Scenography and authorship in Campo Geral/Cenografia e autoria em Campo Geral.
Fossey, Marcela Franco
Introducao
Falar em literatura e sempre uma tarefa complexa. Sua natureza
estetica pode facilmente nos levar a entende-la como algo que tem um
funcionamento absolutamente distinto de outras praticas discursivas
caracteristicas de nossa sociedade. A tradicao romantica muito nos
convenceu de que a obra e resultado de uma mente inspirada, de uma
individualidade criadora. Desta perspectiva, a concepcao de um texto
literario teria inicio com a necessidade de um autor exprimir-se, o que
desencadearia uma serie de acoes subsequentes: concepcao de um conteudo,
escolha de um suporte e de um genero, redacao do texto, busca de uma
instancia de difusao, descoberta de um possivel destinatario e eventual
reconhecimento de sua legitimidade literaria. Neste sentido, o autor
seria um ponto de origem sem comunicacao com o exterior, e sua obra, um
espelho de sua percepcao do mundo e organizacao de conteudos que existem
independentes do processo de escrita.
Possivelmente em decorrencia desta concepcao de autoria, a
literatura nao tem sido um corpus privilegiado pela AD. Esse
distanciamento de corpora tipicamente literarios resulta, em boa medida,
da concepcao de sujeito caracteristica desta teoria: fragmentado,
atravessado pelo inconsciente e pela ideologia, cujo discurso deriva
necessariamente de um ja-dito. Nesse quadro teorico, que desloca o
sujeito de um suposto lugar de origem dos sentidos, lidar com aquilo que
reconhecemos como estilo individual mostra-se um problema: como tornar
compativel a ideia de um criador singular responsavel por uma obra
igualmente singular com a nocao de assujeitamento?
Uma saida para tal impasse e considerar o fato literario como
discurso, desmantelando o carater central dessa origem que seria a
instancia criadora. Uma proposta desta natureza--presente em Maingueneau
(2006)--nao separa a instituicao literaria de suas condicoes de
enunciacao. Como discurso, a literatura e indissociavel dos dispositivos
enunciativos que a tornam possivel e dos espacos onde e produzida,
avaliada e administrada. Levar em consideracao as condicoes de
enunciacao de uma obra implica remete-la a relacao de interdependencia
que ha entre autor, publico e suporte material. Implica, igualmente,
considerar a imbricacao entre uma organizacao social e uma atividade
enunciativa.
Isso quer dizer que para produzir enunciados reconhecidos como
literarios, o escritor deve se constituir como tal. Para tanto, nao
basta deixar-se levar por uma inspiracao arrebatadora; e preciso estar
na ordem do discurso, em que tantos outros atores tem tambem um papel
nao menos importante. Ha, desta maneira, uma rede de aparelhos que
garantem e estabilizam os contratos genericos considerados literarios em
uma sociedade como a nossa, o que evidencia, em boa medida, tanto o
carater institucionalizado da pratica literaria quanto a relacao
indissociavel desta institucionalizacao com as possibilidades
enunciativas.
Maingueneau (2006) propoe ainda mais dois planos dos quais toda
obra participa: o espaco literario e tambem um 'campo
discursivo', isto e, um conjunto de posicionamentos esteticos que
se encontram, mais ou menos explicitamente, em relacao de concorrencia e
que se delimitam mutuamente. Cada posicionamento constitui uma
identidade que deriva de certas praticas, que envolvem tanto
caracteristicas dos textos propriamente ditos (pressupostos esteticos,
generos e temas privilegiados, uso especifico do idioma) como um modo de
os autores estarem no mundo. Falamos, por exemplo, em escolas e
movimentos literarios: o modernismo remete a um conjunto de
praticas--esteticas e sociais--bastante distintas do romantismo. A nocao
de campo implica, ainda, a existencia de regras que o organiza e o
caracteriza as quais seus membros obedecem de maneira mais ou menos
inconsciente e esta profundamente associada a funcao social atribuida a
um conjunto de discursos, conforme proposta de Bourdieu (1983).
Por fim, a pratica literaria envolve, tambem, um arquivo. Usado,
nesse contexto, com um significado proximo de posicionamento discursivo,
a nocao de arquivo designa,
[...] a memoria interna da literatura, memoria que, para alem do
intertexto no sentido estrito, isto e, outras obras, presentes em alguma
biblioteca imaginaria, inclui tambem, [...] lendas (MAINGUENEAU, 2006,
p. 91).
