The paradigm of description in ethnographic translation: the translator Levi-Strauss in Tristes Tropiques/O paradigma da descricao na traducao etnografica: Levi-Strauss tradutor em Tristes Tropiques.
Ferreira, Alice Maria de Araujo
Si l'on ne peutpercevoirle monde endehors de
l'acteduregard et decrirece que l'onpercoitendehors de la
parole et de l'ecriture, c'estqu'il est impossible de
sortir tantducorps que dulangage (LAPLANTINE, 2010, p. 105).
Introducao
Tristes Tropiques, de Claude Levi-Strauss, publicado em 1955, e um
relato sobre a viagem que o autor/etnografo fez na America, em
particular no Brasil, nos anos 1930. A obra ja foi classificada como
literaria; o proprio Levi-Strauss diz ter comecado pensando nesse genero
mas, que 'por falta de imaginacao', nao concluiu tal obra e
que dela restam algumas passagens como le coucher de soleil (capitulo
VII). Com uma poetica livre que nao obedece a austeridade dos trabalhos
cientificos, Levi-Strauss instaura uma reflexao que criara uma ruptura
decisiva nos estudos etnograficos e nas ciencias humanas em geral: a
ruptura do olhar. Tristes Tropiques apresenta uma reflexao
epistemologica sobre a delicada questao da observacao. Seu objeto nao e
propriamente a cultura dos indios no Brasil, mas o proprio Levi-Strauss
como sujeito do olhar. Como apreender um objeto que muda a medida que o
olhamos? O que faz o olhar ao objeto no momento em que olha, observa,
analisa, descreve, enfim, traduz? Nesse ambito, a traducao, como
olhar/escrita apresenta-se como questao fundamental. Trata-se de
entender o que ela faz ao discurso do outro quando o traduz.
O objeto deste trabalho e a traducao etnografica, traducao enquanto
escrita, mas tambem traducao interlingual, ja que em Tristes Tropiques,
Levi-Strauss traduz alguns trechos do portugues brasileiro para o
frances. Essas traducoes aparecem no texto como interrupcoes da
narrativa, entre virgulas logo apos o portugues ou ainda antecedidas de
c'est-a-dire [quer dizer].
Os estudos da traducao e a etnografia tem relacoes importantes que
discutimos no trabalho a partir dos sujeitos pesquisadores (etnografo e
tradutor), ambos interpretes do discurso do outro. Esses sujeitos operam
processos de traducoes: traducao do visivel em dizivel, proprio da
descricao etnografica (LA PLANTINE, 2005), e traducao de uma
lingua-cultura para outra, onde acontecem encontros de diferencas e nao
substituicao.
Tambem discutimos a traducao etnografica a partir do paradigma da
descricao enquanto ruptura do olhar, como escrita da diferenca e como
traducao do olhar em linguagem (discurso).
A traducao-descricao etnografica apareceem Tristes Tropiques com
diversas estrategias e analisamos, a partir de exemplos extraidos do
livro, quatro delas: a definicao, a explicacao, a hiperonimia e a
traducao literal. Todas elas se configuram como descricao, todas
traduzem o encontro com a diferenca.
Tradutor e etnografo: sujeitos da descricao-traducao do outro.
A analogia entre o sujeito da etnografia e do tradutor se deve
sobretudo ao fato que ambos se apresentam como interpretes culturais e
escritores. Por um lado, a perspectiva etnografica nos convida a pensar
a traducao enquanto processo que poe em jogo intermedarios que operam
redes de diferencas. E de outro, a etnografia nao pode prescindir da
traducao ja que faz parte de suas questoes de metodo.
A traducao nao e aqui analisada como reflexo das normas de uma
sociedade (estudos sociais da traducao) e/ou da subjetividade de um
tradutor (estudos literarios da traducao), mas como a expressao das
relacoes que se tecem entre os intermediarios (estudo antropologico e
etnografico da traducao). Nosso interesse consiste em responder a
pergunta: que tipo de encontro se manifesta no processo de traducao?
Essa questao nos leva a discutir a concepcao de traducao a partir das
nocoes de dialetica e de mesticagem e, abrir espaco, nos estudos da
traducao, para a nocao de descricao.
Falar de traducao etnografica como uma nocao ja corriqueira nos
estudos da traducao e esquecer que o conceito nunca se deixa definir ou
apreender e que suas definicoes devem ser re-pensadas sempre. Nao vamos
aqui elencar todas as acepcoes ja encontradas nos diversos artigos que
tratam da questao. Uma nos interessou em particular por ser
contemporanea da escrita de Tristes Tropiques: Malinowski (1974, p. 73)
propos um conceito de traducao etnografica que caracteriza como
'sucessiva'. Segundo ele, teriamos primeiro uma traducao
literal seguida de uma traducao livre e acompanhada de comentarios
etnograficos. A traducao etnografica, portanto, nao e uma traducao
'substituicao' e/ou 'equivalente', ela esta presente
ao lado da pratica discursiva do outro a ser descrito.
