Literatura e cultura: interfaces criticas.
Correa Silva, Marisa
RAVETTI, Graciela; FANTINI, Marli. Olhares criticos: estudos de
literatura e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2009. 452 p. ISBN:
978-85-7041-721-3.
A proposta do livro e ser "uma generosa porta de entrada no
espaco literario da modernidade", voltado para os docentes,
estudantes de graduacao e de posgraduacao em Letras, bem como de
Historia, Antropologia, Educacao e outras areas afins.
Certamente o volume cumpre a promessa de cobrir um leque tematico
bastante amplo e relevante: da expressao em lingua portuguesa a
francofona e alema, passando por Africa, America Latina etc.; do teatro
moderno a permanencia dos elementos epicos; da poesia a prosa e a
leitura, bem como dialogos intertextuais e inter-generos, os textos
apresentados vao pontuando referencias que giram sobre o grande eixo do
livro, criando um resultado que pode ser proveitosamente comparado a uma
nuvem de mariposas em torno de uma lampada potente.
Para desenvolver essa analogia, e preciso pensar nas enormes
dificuldades inerentes a organizacao de um livro com trinta e dois
capitulos, cada um de um autor diferente, estruturado sobre uma proposta
ampla. Alem das questoes editoriais e burocraticas, e preciso que os
textos nao tenham abismos teoricos, qualitativos e estilisticos entre
si, a fim de construirem uma unidade. E, sendo o objeto de estudo algo
fluido, inesgotavel e polemico como a literatura e suas questoes afins,
sempre havera ausencias no livro. Ausencias que serao sentidas
inevitavelmente: os "pontos em branco" da nuvem.
A "nuvem da mariposas" atesta, portanto, em primeiro
lugar, o sucesso em apresentar ao seu leitor uma massa de contornos
fluidos, mas apreensiveis: uma visao academica, com seus contributos e
possiveis limitacoes, cujas referencias constantes sao Benjamin,
Candido, Foucault, Bosi, Paz, Adorno, Bhabha, Piglia, Santiago, Sousa
Santos, Barthes, Deleuze, Ricoeur, Said e Agamben. Da influencia
inegavel da Escola de Frankfurt no pensamento brasileiro (nenhum
filosofo desse grupo surge no artigo sobre a literatura alema dos anos
90), pode-se tracar o percurso, que vai da gradual desarticulacao dos
blocos solidos de saber para a afirmacao das alteridades; do papel do
Outro (desde o ex-colono ate o leitor) na construcao dos significados;
da problematizacao do canone e da poderosa e complexa dialetica entre
texto e vida social, com seus entrelugares, suas periferias e
semiperiferias, suas aporias.
Em segundo lugar, embora os textos gravitem em trajetorias
distintas com relacao ao objeto central, quando tomados em conjunto, nao
parecem dispares, como se na mesma nuvem houvesse insetos de tamanhos e
de asas muito distintos. Em seu movimento individual, cada um dos textos
se aproxima de um certo padrao (de tamanho, de estilo, de didatismo) que
garante a coesao do todo, sem que esse fique imobilizado. A leitura dos
capitulos e facil e agradavel, considerando-se que a linguagem academica
sempre implica num certo engessamento do estilo, a bem do rigor
conceitual. Nada que um academico de graduacao nao consiga superar com
certo empenho, e que os pos-graduandos nao terao a menor dificuldade em
apreender.
Em terceiro e ultimo lugar, a metafora da nuvem de insetos e imagem
fidedigna da fascinacao dos autores pelo objeto de seus estudos. Os
trinta e dois capitulos, em suas diferencas, convergem para um olhar
apaixonado, cujo compromisso intelectual nao fica nem um pouco
prejudicado por isso.
Alguns capitulos representam contributos altamente eruditos para
campos que mereceriam uma massa critica mais alentada na academia
brasileira, como "Muhuraida: releitura do canone epico
brasileiro", de Yurgel Pantoja Caldas, ou "A Revue de
Lamerique Latine: preparacao do romance dos anos trinta", de Dilma
Castelo Branco Diniz. Outros sao visoes intertextuais instigantes, como
"No fluxo das aguas: jangadas, margens e travessias", de
Benjamin Abdala Junior, que entretece letra de musica, cinema e
literatura; "Os mitos guaranis sobre canibalismo e sua relacao com
El entenado de Juan Jose Saer", de Graciela Ravetti, harmonizando
antropologia e literatura; ou "Autobiografia como tauromaquia em
Michel Leiris", de Sabrina Sedlmayer, que menciona explicitamente a
derrocada do sujeito cartesiano.
Alguns abordam o entrelugar na internalidade da producao textual,
como "O travestismo da Historia em Juan Carlos Onetti", de
Pablo Rocca, no qual o afiado close reading faz par com a fortuna
critica e com a conclusao apontando para elementos universais na obra de
Onetti; outros enfocam o entrelugar ja na propria condicao de producao
textual, como "Outra voz: narrativas, realtos, testemunhos em
literaturas ibero-afro-americanas", de Marli Fantini; ou ainda o
entrelugar surgindo de uma obra "descentralizadora" e
desabrochando nas influencias do autor estudado, como "Uma longa
influencia: Haroldo de Campos, a tradicao de vanguarda brasileira e a
literatura hispano-americana", de Horacio Costa.
Se cabe algum reparo a organizacao, talvez seja o de que uma
proposta tao ampla certamente implicara num volume grande (e sempre
insuficiente) de texto, tornando a ordenacao dos capitulos
particularmente espinhosa. Entre prosa e poesia, teatro e encenacao,
literaturas de lingua portuguesa, espanhola e outras, e possivel perder
o fio da meada, fazendo com que a leitura se torne fragmentada e
ocasional.
Ainda assim, e um livro que merece ser louvado, pelo bom sucesso a
que conduz uma proposta necessariamente fadada a incompletude; pela
qualidade dos capitulos; e pela relacao--como nao utilizar essa
palavra?--amorosa com o seu amplo e sedutor objeto de estudo.
DOI: 10.4025/actascilangcult.v33i1.l0193
Received on May 19, 2010.
Accepted on June 20, 2010.
Marisa Correa Silva
Universidade Estadual de Maringa, Av. Colombo, 5790, 87020-900,
Maringa, Parana, Brasil. E-mail:
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