"para o risco de uma crise humanitaria", e criticam a retorica
de "boas vindas" do discurso governamental, cuja "atuacao
pratica" teria se limitado a conceder vistos humanitarios, enquanto
o atendimento efetivo aos imigrantes seria feito
"exclusivamente" por "missionarios evangelicos, igrejas
catolicas e instituicoes da sociedade civil" (Farias, 2011). No
segundo caso, um conjunto de outras criticas, provenientes das proprias
midias, ou de vozes que atraves delas ganham visibilidade vao apontar,
no comeco de 2012, para a necessidade de controle da entrada de
haitianos. E neste contexto que emerge um novo quadro de sentido a
partir do qual algumas narrativas passarao a interpretar esta imigracao.
O que antes era enunciado como "fuga" do Haiti, agora passa a
ser narrado como "invasao" ao Brasil.
Diferentes relatos, apontam a "chegada em massa de imigrantes
do Haiti" ou a "invasao haitiana" na regiao norte do
Pais, apos a entrada de "centenas de refugiados" a
Tabatinga/AM e, sobretudo, a Brasileia/AC, entre o final de 2011 e o
comeco de 2012 (Carvalho, 2012a; Lima, 2012). A interpretacao de
"invasao" e sustentada por descricoes referenciando a
"superlotacao de refugiados" e a "situacao
dramatica" de haitianos, particularmente no Acre. Tal situacao
teria levado organizacoes humanitarias e de apoio as migracoes a cobrar
melhorias das "condicoes basicas de vida" dos imigrantes ate
que sejam "capazes de se manter" Teria levado tambem os
governos estadual e federal a iniciar "um plano para transferir os
haitianos para outros grandes centros do pais", onde teriam emprego
(Carvalho, 2012a; Lima, 2012).
As narrativas do periodo reafirmam a perspectiva de
"ilegalidade" dessa imigracao, em alguns casos a partir da
comparacao na forma como os haitianos sao tratados pelo Brasil e pelos
paises vizinhos: Equador, Colombia, e, sobretudo, Peru e
Bolivia--"os dois corredores de chegada dos imigrantes
ilegais". Os relatos enfatizam que estes paises nao aceitam "a
entrada de haitianos ilegalmente, sem visto", nem dao a eles
"ajuda humanitaria", "ao contrario do Brasil", onde
"a entrada ilegal continua, mas eles nao sao expulsos: obtem visto
humanitario e conseguem tirar carteira de trabalho e CPF para morar e
trabalhar no Brasil" (Carvalho, 2012b).
A decisao do governo federal de estabelecer uma cota de 100
vistos/mes a haitianos, a serem emitidos na embaixada brasileira no
Haiti, insere-se nesse contexto--de narrativas da "invasao" e
de uma nova "entrada ilegal de cerca de 500 haitianos"
(Frayssinet, 2012)--e vai suscitar varios discursos de apoios e
criticas. A acao governamental e os discursos que lhe sucedem vao
evidenciar, a partir de entao, o quanto o enquadramento da
"invasao" polariza posicionamentos publicos distintos sobre os
sentidos da imigracao haitiana no Brasil e sobre possiveis conteudos de
uma politica migratoria que diferentes atores consideram adequada ao
novo contexto.
De um lado, posicionamentos como o apoio explicito a medida
governamental por parte do jornal Zero Hora, que, em editorial do dia
15/01/2012, defende o "controle do ingresso de haitianos ao
pais" (Zero Hora, 2012). De outro, um conjunto de outros atores da
sociedade civil, que destacam a "situacao humanitaria e de
solidariedade internacional" envolvida no recebimento aos haitianos
e o desafio posto ao Brasil de "aplicar a solidariedade que defende
como politica" quando brasileiros migram a outros paises. Tambem
enfatizam o quanto a "diaspora haitiana coloca [a] politica
imigratoria brasileira em xeque" (Frayssinet, 2012), acusando-a de
"promocao de imigracao seletiva" e defendendo "a
necessidade de amplas reformas nas instituicoes voltadas para a absorcao
de imigrantes" (Thomaz e Nascimento, 2012; Forum Social, 2012).