Como pratica de escrita e de pesquisa, a etnografia supoe a
traducao interlingual como condicao quase que sine qua non, ja que, na
maioria das vezes, o etnografo trabalha com populacoes que nao falam a
mesma lingua que ele. No entanto, a traducao nao parece ser um elemento
problematizado nos trabalhos de etnografia. O proprio Levi-Strauss nao
faz quase nenhuma mencao ao processo de traducao em Tristes Tropiques,
nem em Mythologiques (1). Na maioria das vezes a traducao e vista como
uma questao de metodo, de tecnica para trabalho de campo, como a
entrevista, por exemplo. Em Tristes Tropiques, Levi-Strauss faz mencao a
traducao em algumas notas, como na nota de rodape da pagina 277:
"Les specialistes de la langue bororo contesteraient ou
preciseraient utilement certaines de ces traductions; je m'en tiens
ici aux informations indigenes" (2). Esta nota vem depois de uma
enumeracao de nomes de passaros, arvores, e elementos da natureza, todos
seguidos das suas traducoes em frances. Quando a questao da traducao
aparece, e enquanto interrogacao sobre o papel especifico da lingua como
objeto de estudo e sobre seu proprio discurso/linguagem enquanto veiculo
de saber/conhecimento. O que Berman (1984) denomina de etre-en-langue
[estar-em-lingua].
A questao da traducao aparece, muitas vezes nos discursos
etnograficos e antropologicos, como uma metaproblematizacao da lingua e
cultura.
Da mesma maneira que a etnografia comecou a incorporar no seu
discurso teorico a discussao sobre a traducao nas suas questoes de
metodos, alguns teoricos da traducao discutem hoje questoes ligadas a
etnografia e a antropologia como a escrita da diferenca e a da
alteridade; pensamos em particular em Laplantine e Nouss (2001) com a
nocao de mesticagem; em Meschonnic (1982, 1999) e a critica do ritmo
como subjetivacao da escrita, em Berman (1984, 2007) e a etica da
traducao.
Uma questao levantada em Tristes Tropiques que nos interessa
particularmente e a do sujeito da escrita etnografica. Levi-Strauss
instaura uma reflexao que criou uma ruptura decisiva nos estudos
etnograficos: a ruptura do olhar. Seu objeto de inquietacao e o proprio
Levi-Strauss como sujeito do olhar. Trata-se de compreender o que faz o
olhar, o pensamento ao objeto no momento em que olha, observa, descreve,
enfim, traduz. Como apreender um objeto que muda a medida em que o
olhamos? Da mesma forma para os estudos da traducao trata-se de entender
o que o tradutor faz ao discurso do outro quando o traduz ja que sua
presenca enquanto sujeito social e historico esta inscrita no seu fazer
tradutorio.
As questoes antropologicas e etnograficas da linguagem nos levaram,
desde final do seculo XIX, a ver como o pensamento, a cultura, a
formacao cultural encarnam-se na linguagem e na lingua, que a traducao
do mundo do outro exige novas/outras estrategias de escritas e que a
etnografia do outro nao pode ignorar a subjetivacao do discurso nem sua
historicidade. Lembramos aqui o alerta de Jorge Luis Borges (1982),
quando diz que o retrato do outro corre o risco de se transformar em um
autorretrato.
A traducao nesta perspectiva nao e uma conversao do outro no mesmo,
processo que Berman denomina de etnocentrismo e que chamamos de traducao
narscissica. Trata-se de entender a traducao, nao mais como transporte,
mas como relacao, encontro com o outro. O traduzir e uma relacao que
mantemos com outrem, o outro discurso, e se caracteriza por isso como
dialogo. E nesse periodo historico que caminha para um pensamento unico
(a globalizacao, ou 'globalitarismo' para retomar o termo de
Milton Santos, (2000)), o encontro e fundamental para a escrita da
diferenca. As prosas do mundo tem cores, melodias, imagens diferentes e
a traducao nao deve apagar a diferenca, mas forcar nossa lingua a falar
com outras cores, outros ritmos. Cabe relembrar a frase de Levi-Strauss,
em Race et Histoire, que ressalta a importancia do encontro:
"L'exclusive fatalite, l'unique tare qui puissent
affliger un groupe humain et l'empecher de realiser pleinement sa
nature, c'est d'etre seul" (LEVI-STRAUSS, 1952, p. 415)
(3).
Pensar a traducao como pratica de mesticagem (BERMAN, 1984;
LAPLANTINE; NOUSS, 2001), e pensa-la a partir de uma dialetica e
conceber o processo numa perspectiva dialogica: "L'essence de
latraduction est d'etre ouverture, dialogue, metissage,
decentrement. Elle est mise en rapport, ou ele n'est rien"
(BERMAN, 1984, p. 16) (4).
Trata-se tambem de re-situar o processo tradutorio no ambito do
social e das relacoes historicas e nao ve-lo apenas na perspectiva do
intimo (5), de maneira a ve-lo tambem como ato de pesquisa e/ou de
producao discursiva. Deslocamos o objeto da traducao dos produtos (os
textos) para os processos. Nesta perspectiva, o dialogismo e a traducao
como encontro ganham novo sentido.
Como falamos acima, a etnografia, enquanto escrita da diferenca,
abre espaco nas pesquisas em traducao para o paradigma da descricao.
Cabe, aos estudos da traducao, discutir a traducao etnografica no ambito
da descricao e compreender os procedimentos envolvidos nesse processo.
Com efeito, a recusa e/ou impossibilidade da traducao substituicao e
equivalencia, proprias do discurso etnografico, leva o
etnografo-tradutor a propor traducoes parafrases de ordem da descricao.