Esses tres planos deslocam a atividade literaria de um suposto
lugar 'alem' ou 'aquem' das relacoes sociais,
realocando-a onde as obras apenas podem ter sentido em sua relacao
(inescapavel) com o interdiscurso. Sao, deste modo, nos numa rede
interdiscursiva e estao necessariamente atreladas a praticas sociais.
Tendo em vista esta proposta de abordagem do fato literario, que
considera impossivel a dissolucao do vinculo que ha entre o intra e
extradiscursivo, apresento, neste trabalho, duas questoes que me
parecem, em um primeiro momento, especialmente relevantes e, em boa
medida, problematicas. Para tanto, proponho uma analise da novela Campo
Geral, de Guimaraes Rosa, chamando a atencao para aspectos
caracteristicos desta obra roseana.
Uma cena de enunciacao
A primeira dessas questoes esta relacionada a aspectos que compoem
a materialidade textual desta novela--e que sao constitutivos de sua
literariedade. Nesse sentido, o genero e os elementos que compoem a
materialidade linguistica do texto nao sao um 'involucro
contingente' de um conteudo preexistente, mas essenciais para os
efeitos de sentido que emergem da obra. Maingueneau (2004) propoe que os
textos possuem, entre outras coisas, uma classificacao pragmatica (sao
religiosos, politicos, literarios, cientificos ...) e tambem uma
classificacao generica (sao um sermao, uma reportagem, uma novela, um
oficio ...), que ele chama, respectivamente, de cena englobante e cena
generica. Desta perspectiva, para cada texto, ha um quadro cenico que
sustenta, em boa medida, os processos de significacao que dele derivam,
pois nao lemos ciencia do mesmo modo como lemos ficcao, nem lemos uma
bula como lemos um poema, nem uma publicidade como uma ata, e assim por
diante.
Ha uma relacao de restricao entre cena englobante e cena generica.
Nem todos os tipos de discurso podem se materializar em todos os
generos: o discurso cientifico, por exemplo, nunca e veiculado na forma
de um poema ou de uma novela. Esses sao generos tipicamente literarios.
Espera-se que as 'descobertas' sejam comunicadas na forma de
um paper que seja publicado em uma revista especializada, ou de um
abstract nos anais de um congresso, ou de uma palestra em um encontro de
especialistas ...
Mas alem desse quadro cenico, os textos sao constituidos de
elementos dos quais deriva uma cenografia: lexico, estruturas sintaticas
tipicas, temas, imagens associadas, ethos. Com esses elementos e que o
leitor se depara primeiramente. No caso de generos tipicamente
artisticos, a originalidade e maleabilidade da cenografia e um traco
bastante relevante. De fato, ha muitas maneiras de contar uma historia:
na forma de um diario escrito por uma menina 'cacadora' de
fadas (como em O livro de fadas prensadas de Lady Cottington) ou na
forma de lembrancas de infancia de um menino que vive no sertao mineiro
(como em Campo Geral).
Embora narrada em terceira pessoa, Campo Geral e uma historia
filtrada unicamente pelo ponto de vista de Miguilim, um menino de oito
anos que vive com sua familia--pais, irmaos, um tio e agregados num
remoto lugarejo do sertao, o Mutum, 'lugar bonito, entre morro e
morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer
parte'. E atraves do seu olhar que temos acesso ao mundo duro dos
adultos, sempre cercado de traicoes, violencias e silencios. Miguilim e
um menino inteligente e sensivel, que insere o leitor em um universo
triste e melancolico, ainda que permeado pelas fantasias de uma crianca.
Esse universo e construido ao longo de toda a narrativa e deriva de
uma cenografia que se constitui por meio de varios elementos presentes
no fio do discurso. Essa cenografia institui uma topografia--um espaco,
o Mutum, lugar distante, encravado no sertao mineiro roseano e tambem a
intimidade de uma familia isolada no sertao--e, igualmente, uma
cronografia--um tempo, o da infancia, ou das descobertas e da
'aproximacao da vida adulta' ou 'do afastamento da
infancia'.