Politicas migratorias em debate
Se, no comeco de 2013, algumas narrativas atribuem ao "surto
de imigracao" "ilegal" de haitianos a responsabilidade
pela criacao de "um grave problema no Acre"--que levou o entao
governador Tiao Viana (PT) a decretar "situacao de emergencia
social", em 09 de abril de 2013, e a cobrar sensibilidade e
responsabilidade do governo federal no "seu papel institucional e
constitucional" de definidor de politicas migratorias (Marcel e
Natani, 2013; Dame, 2013)--, no inicio de 2014, novos relatos reforcam o
enquadramento da "invasao" haitiana. No contexto de um novo
movimento de entrada de haitianos--cerca de 70 por dia em Brasileia/ AC
(Eboli, 2014)--, narrativas evocam a "falta de infraestrutura do
abrigo ocupado pelos imigrantes e a escassez de mantimentos", a
situacao de "calamidade publica" e a necessidade de
"fechamento de fronteiras" (Stochero, 2014). Alem da
"invasao", associam a imigracao haitiana a
"problema", "chegada massiva",
"descontrole" por parte das autoridades, e
"ilegalidade" por parte dos imigrantes".
Agravada pelas enchentes que isolaram o Acre, a situacao culmina
com o fechamento do abrigo pelo governo do Acre, em abril de 2014, e o
envio a cidade de Sao Paulo de onibus com aproximadamente 800 haitianos,
dos quais cerca de 200 foram acolhidos pela Missao de Paz (9), entidade
confessional que mantem a Casa do Migrante, no centro da cidade. A
chegada dos haitianos a Sao Paulo desencadeia uma disputa politica, com
ampla visibilidade midiatica, envolvendo dois governadores: Geraldo
Alckmin (PSDB), de Sao Paulo, que acusa de "irresponsavel" o
governo acriano por "nao ter avisado" sobre o envio de
haitianos a Sao Paulo, e Tiao Viana (PT), do Acre, que acusa a
"elite paulista" de promover o "racismo" e a
"higienizacao" (Estarque, 2014).
A dimensao de descontrole e risco que volta a marcar, em 2014, a
cobertura midiatica sobre o ingresso de haitianos sugere a reinstauracao
de uma ambiencia securitaria e criminalizadora que visa o controle dessa
imigracao, ao mesmo tempo em que contribui para expor, no ambito do
debate publico, as repercussoes da intervencao geopolitica do Brasil no
Haiti. Ressurgem, assim, indagacoes sobre a responsabilidade e atuacao
do Estado e governo brasileiro nos processos de recepcao e permanencia
desses imigrantes, implantacao de politicas migratorias efetivas (BBC
Brasil, 2014) e aprovacao de nova lei de imigracao adequada a atual
realidade migratoria do pais (10).
Organizacoes de apoio as migracoes vinculadas a Igreja Catolica,
redes de imigrantes e instituicoes academicas, tem se mobilizado,
principalmente atraves da internet, para reivindicar um tratamento
humanizado a imigracao haitiana por parte do governo e da propria midia.
Trata-se de contradiscursos ao enquadramento da "invasao",
provenientes de atores atuantes na defesa e promocao dos direitos dos
migrantes e refugiados, como e o caso dos integrantes do Nucleo
Interdisciplinar de Estudos Migratorios (NIEM) (11). Em carta intitulada
"Invasao"de haitianos?--Sobre o uso irresponsavel do termo
pela imprensa" e dirigida ao jornal O Globo (12) em janeiro de
2014, membros do NIEM criticam o uso recorrente de "terminologia
securitaria e criminalizante", enfatizam a necessidade de mudancas
nas politicas relacionadas a imigrantes e de implantacao de "uma
politica imigratoria aberta ao futuro" (Povoas Neto, 2014). A carta
segue na mesma linha de dois manifestos produzidos por organizacoes de
apoio as migracoes em 2012 (Forum Social [...], 2012) e 2013 (CDHIC,
2013), ao questionar, dentre outros aspectos, a existencia de criterios
de seletividade na definicao dos grupos migratorios desejados e nao
desejados pelo Brasil, a partir dos quais migrantes brancos e europeus,
que continuam a chegar ao pais, nao tem sido considerados um
"problema", ao contrario do que se observa em relacao aos
haitianos (Belchior, 2014).