A descricao-traducao etnografica
Se a descricao e considerada o 'B.A.BA' da etnografia,
como diz Laplantine (2010), ou seja, uma questao fundamental e
corriqueira, ela ainda e pouco ou quase nunca pensada nos estudos da
traducao. Tanto em etnografia quanto em traducao, a questao da descricao
e ainda, muitas vezes, associada ao conceito de representacao enquanto
exercicio de transcricao e/ou decodificacao dentro de uma tendencia
objetivista de discurso. Essa concepcao e tributaria de um pensamento
binario em que se deve escolher entre os termos postos em relacao
disjuntiva e, portanto, excludentes: selvagem ou civilizado; conhecido
ou desconhecido; intraduzivel ou traduzivel; oriente ou ocidente;
sujeito ou objeto. Esse pensamento binario impossibilita apreender o
entre-lugares, a oscilacao, a presenca-ausencia, a indeterminacao do
sentido. Considerar a tensao/relacao entre os dois termos e justamente
afirmar que a realidade social que o etnografotradutor quer apreender
esta fora dele e nao nele, mas que ela nao tem nenhum sentido
independentemente dele, ou como diz Laplantine (2010, p. 102): "Que
c'estl'objetqui est percu, mais lesujetquipercoit [...]"
(6) ou ainda, como mostrou Levi-Strauss (1955, p. 47, grifo do autor),
que o objeto e da mesma natureza que o sujeito: "Ma pensee est
elle-meme un objet. Etant 'de ce monde', elle participe de la
meme nature que lui" (7).
Para Laplantine (2005), a descricao consiste em uma
'transformacao do olhar em linguagem'. O processo de descricao
exige, para compreende-lo, a interrogacao dos processos que vao do
visivel ao legivel. A descricao-traducao etnografica e uma escritura do
visivel que poe em jogo a atencao do pesquisador (orientada e flutuante)
e uma preocupacao particular com a linguagem, ja que se trata de ver com
palavras. E a partir, nos diz Laplantine "[...] de ce voir organise
dans un texte que commence a s'elaborer un savoir: Le savoir
caracteristique des anthropologues [...]" (8), e acrescenta:
Si la description en tant qu'activite indistinctement visuelle
et linguistique n'a, a notre connaissance, jamais ete pensee comme
telle par les ethnographes, alors qu'elle est pourtant la categorie
principale de l'ethnographie, c'est qu'elle appelle pour
etre comprise, une pluralite d'approches que
l'anthropologie--qui n'est pas une discipline autosuffisante
mais ouverte--se doit de frequenter: les sciences naturelles, la
peinture, la photographie, la phenomenologie, l'hermeneutique, la
theorie de la traduction, les sciences du langage, mais aussi la
litterature qui n'est rien d'autre que le plein exercice du
langage. (LAPLANTINE, 2005, introduction) (9).
Ruptura do olhar: romper com o pensamento conservador
A traducao-descricao necessita de um distanciamento em relacao a
sociedade de origem para ficar mais perto do que era distante. De fato,
o distanciamento permite a percepcao que o que tinhamos como
'natural' na nossa sociedade, em particular a lingua que
falamos, atraves da qual se forma nosso pensamento, e, na realidade, um
fato cultural. Assim, o estranhamento, o espanto na formacao do
tradutor-etnografo provocado pelas linguas-culturas diferentes, levam a
uma modificacao do olhar que temos sobre nos-mesmo. Fechados em uma
cultura, somos incapazes de descrever-traduzir a cultura do outro e
temos dificuldades em ver a nossa. A experiencia da diferenca nos
permite ver o que nao conseguiriamos imaginar porque nossa atencao tem
dificuldades em se fixar sobre o que nos e habitual e por isso acabamos
achando que e normal. Somos tributarios das convencoes de nossa epoca,
de nossa cultura, da nossa lingua e do nosso meio social que nos
designam o que devemos olhar e como devemos olhar. Assim, para
Laplantine, a descricao e "[...] une activite a lafoislinguistique
et visuelle, une experienceduvoirqui tente d'elaborerun
'savoir' (anthropologie) enfaisant sans cesse retour au
'voir'" (10) (LAPLANTINE, 2005, s/p, grifos do autor).
A traducao etnografica vista a partir do paradigma da descricao
levanta as questoes do olhar, da escrita e da producao textual.
Compreender seu procedimento consiste em compreender as modalidades de
passagem do visivel para o dizivel e dar conta da forma do conhecimento
produzido e da traducao operada.
O problema da escrita e ao mesmo tempo metodologico e
epistemologico ja que o escrever manifesta o processo de construcao do
texto enquanto traducao. Para Laplantine, a escolha metodologica da
descricao leva o pesquisador a passar por uma fase de reflexao sobre a
relacao entre o olhar e a escrita:
La description ethnographique [...] ne consiste pas seulement a
voir, mais a faire voir, c'est-a-dire a ecrire ce que l'on
voit. C'est un processos generalement implicite, tant il parait
aller de soi alors qu'il est d'une complexite inouie.
Procedant a la transformation du regard en langage, il exige, si nous
voulons le comprendre, une interrogation sur les rapports du visible et
audicible ou plus exactement du visible au lisible (LAPLANTINE, 2005,
introduction) (11).