Mas, alem disso, se trata de um espaco e de um tempo atravessado
constantemente por um lirismo agudo, que emerge do uso que Guimaraes
Rosa faz da lingua. Sao deslocamentos de sintaxe, rimas, aliteracoes, um
tipo de vocabulario absolutamente peculiar (repleto de neologismos, de
derivacoes nao previstas, de arcaismos) que, em seu conjunto, e tanto
condicao quanto efeito da obra. Isto e, deste uso da lingua deriva uma
cenografia que constitui o texto, que, por sua vez, constitui essa
cenografia, em movimento circular e interdependente.
Vejamos um trecho dessa novela:
(1) Mas, para o sentir de Miguilim, mais primeiro havia a
Pingo-de-Ouro, uma cachorra bondosa e pertencida de ninguem, mas que
gostava mais era dele mesmo. Quando ele se escondia no fundo da horta,
para brincar sozinho, ela aparecia, sem atrapalhar, sem latir, ficava
perto, parece que compreendia. Estava toda sempre magra, doente da
saude, diziam que ia ficando cega. Mas teve 'cachorrinhos'.
Todos morreram, menos um, que era tao lindo. Brincava com a mae, nunca
se tinha visto a Pingo-de-Ouro tao alegre. O 'cachorrinho' era
com-cor com a Pingo: os dois em amarelo e nhalvo,
'chovidinhos'. Ele se esticava, rapava, com as
'patinhas' para adiante, arrancando terra mole preta e jogando
longe, para tras, no pe da roseira, que nem quisesse tirar de dentro do
chao aquele cheiro bom de chuva, de fundo. Depois virava cambalhotas,
rolava de costas, sentava-se para sacudir, seus 'dentinhos'
brilhavam para muitas distancias. Mordia a cara da mae, e Pingo-de-Ouro
se empinava--o filho ficava pendurado no ar. Dai corria,
'boquinha' aberta, revinha, pulava na mae, vinte vezes.
Pingo-de-Ouro abocava um galho, ele corria, para tomar, latia
'bravinho', se ela o mordia forte. 'Alegrinho' e sem
vexames, nao tinha vergonha de nada, quase nunca fechava a boca, ate
ria. Logo entao, passaram pelo Mutum uns tropeiros, dias que demoraram,
porque os burros deles estavam quase todos mancados. Quando tornaram a
seguir, o pai de Miguilim deu para eles a cachorra, que puxaram amarrada
numa corda, o 'cachorrinho' foi choramingando dentro do
balaio. Iam para onde iam. Miguilim chorou de brucos, cumpriu tristeza,
solucou muitas vezes. Alguem disse que aconteciam casos, de cachorros
dados, que levados para longe leguas, e que voltavam sempre em casa.
Entao ele tomou esperanca: a Pingo-de-Ouro ia voltar. Esperou, esperou,
sensato. Ate de noite, pensava fosse ela, quando um cao repuxava
latidos. Quem ia abrir a porta para ela entrar? Devia de estar cansada,
com sede, com fome.--"Essa nao sabe retornar, ela ja estava quase
cega ..." Entao, se ela estava quase cega, porque o pai a tinha
dado para estranhos? Nao iam judiar da Pingo-de-Ouro? Miguilim era tao
pequeno, com poucas semanas se consolava. Mas um dia contaram a ele a
estoria do Menino que achou no mato uma cuca, cuca cuja depois os outros
tomaram dele e mataram. O Menino Triste cantava, chorando:
"Minha Cuca, cade minha Cuca? Minha Cuca, cade minha Cuca?!
Ai, minha Cuca Que o mato me deu! ..."
Ele nem sabia, ninguem sabia o que era uma cuca. Mas, entao, foi
que se lembrou mais de Pingo-de-Ouro: e chorou tanto, que de repente pos
na Pingo-de-Ouro esse nome tambem, de Cuca. E desde entao dela nunca
mais se esqueceu (ROSA, 1977, p. 10-11, grifos nossos).