Alem dessas, outras mobilizacoes da sociedade brasileira ganham
visibilidade nas midias. Paralelo a algumas manifestacoes racistas e
xenofobicas (YouTube, 2012) ha um conjunto de iniciativas e acoes de
solidariedade da populacao, incluindo outros grupos migratorios
estabelecidos em Sao Paulo. Realizam campanhas de doacoes de roupas,
alimentos e produtos de higiene pessoal e mobilizacao de voluntarios
para atendimento emergencial, na sede da Missao de Paz, dos imigrantes
haitianos recem-chegados a capital paulista (Belchior, 2014), de onde
muitos partem para outras cidades e estados.
Consideracoes finais
Ao analisar o tratamento da imigracao de haitianos na midia
noticiosa brasileira nos primeiros anos da presenca da diaspora haitiana
no Brasil (2011-2014), constatamos uma transformacao no enquadramento
midiatico. O quadro de sentido mobilizado incialmente para interpretar a
imigracao haitiana ao pais uma "fuga" do Haiti, da
"miseria" e do "desastre"--e substituido por
outro--o de "invasao haitiana" ao Brasil, que passa a gerar e
respaldar discursos defendendo a necessidade de controle de ingresso dos
haitianos. A interpretacao de "invasao", porem, nao e unanime.
Os sentidos dessa imigracao e da presenca haitiana no pais sao
disputados por diferentes atores, impulsionando o questionamento da
politica migratoria e a necessidade de sua atualizacao.
As disputas de sentido em torno da imigracao haitiana instauradas
na midia brasileira no periodo analisado colaboram para reafirmar que os
espacos midiaticos sao lugares de construcao e proposicao de modos de
vivenciar a alteridade representada pelos imigrantes. Nesse sentido, sao
tambem instancias de debate e formulacao de politicas migratorias
envolvendo a cidadania das migracoes internacionais. As narrativas e
enquadramentos sobre a imigracao haitiana aqui analisados evidenciam que
a crescente presenca da diversidade cultural dos imigrantes no Brasil, a
partir de 2008, tem mobilizado, nas midias, embates envolvendo sociedade
civil, governos, academicos, ativistas dos direitos humanos e as
proprias organizacoes midiaticas envolvendo diferentes posicionamentos
no marco das politicas especificas orientadas a mobilidade humana.
DOI: http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2016.1.21885
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Recebido em: 14/09/2015
Aceito em: 7/10/2015
Denise Cogo
Doutora em Ciencias da Comunicacao na Universidade de Sao Paulo.
Pos-Doutorado na Universidade Autonoma de Barcelona. Pesquisadora
Produtividade 1D do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientifico e Tecnologico). Professora Titular do Programa de
Pos-Graduacao em Comunicacao e Praticas de Consumo da ESPM-SP.
<
[email protected]>
Terezinha Silva
Doutora em Comunicacao Social na Universidade Paris Ouest Nanterre
(Franca) e Universidade Federal de Minhas Gerais (Brasil), atraves de
convenio de cotutela. Professora Colaboradora do Departamento de
Comunicacao Social da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Pesquisadora associada ao GRIS--Grupo de Pesquisa em Imagem e
Sociabilidade (PPGCOM/UFMG).
<
[email protected]>
Endereco dos autores:
Denise Cogo <
[email protected]>
Escola Superior de Propaganda e Marketing
Rua Dr. Alvaro Alvim, 123--Vila Mariana.