O estudo da descricao-traducao enquanto atividade de um sujeito que
olha/le e escreve o que olha/le deve passar por uma ruptura do olhar
isto e, uma ruptura com as nocoes de identidade e de representacao que
fomentam o pensamento binario e se desenvolvem dentro do conformismo e
do imobilismo. Essas nocoes se opoem ao movimento, ao tempo e a
instabilidade, e ficam aquem de um pensamento critico. A identidade e a
representacao desconfiam da tensao entre o eu e o outro, elas sao
incompativeis com os projetos de traducao e de descricao para os quais
ha algo do outro em mim e algo de mim no outro. Romper com essas nocoes
conduz a romper com o pensamento conservador. Com efeito, considerando a
realidade evidente e ignorando sua relacao com a mobilidade e
historicidade da linguagem, elas se apresentam como fundamentalmente
conservadoras.
A descricao-traducao: do olhar a escrita
O problema levantado pela descricao enquanto traducao etnografica
convoca mais uma vez a questao da subjetividade do pesquisador, do
etnografo-tradutor na experiencia de contato com a diferenca. Trata-se
de se interrogar as implicacoes subjetivas que operam a passagem da
leitura ao discurso, do olhar a escrita. Trata-se, tambem, de analisar o
processo operado no espaco entre a experiencia do olhar, a construcao do
olhar e a producao do discurso desse olhar, de maneira a compreender o
valor produzido no final desse eixo correspondente a traducao-descricao
etnografica.
No que diz respeito a experiencia do olhar e sua construcao, Lacan
(1973) nos lembra que o olhar pertence ao campo do outro (nasco sob o
olhar do outro) e por isso ja se configura como perda porque se inscreve
no simbolico, ou seja, o olhar sobre mim existe antes de mim. Se o
sujeito toma consciencia do olhar na experiencia do espelho e do olhar
da mae, esse olhar se apresenta como inscricao do simbolico na
experiencia do ver. Quando acreditavamos ser omnividentes, na realidade,
so temos pontos de vistas, ou seja, estamos diante da inscricao da falta
no ver: a inscricao no simbolico e/ou no mundo do outro. Alem disso, nos
diz Lacan, "[...] ce que jeregarde n'est jamais ce que je veux
voir [...]" (LACAN, 1973, p. 95) (12).
Essa proposicao apontando para a dialetica do olho e do olhar e
importante para compreensao da experiencia do olhar. O
etnografo-tradutor deve estar atento em nao escrever essa falta entre o
desejo de ver e a experiencia do olhar, para nao escrever seus proprios
desejos do que quer ver:
Dans notre rapport aux choses, tel qu'il est constitue par la
voie de la vision et ordonne dans les figures de la representation,
quelque chose glisse, passe, se transmet, d'etage en etage, pour y
etre toujours a quelque degre elude--c'est ca qui s'appelle le
regard (LACAN, 1973, p. 70) (13).
O trabalho de observacao e de descricaotraducao etnografica e o de
perdas successivas: do ver no olhar e do olhar no discurso que se dirige
ao outro.
A questao da transformacao do olhar em linguagem, ou melhor, do
olhar em discurso, passa pelo questionamento da propria nocao de
'transformacao' ja que a atividade de percepcao dificilmente e
separavel da atividade de nominacao. Ao inscrever-se no simbolico, o
olhar ja esta na linguagem, ele instaura-se na falta e na relacao com o
outro. Para Laplantine, a descricao etnografica corresponde a
"[...] l'organisation textuelle du visible [...]"
(LAPLANTINE, 2005, p. 27) (14) e ainda define essa organizacao sendo
"[...] une activite de construction et de traduction
[...]"(LAPLANTINE, 2005, p. 37) (15).
Essas consideracoes tem varias implicacoes: a cultura e/ou
sociedade do outro e apreendida pelo processo de observacao/descricao; o
campo de estudo nao se configura como realidade objetiva, mas como uma
dupla construcao semiotica que tem um lado subjetivo e um lado coletivo.
A primeira transformacao e subjetiva, ou seja, ela opera a passagem
entre o olho (visao) e o olhar. O etnografo-tradutor organiza o
continuum do campo estudado com um olhar especifico que estabelece
distincoes e diferencas na realidade, isto e, um enquadramento e uma
primeira nominacao da realidade observada. Nessa etapa, o campo ja esta
semiotizado, mas o sentido ainda so e valido para o etnografo-tradutor.
A segunda transformacao consiste em traduzir o olhar em discurso, em um
discurso que tem coercoes especificas ligadas ao tipo de discurso
(cientifico e/ou literario). Para Laplantine (2005), a traducao consiste
em situar o olhar proprio do etnografo-tradutor em uma rede de
intertextualidade. O olhar ganha sentido comparativamente e
diferencialmente em relacao a outros discursos e olhares anteriores ou
contemporaneos. Dessa maneira, o saber constituido no campo e o que
emerge entre os olhares e os discursos que se confrontam, se limitam, se
esclarecem uns aos outros.
O texto traduzido-etnografico se relaciona por metonimia ao real da
observacao. Podemos dizer que o texto etnografico e uma traducao e ao
mesmo tempo uma reducao da realidade observada: como expressar pela
linguagem a experiencia do olhar? Nessa segunda etapa, aparecem (de
novo) as questoes de representacao e representatividade do texto
produzido em relacao ao objeto observado. Como falamos anteriormente, a
nocao de representacao necessita de um questionamento epistemologico. Em
certa medida, o texto do jornal (cadernos do etnografo) quer ser uma
representacao do campo e dar acesso a um saber.