Esse excerto revela muitos elementos textuais e narrativos que
estao presentes ao longo de toda a novela. Um deles e como o mundo dos
adultos interfere negativamente num cenario infantil que e de pura
ternura. O pai da a cachorra que Miguilim tanto gosta para forasteiros e
esse sera um entre os tantos fatos dolorosos que marcam a infancia da
personagem. Esse confronto entre os dois universos --dos adultos e das
criancas--e um dos temas tratados nesta obra. Muito frequentemente, as
acoes dos adultos da historia--especialmente as do pai sempre
entristecem o mundo repleto de sensibilidade e emocoes das criancas. A
atitude do pai, que possivelmente nem se da conta da relacao afetiva que
ha entre seu filho e Pingo-de-Ouro e menos ainda da debilidade da
cachorra, revela a fragilidade das criancas diante das decisoes dos
adultos. A tristeza que esse excerto desperta resulta exatamente da
contraposicao entre a sensibilidade do mundo infantil e a brutalidade do
mundo dos adultos. A contraposicao entre brutalidade e sensibilidade da
a toada de toda a narrativa, fazendo emergir da obra um 'tom'
profundamente melancolico.
Alem disso, percebemos que, embora a narrativa seja em terceira
pessoa, a descricao da cena e filtrada pelos olhos de Miguilim. A
ternura que envolve toda a descricao da cena da Pingo-de-Ouro brincando
com seu filhote sustenta a ligacao entre o modo de dizer e a
corporalidade da personagem. O uso abundante de diminutivos (em italico
no exemplo) reforca esse efeito e e uma das formas em que e marcada a
expressividade da linguagem infantil, dando um tom singelo a descricao
da cena. De fato, o uso de diminutivos tem um papel crucial na
constituicao desta cenografia. Eles aparecem em muitas passagens do
texto, impregnando a voz do narrador com percepcao infantil de Miguilim:
(2) [...] sem se apear do cavalo abaixava o copo de chifre, na
ponta de uma 'correntinha', e subia um punhado d'agua.
Mas quase sempre eram secos os caminhos, nas chapadas, entao Tio Terez
tinha uma 'cabacinha' [...]; uma 'cabacinha'
entrelacada com cipos, que era tao formosa (ROSA, 1977, p. 6, grifos
nossos).
(3) o pai ralhou mais, e, como no outro dia era de domingo, levou o
bando dos 'irmaozinhos' para pescaria no corrego; e Miguilim
teve de ficar em casa, de castigo (ROSA, 1977, p. 6, grifos nossos).
(4) Chica era tao 'engracadinha', clara,
'mariolinha', muito menor do que Drelina, mas era a que sabia
mais brinquedos, botava todos para rodar de roda, ela cantava tirando
completas cantigas, dancava 'mocinha' (ROSA, 1977, p. 15,
grifos nossos).
(5) O Dito, que era o 'irmaozinho corajosozinho' dele,
ele ia arrenegar? (ROSA, 1977, p. 28, grifos nossos).
(6) Depois, a gente cavacava para tirar minhocas, dar para as
'perdizinhas'. Mas o mico-estrela pegou as tres, matou, foi
uma pena, ele abriu as 'barriguinhas' delas. Miguilim nao
contou ao Dito, por nao entristecer.--"As 'perdizinhas'
estao 'assustadinhas', estao crescendo por demais ... Amanha e
o dia de Natal, Dito!" (ROSA, 1977, p. 74, grifos nossos).
E bastante relevante o fato de uso dos diminutivos cair
radicalmente depois da morte de Dito, irmao mais novo e querido de
Miguilim, em decorrencia do tetano. Essa quase ausencia de diminutivos
subsequente a morte do irmao faz sentir no texto como essa experiencia
tao dura afasta Miguilim de um mundo essencialmente doce e infantil.
Desta forma, esse fato tragico, que foi um divisor de aguas na vida da
personagem, adquire materialidade, no texto, por meio da presenca e
posterior ausencia dos diminutivos.
Consequentemente, o tom da narrativa muda. A melancolia que antes
convivia com a delicadeza e a sensibilidade, e substituida por uma
tristeza dolorida, quase resignada:
(7) Pai encabou uma 'enxada pequena'.--"Amanha,
amanha, este menino vai ajudar, na roca". Nem triste, nem alegre,
la foi Miguilim, de manha, junto com o Pai e Luisaltino (ROSA, 1977, p.
83, grifos nossos).
(8) No Dito, pensava sempre. Mas mesmo quando nao estava pensando
conseguido, dentro dele parava uma tristeza: tristeza calada, completa,
comum das coisas quando as pessoas foram embora (ROSA, 1977, p. 85).