CEP: 04018-010
Sao Paulo/SP--Brasil
(11) 5085-4500
Terezinha Silva <
[email protected]>
Universidade Federal de Minas Gerais
Av. Pres. Antonio Carlos, 6627--Pampulha.
CEP: 31270-901
Belo Horizonte/MG--Brasil
(31) 3409-5000
(1) Sao eles:1) A chegada dos imigrantes ao Brasil, ocorrida em
diferentes momentos; 2) A "situacao de emergencia social" no
estado do Acre, decretada em 10 de abril de 2013; 3) O fechamento do
abrigo em Brasileia (Acre) e a chegada de haitianos a Sao Paulo, no
comeco de 2014, e a consequente polemica instaurada entre os governos do
Acre e de Sao Paulo; 4) A politica migratoria brasileira, abordada de
modo central ou transversal em inumeros materiais midiaticos a partir de
meados de 2011 e, sobretudo, apos 2012; 5) A insercao de haitianos no
mercado laboral e denuncias de trabalho escravo; 6) A epidemia mundial
de Ebola, tematizada em meados de 2014 atraves da cobertura de situacoes
cotidianas de suspeita e discriminacao vivenciadas por haitianos em
cidades brasileiras;7) A insercao de haitianos no cotidiano da sociedade
brasileira (cursos, aprendizado da lingua portuguesa, esporte e cultura
etc.).
(2) Antiga colonia francesa e primeira Republica negra do mundo, o
Haiti esta localizado na America Central e possui uma populacao de mais
de 10 milhoes de habitantes. A exportacao de acucar, cafe e cacau
permitiu que, durante o seculo XVIII, a regiao fosse a mais prospera
colonia francesa da America. Foi, ainda, o 1 pais do mundo a abolir a
escravidao, apos uma revolta de escravos em 1793, e o 2 pais das
Americas a se tornar independente, em 1804.
(3) Dados apresentados na mesa "Haiti Aqui", promovida
pela ONG Viva Rio em 21 de maio de 2015, na Universidade Zumbi dos
Palmares, em Sao Paulo, como atividade, Circuito Cultural Haiti Aqui de
Historia e Arte.
(4) Pessoas ou grupos que cobram para introduzir, de modo
"ilegal", migrantes nas fronteiras entre paises.
(5) Os textos midiaticos consultados e citados do ano de 2011 e
parte das de 2012 foram acessadas atraves do Clipping da Radiobras, para
usuarios com login e senha. Tambem estao disponiveis nos portais das
midias citadas.
(6) Os tratados internacionais, assim como a legislacao brasileira,
consideram refugiados apenas aqueles que sao vitimas de perseguicao em
seu pais (por motivos politicos, religiosos, etnicos). Dai a criacao,
pelo governo brasileiro, da modalidade de visto humanitario para atender
a imigracao haitiana, o que, em certo sentido, e indicativo da propria
inadequacao das politicas migratorias brasileiras que vai pautar o
debate na midia.
(7) Seriam 1.500 haitianos em 2011, ingressando via Tabatinga/AM,
segundo dados atribuidos a Policia Federal (Camargos, 2011).
(8) Pela perspectiva da "cidadania universal", defendido
por ativistas das migracoes, nenhum migrante seria considerado
"ilegal', "irregular" ou "clandestino"
fora de seu pais de origem e nao enfrentaria restricoes juridicas ao
acesso a documentacao, trabalho, saude etc.
(9) Estimativa da Prefeitura de Sao Paulo (Estarque, 2014).
(10) Em substituicao ao Estatuto do Estrangeiro em vigor desde a
epoca ditadura. Propostas de nova lei ja estao em discussao no ambito do
governo federal, do Congresso Nacional e do Senado.
(11) Nucleo de pesquisas e debates sobre as migracoes no Brasil e
no mundo, existente desde 2000 e sediado na UFRJ.
(12) A carta, nao publicada pelo Globo, esta acessivel, dentre
outros, no site do Observatorio da Imprensa. Ver: Povoas Neto (2014).