No entanto, ja alertamos que nao se trata de uma concepcao de
representacao fundada na existencia das coisas em si no mundo, que
carregam sentido intrinseco, e que a linguagem, se bem manipulada, seria
capaz de expressar de maneira transparente. Essa concepcao positivista e
conservadora consiste em acreditar que as significacoes procuradas
estejam totalmente contidas nas coisas, no mundo, na sociedade
(LAPLANTINE, 2005, p. 35). A escrita como traducao-descricao do campo
diz respeito a maneira como os significantes da descricao estao
organizados e produzem sentido sobre uma realidade que a priori nao
tinha. Ver a linguagem apenas como suporte e com funcao referencial
(como e o caso na nocao de representacao), e esquecer a estrutura do
signo ja posta por Saussure de que nao ha relacao necessaria entre o
significante e a coisa designada (SAUSSURE, 1971).
Laplantine lembra o objetivo da descricao etnografica:
L'ecriture descriptive, en particulier dans la recherche
ethnographique, ne consiste pas a 'communiquer des
informations' deja detenues par d'autres, a exprimer un
contenu deja la et deja dit, mais a faire advenir ce qui n'a pas
ete dit, bref a faire surgir de l'inedit (LAPLANTINE, 2005, p. 35,
grifo do autor) (16).
A escrita descritiva-tradutiva, tambem escrita da diferenca, deve
criar espanto, estranhamento, novidade tanto em relacao a cultura
descritatraduzida, quanto ter um pensamento e um olhar flutuante em
relacao a nossa.
A traducao-descricao etnografica em Tristes Tropiques
Nesta parte, vamos apresentar alguns exemplos de traducao
etnografica de Levi-Strauss em Tristes Tropiques e analisar/descrever os
processos de traducao enquanto escrita da diferenca e estrategias
descritivas, para entender como as questoes da alteridade se manifestam
nos processos de traducao operados por Levi-Strauss em Tristes tropiques
(1955).
O etnografo-tradutor, no continuum do olhar ate a escrita,
desenvolve uma escrita da diferenca (proprio da etnografia) e uma
concepcao de traducao que refuta o etnocentrismo e a equivalencia, e poe
lado a lado as duas linguas/culturas, estabelecendo um encontro de
diferencas; uma traducao que nao procura transformar o outro em mesmo,
mas cria um reconhecimento do outro enquanto outro. A escrita do outro
deve permitir reconhecer (e nao conhecer, porque o conhecimento torna
objeto) a diferenca e se conhecer pelo espanto do que poderiamos achar
'normal' na nossa lingua/cultura.
Antes de apresentar os diferentes procedimentos de
traducao-descricao etnograficas operadas em Tristes Tropiques por
Levi-Strauss, precisamos explicar rapidamente como foi feito o
levantamento das unidades de traducoes. Todas os sintagmas em portugues
brasileiro presentes na narrativa foram registrados em uma tabela
contendo os seguintes campos:
no. Unidade de Traducao Processo de Contexto textual Pg
traducao traducao
No campo processo de traducao analisamos e descrevemos as
diferentes estrategias do tradutoretnografo que sistematizamos como:
hiperonimia; explicacao; traducao literal e criacao lexical; e
definicao. Notamos que o encontro entre as duas linguas-culturas
acontece por meio de complemento aposto na escrita: entre virgulas,
entre parenteses, precedida de c'est-a-dire [quer dizer], onappelle
[chama-se]; em relacao de comparacao com comme [como], espece de
[especie de]; e ainda, em nota de rodape quando o texto e longo.
A descricao nos textos etnograficos, e por extensao nas traducoes
etnograficas, se manifesta de diferentes formas. Ela pode se configurar
como um sistema de ordenacao e/ou de classificacao. Philippe Hamon diz
que a descricao e:
[...] un systeme de mise en ordre et de mise en classement
semiologique. [...] Avant de classer le monde, d'etre ecriture du
monde, la description classe d'autres systemes de classement, est
reecriture d'autres systemes de classement. Reticulation textuelle,
reticulation du lexique, la description est d'abord reticulation
d'un extra-texte (classifications, discours encyclopediques,
vocabulaires specialises, textes divers du savoir officiel sur le monde,
categories ideologiques) deja reticule et rationalise (HAMON, apud
POUGEOISE, 2001, p. 96) (17).
Podemos dizer que a definicao, a explicacao, a traducao literal e a
hiperonimia sao tipos de descricao que articulam conhecimentos como
meios de escrever sobre o mundo. Para cada traducaodescricao etnografica
podemos encontrar varios procedimentos, ou seja, uma traducao literal
pode ser seguida de uma explicacao, ou de uma definicao etc.
Reencontramos aqui a concepcao de Malinovski (1974) de traducao
etnografica como sucessiva.