Os dois exemplos acima descrevem, de certa forma, a tristeza que
toma conta do menino. Alem disso, chamo a atencao para o fato de, no
exemplo (7), o pai colocar cabo numa 'enxada pequena', e nao
em uma 'enxadinha'--dado que confirma, de certo modo, a funcao
de demarcacao de um 'antes' e um 'depois' que os
diminutivos exercem no encadeamento narrativo.
Essa pequena analise tem como objetivo mostrar o papel
absolutamente relevante da cenografia desta novela para os sentidos que
ela mobiliza. Estabelecese que essa cenografia de onde vem a fala e
precisamente a cenografia necessaria para enunciar como convem.
Miguilim, o pai, a mae, o Mutum nao seriam o que sao se essa
historia--esse mesmo 'conteudo'--fosse contado de uma outra
forma. Deste modo, essa cenografia nao e um quadro contingente de uma
mensagem que se poderia transmitir de diversas maneiras. Toda a
sensibilidade, a delicadeza, a melancolia, a tristeza dessa obra se
revela por meio do 'como' da enunciacao, e nao por uma
caracterizacao explicita de como eram os personagens e sua relacao com o
lugar, com os animais, com a vegetacao. Por isso, dizemos que a
cenografia nao designa a si mesma, mas se mostra.
Relatos de infancia?
Campo Geral mostra-se especialmente interessante para este trabalho
devido ao fato de muitos criticos a considerarem uma autobiografia.
Desta forma, essa novela revelaria um Guimaraes Rosa crianca, encarnado
na personagem Miguilim. A razao disso seriam os muitos pontos de contato
entre os fatos narrados na novela e a infancia do autor--relacao que e
possivel fazer gracas a entrevistas que deu ao longo de sua vida e aos
livros biograficos escritos por parentes (filha, sobrinho) ou por
pesquisadores.
Deste modo, haveria uma fusao entre o 'enunciador' de
Campo Geral--que narra passagens da vida de Miguilim filtradas pelo
ponto de vista do personagem--e a 'pessoa' Guimaraes Rosa--que
nasceu em Cordisburgo e foi, assim como Miguilim, uma crianca sensivel.
Algumas passagens de Campo Geral sao especialmente tidas como
autobiograficas. O gosto de Miguilim por ficar longe de todos, brincando
com os insetos na horta, seu afeto pelos animais de estimacao com quem
convivia (o episodio de Pingode-Ouro e especialmente representativo
dessa relacao), sua estranheza diante do mundo dos adultos--todas essas
caracteristicas da personagem seriam as 'provas cabais' de
que, de fato, a pessoa Guimaraes Rosa 'fala' em muitas dessas
cenas.
Possivelmente, a mais emblematica dessas semelhancas seja a miopia
que tanto Rosa quanto Miguilim tinham, e que em ambos foi descoberta
tardiamente. A declaracao de Rubem Alves (2012), transcrita abaixo,
exemplifica esta leitura que une em uma mesma figura enunciador e autor:
De tudo que Joao Guimaraes Rosa escreveu acho a estoria do Miguilim
a mais bonita. Miguilim era um menininho que vivia num lugar perdido do
sertao, precisava andar um dia a cavalo pra se chegar no mais proximo.
Mas Miguilim via um mundo embacado e pensava que o mundo era assim. Nao
via o passarinho no galho da arvore e nem os brotos do milho saidos do
chao. Pai de Miguilim, bruto, achava que ele era burro. Desgostava.
Batia. E no coracao de Miguilim o odio crescia. Mas um dia chegou um
doutor montado em cavalo bonito e tratado. Estranhou que Miguilim
fechasse os olhos pra ver melhor. "--Esse nosso rapazinho tem a
vista curta. Espera ai, Miguilim ...". E o senhor tirava os oculos
e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. "--Olha agora! Miguilim
olhou. Nem nao podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e
lindo e diferente, as coisas, as arvores, as caras das pessoas. Via os
graozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as
formiguinhas passeando no chao de uma distancia. E tonteava. Aqui, ali,
meu Deus, tanta coisa, tudo ...". Leiam e comparem, e vejam se o
Miguilim nao e o Joao. Os dois eram miopes sem saber. O espanto do
Miguilim deve ter sido o espanto do Joao quando pos os oculos pela
primeira vez. E os dois brincavam com os mesmos brinquedos, ate os
boizinhos de sabugo, brancos, vermelhos e pretos, esses pretejados no
fogo do fogao de lenha ... Lendo o Miguilim, aprendo sobre o Joao
(ALVES, 2012).