Esquematizamos os tipos de traducao-descricao etnografica da
seguinte forma (Figura 1):
[FIGURE 1 OMITTED]
Descricao fechada: definicao
O termo definicao designa a atribuicao de um limite, de um fim
(de-finir), por isso a caracterizamos como descricao fechada. A
definicao designa a producao de uma sequencia em lingua natural de
tracos pertinentes de significacao ou todos os tracos conceituais
pertinentes. Alain Rey (1979), apesar de estabelecer uma distincao entre
definicao e descricao, reconhece que
En fait, bien des definitions de dictionnaires (linguistiques,
distinguant des sens et des usages) et surtout encyclopedies
(distinguant des classes d'objets et desnotions) sont des
descriptions (REY, 1979, p. 42) (18).
Em Tristes Tropiques, encontramos algumas traducoes-descricoes que
se valem de uma escritadefinicao, sobretudo para nomes de objetos. E
interessante notar que mesmo quando a realidade existe na lingua
francesa, ele opta por uma definicao e nao pelo nome da coisa em frances
como e o caso de Pipoca (em frances pop-corn) que ele traduz por uma
definicao, grain de mais eclates en flocons (como veremos nos exemplos).
Alem disso, sendo, na maioria das vezes, traducoes de objetos, classes
de objetos e de nocoes, as definicoes podem ser caracterizadas como
enciclopedicas.
Vejamos alguns exemplos:
11. Peneiras e abanicos:
Les produits en vente conservaient un style plus pur: peneiras,
tamis a farine de manioc de facture typiquement indienne, formes
d'un treillis lache de bambous refendus et cercles de lattes;
abanicos: eventails a feu, aussi herites de la tradition indigene, et
dont l'etude est plaisante; car chaque type represente une solution
ingenieuse pour transformer par le tressage, la structure permeable et
echevelee d'une feuille de palmier en une surface rigide et
continue, propre a deplacer l'air quand elle est violemment agitee
(LEVI-STRAUSS, 1955, p. 122, grifos do autor).
[Os produtos a venda conservavam um estilo mais puro: peneiras,
tamis de farinha de mandioca de feitura tipicamente indigena,
formados de uma rede frouxa de bambu divididos e cercados de ripas;
abanicos, leques para fogo, tambem herdados da tradicao indigenes,
e cujo estudo e agradavel; pois cada tipo representa uma solucao
ingeniosa para transformar pelo entrancamento, a estrutura
permeavel e desgrenhada de uma folha de palmeira numa superficie
rigida e continua, propria para deslocar o ar quando violentamente
agitada.]
Temos aqui uma traducao-definicao de 'peneiras' e de
'abanicos' (no plural no texto). A unidade em portugues e
seguida de uma definicao enciclopedica.
13. Figa:
Un autre objet particulierement attrayant des marches paulistas
etait la figa. On appelle figa, figue, un antique talisman mediterraneen
en forme d'avant-bras termine par un poing ferme, mais dont le bout
du pouce emerge entre les premieres phalanges des doigts du milieu
(LEVI-STRAUSS, 1955, p. 123, grifos do autor).
[Outro objeto particularmente atraente das feiras
paulistas era a figa. Chama-se figa, figa, um antigo
talisma mediterraneo em forma de antebraco
terminado por um punho fechado, mas cujo polegar
emerge entre as primeiras falanges dos dedos do
meio.]
Aqui a unidade 'figa' e precedida de on appelle
[chama-se] seguida de uma traducao literal figue e de uma definicao
enciclopedica.
49. Pipoca:
L'hotesse prepare le cafe, torrifie jusqu'au noir
brillant dans le fond de sucre, et une pipoca, grains de mais eclates en
flocons avec des lardons; on rassemble les chevaux, on les selle et on
part (LEVISTRAUSS, 1955, p. 179, grifo do autor).
[A anfitria prepara o cafe, torrificado ate o preto
brilhante no fundo de acucar, e uma pipoca, graos de
milhos estourados em flocos com bacon; reunimos
os cavalos, selamos e partimos.]
'Pipoca' e seguida da definicao. Importante notar aqui
que Levi-Strauss opta pela definicao e nao pela traducao direta em
frances 'pop-corn'.
Descricao antropolinguistica: traducao literal e neologia
A traducao literal procura ficar o mais perto possivel do recorte
do mundo produzido pela lingua/cultura de partida. Ela se caracteriza
como uma interlingua que causa estranhamento pela irrupcao da lingua
traduzida na lingua que traduz. Tambem se caracteriza como
traducaomesticagem, ja que ela mestica as linguas em presenca. Podemos
dizer que se trata do que denominamos de descricao antropolinguistica,
ou seja, uma traducao da visao de mundo linguisticamente construida.
Ela caracteriza-se como traducao mesticada e mesticante ja que as
duas culturas estao presentes, uma traducao encontro e nao transporte em
que a lingua (a que o etnografo-tradutor usa para a descricao; a lingua
que traduz) e modificada pela lingua traduzida. Nas traducoes de
Levi-Strauss, a traducao literal e, as vezes, seguida de uma explicacao.
Alem disso, por ser literal, Levi-Strauss tambem propoe criacoes
lexicais (neologia).
Apresentamos alguns exemplos de traducao literal:
17. comida quente e comida fria:
Il y avait aussi les croyances et les superstitions dont il etait
interessant de faire la carte: cure de orgelet par l'impression
d'un anneau d'or; repartition de tous les aliments en deux
groupes incompatibles: comida quente, comida fria, nourriture chaude et
nourriture froide (LEVI-STRAUSS, 1955, p. 124, grifos do autor).
[Havia tambem as crencas e as superticoes das quais
era interessante mapear: cura de tercol pela
impressao de um anel de ouro; reparticao de todos
os alimentos em dois grupos incompativeis: 'comida
quente', 'comida fria'].
A descricao aqui e operada pela traducao literal do nome e nao pela
descricao da coisa e/ou do objeto. O que interessa e o classificador de
alimentos.
25. Povoador e plantador de cidade:
D'autres patrimoines ont un caractere laique, quand un
proprietaire decidait de se faire povoador, 'populateur' et
meme plantador de cidade: 'planteur', mais 'de
ville' (LEVI-STRAUSS, 1955, p. 128, grifos do autor).
[Outros patrimonios tem um carater laico, quando
um proprietario decidia se tornar povoador, (-) e ate
plantador de cidade: (-)]
Aqui a descricao-traducao de 'povoador' e 'plantador
de cidade' se da por uma traducao literal que pede uma criacao
neologica em frances, populateur. No caso de 'Plantador de
cidade', temos a traducao literal com a conjuncao mais [mas]
mostrando que e um plantador de algo que nao se esperaria em frances de
ville [de cidade], causando/manifestando o espanto, o estranhamento,
caracteristico da escrita da diferenca.
41. campo limpo e campo sujo:
Les villages se font rares, et plus vastes les espaces qui les
separent: tantot degages, et c'est le campo limpo, la savane
<< propre >>; tantot broussailleux et nommes alors campo
sujo, savane << sale >>, ou encore cerrado et caatinga qui
sont deux especes de maquis (1955, p. 133, grifos do autor).
[Os vilarejos eram raros, e mais vastos os espacos
que os separavam: ora desobstruidos, e e o campo
limpo, o cerrado << limpo >>; ora cobertos de selva e
nomeados entao campo sujo, cerrado << sujo >>, ou ainda
cerrado e caatinga que sao duas especies de savanas].
'Campo limpo' e 'campo sujo' sao traduzidos
literalmente por savane propre e savane sale de maneira a apresentar o
olhar linguisticamente construido do recorte da realidade. E, no
entanto, precedido de uma explicacao da oposicao sugerida/conotada pelos
adjetivos 'limpo/sujo' que sao destacados entre aspas,
manifestando o espanto e o estranhamento, 'tantot degages [...]
tantot broussailleux'.
Descricao classificadora: a hiperonimia
A hiperonimia e uma relacao de significacao entre o significado e o
significante. As relacoes de hiperonimia e hiponimia se organizam em uma
estrutura hierarquizada (relacao de classificacao). Para Maria Aparecida
Barbosa (1998), a hiperonimia e quando a primeira expressao mantem com a
segunda uma relacao de classeelemento. Assim, a hiperonimia/hiponimia e
quando dois ou mais elementos do conjunto significante em relacao de
oposicao disjuntiva, correspondem dois ou mais elementos do conjunto
significado, estes em relacao de oposicao transitiva, co-hiponimos,
todos subordinados a um significado mais extensivo.
A hiperonimia permite a classificacao hierarquica dos elementos
descritos. Levi-Strauss faz uso dela, sobretudo, para nomes de animais e
de elementos naturais (biomas, tipos de vegetacao). Com efeito, quando
esses elementos naturais nao existem na realidade da lingua/cultura que
traduz, para nao estabelecer equivalencia com um elemento natural
'parecido', Levi-Strauss opta por classifica-lo em uma
categoria maior (englobante). Geralmente, a hiperonimia apresenta-se
precedida de c'est-a-dire [quer dizer], de especes de [especie de]
ou ainda entre virgulas.
7. capoeira:
Dans les vallees, la vegetation a repris possession du sol; mais ce
n'est plus la noble architecture de la foret primitive: la
capoeira, c'est-a-dire la foret secondaire, renait comme un fourre
continu d'arbres greles (LEVI-STRAUSS, 1955, p. 102, grifos do
autor).
[Nos vales, a vegetacao retomou posse do solo; mas
nao e mais a nobre arquitetura da floresta primitiva:
a capoeira, quer dizer a floresta secundaria, renasce
como um cerrado continuo de arvores esguias].
Capoeira e traduzida-descrita a partir de seu hiperonimo foret
secondaire precedido de c'est-a-dire [quer dizer]. Existem varios
tipos de florestas secundarias, a 'capoeira' e uma delas, mas
como nao existe esse tipo em frances, Levi-Strauss opta pelo nome
classificador.
157. Maribundo, Piums, Borrachudos e Pais-demel:
Le lieu etait malheureusement infeste des insectes habituels:
guepes, maribundo, moustiques, piums et borrachudos qui sont
d'infimes moucherons suceurs de sang, volant en nuees; il y avait
aussi les pais-demel, peres de miel, c'est-a-dire les abeilles
(LEVISTRAUSS, 1955, p. 315, grifos do autor).
[O lugar era infelizmente infestado dos insetos
habituais: vespas 'maribundo', mosquitos, 'piums' e
'borrachudos' que sao infimos mosquitos sugadores
de sangue, voando em nuvens; havia tambem os
'pais-de-mel', pais de mel, quer dizer as abelhas].