Neste ponto, proponho a segunda questao que um material como esse
suscita: qual o estatuto do enunciador desta obra? Ou como aliar um
lugar externo a um lugar interno a obra?
Se respondermos que a voz desse narradorMiguilim e, em ultima
instancia, Rosa nos contando sobre os sentimentos que permearam sua
infancia, estaremos inevitavelmente cometendo um grave reducionismo. A
sensibilidade e a melancolia, que caracterizam o tom deste texto,
derivam do modo como ele e escrito, isto e, do modo como Rosa usa os
recursos que a lingua disponibiliza. Os fatos narrados sao narrados de
maneira tal que uma voz--singela, sensivel e triste--se faz ouvir no
texto. Esta cena de enunciacao nao e a projecao de uma situacao
historica 'real', representada na obra de uma maneira mais ou
menos obliqua.
O conceito de 'paratopia' (MAINGUENEAU, 2006) ajuda-nos
trabalhar, em termos teoricos, com este lugar que emerge das obras, que
pode remeter a um tempo e a um mundo reais, mas que, simultanea e
inevitavelmente, esta estreitamente conectado tanto a cenografia
instituida pela sua enunciacao, quanto ao percurso do autor na cena
literaria. Maingueneau propoe que a existencia social da literatura se
institui em um lugar fronteirico: esta alem vida mundana, mas e esta
realidade comum, cotidiana que alimenta a literatura. A criacao
literaria, segundo tal proposta, escapa de toda topica social,
alimenta-se de lugares, grupos e comportamento que, em um mesmo
movimento, estao e nao estao no mundo. Trata-se de uma entidade hibrida,
que fala do mundo, mas de um mundo transformado atraves de um motor
paratopico, que afasta da vida ordinaria tudo o que diz respeito ao
mundo literario (os lugares retratados, as personagens, os autores). E
por meio da paratopia que a literatura representa a vida social.
O estatuto paratopico da literatura tem um enlacamento fundamental
com a cenografia e com a obra como um todo; a paratopia de seu autor, de
seus personagens e dos lugares retratados e, ao mesmo tempo, condicao e
efeito da obra. A literatura e paratopica, mas ela tem de encenar sua
paratopia. Em outras palavras, nao ha situacao paratopica exterior a um
processo de criacao e de enunciacao. Nao e origem, causa ou condicao da
obra literaria, mas um processo em que cada elemento e simultaneo
'ao' e indissociavel 'do' outro. A nocao de
paratopia e tomada, a um so tempo, como condicao e produto do processo
criador.
Nesse sentido, identificar Miguilim com Joao, o Mutum com
Cordisburgo e ver em Campo Geral uma biografia disfarcada de novela e
ignorar a especificidade da literatura e sua relacao de nao equivalencia
com o 'mundo real'. Ainda que tenha havido um pequeno Joao
miope e sensivel, ainda que haja um Mutum no sertao de Minas repleto de
buritis, montanhas e aguas, ainda que haja familias que sobrevivem as
intemperies desse lugar longinquo--tudo isso so toma 'corpo
literario' na obra de Joao Guimaraes Rosa. Fala-se em uma
'geografia roseana', tal a indissociabilidade desse lugar com
a obra. O sertao de Guimaraes Rosa e paratopico.
E sua vida, contada em tantas biografias, confirma de maneira
cabal, a paratopia deste autor: autodidata, poliglota, medico, diplomata
e profundamente ligado 'as coisas do espirito', morreu
precocemente, aos 59 anos, tres dias apos tomar posse de sua cadeira na
Academia Brasileira de Letras. Esse dia teria sido adiado por quatro
anos devido ao medo que Guimaraes Rosa sentia da emocao que o momento
lhe causaria. Uma vida e uma morte que, mesmo 'reais', nao sao
parte do mundo topico.
Assumir a nocao de paratopia implica um afastamento de uma
interpretacao literaria que ve uma sobreposicao entre realidade e
ficcao. Por outro lado, nao considerar os pontos de contato entre a vida
da pessoa e a vida da personagem e tambem negar um fato inegavel.
A proposta de complexificacao da instancia autoral, como a proposta
por Maingueneau, que inclui a nocao de paratopia, torna possivel
analisar textos literarios mesclando aquilo que deriva da biografia do
autor, com o que deriva do seu percurso na vida literaria e da
cenografia construida atraves da materialidade linguistica que compoe
sua obra.
Segundo essa proposta, haveria tres instancias que recobrem essa
identidade associada as obras literarias: a 'pessoa' (dotada
de um RG e de uma biografia), o 'escritor' (a figura que
define uma trajetoria dentro da instituicao literaria) e o
'inscritor' (uma subjetividade enunciativa que deriva da cena
de fala e do genero implicados pelo texto). As tres instancias nao sao
resultado de uma sequencia cronologica na qual, em primeiro lugar,
haveria a pessoa, seguida pelo escritor e, por fim, pelo inscritor. Na
verdade, essas tres instancias se recobrem mutuamente, sendo que nenhuma
delas e o fundamento das outras:
Pensa-se aqui numa estrutura de no borromeu; os tres aneis deste se
entrelacam de modo que, se se rompe um dos tres, os dois outros se
separam. E-se sempre tentado a reduzir o no a um de seus aneis: a
pessoa, para a historia literaria, seja ela sociologizante ou
psicologizante; o escritor para as pesquisas sobre as instituicoes
literarias; o inscritor para os adeptos da obra ou do texto em
detrimento de tudo mais. Mas nao se pode isolar ou reduzir nenhuma
dessas instancias as outras; sua separacao e a condicao do
desencadeamento do processo de criacao. Atraves do inscritor, e tambem a
pessoa e o escritor que enunciam; atraves da pessoa, e tambem o escritor
e o inscritor que vivem; atraves do escritor, e tambem a pessoa e o
inscritor que tracam uma trajetoria no espaco literario. Se desfizermos
sua juncao, cada anel revela ser aquilo por meio do qual os outros se
sustinham: como viver se nao se vive da maneira que convem para ser um
dado escritor que vai ser o inscritor de uma dada obra? Como desenvolver
estrategias no espaco literario se nao se vive de modo a ser o inscritor
de uma obra? Como ser o inscritor de uma obra se nao se enuncia atraves
de um certo posicionamento no campo literario e um certo modo de
presenca/ausencia na sociedade? (MAINGUENEAU, 2006, p. 137).
Consideracoes finais
Uma proposta como esta permite lidar com os processos de
subjetivacao de um texto sem retornar aquela subjetividade que tanto a
AD recusou--e sem, igualmente, considerar os sujeitos apenas porta-vozes
de discursos ja ditos anteriormente. Pensar no fato literario nos termos
propostos por Maingueneau permite tambem que seja contornada a cisao
fundadora dos estudos literarios entre texto e contexto. No entanto,
explicitar como se constroem as relacoes entre cenografia e vida real, e
como elas tambem resultam, de certo modo, de o autor estar no mundo nao
e uma tarefa simples. Uma proposta teorica como a apresentada acima
oferece ao analista um dispositivo teorico que indica, enfim, os
caminhos para unirmos esses dois mundos inegavelmente interdependentes:
aquele instituido pela obra e aquele que faz desse mundo um mundo em que
o fato literario e possivel.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v34i2.16177
Referencias
ALVES, R. Quarto de badulaques (XXXII). Disponivel em:
<http://www.rubemalves.com.br/quartodebadulaques XXXII.htm>.
Acesso em: 25 fev. 2012.
BOURDIEU, P. Algumas propriedades dos campos. In: BOURDIEU, P.
(Ed.). Questoes de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p.
89-94.
MAINGUENEAU, D. Analise de textos de comunicacao. Traducao Cecilia
P. de Souza-e-Silva e Decio Rocha. Sao Paulo: Cortez, 2004.
MAINGUENEAU, D. Discurso literario. Traducao Adail Sobral. Sao
Paulo: Contexto, 2006.
ROSA, G. Campo Geral. In: ROSA, G. (Ed.). Manuelzao e Miguilim. Rio
de Janeiro: Jose Olympio, 1977. p. 5-103.
Received on February 28, 2012.
Accepted on July 17, 2012.
Marcela Franco Fossey
Fundacao para o Vestibular, Universidade Estadual Paulista
"Julio de Mesquita Filho", Rua Dona Germaine Burchard, 515,
05002-062, Sao Paulo, Sao Paulo, Brasil. E-mail:
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