A traducao-descricao de insetos tais como 'maribundo',
'piums' e 'borrachudos' e feita a partir do nome de
tipos de insetos em frances, ou seja, hiperonimos:
'maribundo'--guepe; 'piums'--moustiques;
'borrachudos'--moucherons. Este ultimo nao permitindo
'visualizar' o tipo particular do Brasil (apenas seu tamanho
_infmes) e seguido de um traco caracterizante suceurs de sang. Quanto a
'pais-de-mel', a traducao-descricao hiperonima, abeilles, e
precedida de c'est-a-dire [quer dizer], ele-mesmo precedido de uma
traducao literal pere de miel, de maneira a apresentar a construcao
linguistica operada pelo nome em portugues.
Descricao causal e/ou pragmatica: a explicacao
A explicacao pode, segundo Mario Bunge, ser definida como:
(i) que consiste en responder a cuestiones de porque (aspecto
pragmatico); (ii) que se refiere a formulas, las cuales pueden o no
referir a su vez a hechos y estruturas (aspecto semantico); (iii) que
consiste en una argumentacion logica con proposiciones generales y
particulares (aspecto sintatico) (BUNGE, 2011, p. 462) (19).
Verificamos, nas traducoes de Levi-Strauss, a primeira modalidade,
a de respostas a um 'por que', isto e, pragmatica, sobretudo
quando ele traduz nomes de cidades, como veremos nos exemplos abaixo.
Em uma perspectiva filosofica, a explicacao responde a pergunta da
causa do evento em questao (aqui o nome dado a cidade). O que se quer e
a especificacao do evento que conjugado a alguns fatores causais seja
suficiente para determinar a ocorrencia do evento a ser explicado. Para
Toulmin, explicar uma coisa e/ou um nome significa, muitas vezes,
"[...] mostrar que ela podia ser esperada [...]" (TOULMIN,
1950, apud ABBAGNANO, 1998, p. 426).
Assim, denominamos esse tipo de descricao de explicacao causal e
pragmatica, ja que Levi-Strauss, nessas traducoes, explica o nome em
portugues brasileiro ou a qualidade de uma coisa procurando respondera a
pergunta do porque do nome e traz o fator causal da origem como podemos
ver nos exemplos a seguir:
27. Batatais, Feijao-cru e Arroz-sem-sal:
Car meme dans le cycle de vie si bref qui etait le leur, les
agglomerations trouvaient encore le moyen de changer plusieurs fois de
nom, chacune de ces etapes etant egalement revelatrice de leur devenir.
Au debut, un simple lieu-dit repere par un sobriquet; soit a cause
d'une petite culture au milieu de la brousse: Batatais,
Pommes-de-terre; soit en raison d'une carence de combustible pour
chauffer la gamelle dans un site desole: Feijao-Cru, Haricot-cru; enfin
parce que les provisions manquent en atteignant une etape lointaine, qui
devient: Arroz-sem-sal, Riz-sans-sel (LEVI-STRAUSS, 1955, p. 128, grifos
do autor).
[Pois ate no ciclo de vida tao breve que era o delas,
as aglomeracoes encontravam ainda o meio de
mudar varias vezes de nome, cada uma dessas etapas
sendo igualmente reveladora de seu devir. No
comeco, um simples lugarejo notado por um
apelido; seja por causa de uma pequena cultura no
meio do sertao: Batatais, batata; seja em razao de uma
carencia de combustivel para esquentar a marmita
num sitio desolado: Feijao-Cru, (-); enfim porque as
provisoes faltam ao atingir uma etapa longiqua, que
se torna: Arroz-sem-sal, (-)].
Os nomes das aglomeracoes tais como 'Batatais',
'Feijao-cru' e 'Arroz-sem-sal' sao
descritos-traduzidos com uma traducao literal, Pommes-de-terrre,
Haricot-cru e Riz-sans-sel, o que permite captar a criatividade do nome
e produzir o espanto e o estranhamento proprios, como ja dissemos, da
escrita da diferenca, e sao seguidos de uma anedota explicativa sobre o
porque e/ou a causa desses nomes: soit a cause d'une petite culture
au milieu de la brousse: 'Batatais', Pommes-de-terre; soit en
raison d'une carence de combustible pour chauffer la gamelle dans
un site desole: 'Feijao-Cru', Haricot-cru; enfin parce que les
provisions manquent en atteignant une etape lointaine,
'Arroz-sem-sal', Riz-sans-sel.
90. Diamante pintado:
Le syrien Fozzi s'est parait-il, enrichi en acquerant a bas
prix des diamants impurs qu'il chauffait sur un rechaud Primus
avant de les tremper dans un colorant; ce procede donne au diamant jaune
une teinte superficielle plus agreable et lui vaut le nom de pintado,
diamant peint (LEVI-STRAUSS, 1955, p. 243, grifo do autor).
[O sirio Fozzi enriqueceu, ao que parece,
adquirindo a preco baixo diamantes impuros que ele
esquentava em um rescaldo Primus antes de
mergulha-los em um corante; esse procedimento da
ao diamante amarelo uma cor superficial mais
agradavel e lhe vale o nome de pintado, diamante
pintado].
Diamante pintado e seguido de uma traducao literal diamant peint,
mas precedido de uma explicacao do nome (et lui vaut le nom de [e lhe
vale o nome de]) descrevendo o procedimento empregado para colorir o
diamante impuro. Essas explicacoes dos nomes mostra o quanto cada nome
tem uma motivacao historica (e/ou anedotica).
Consideracoes finais
Levantamos, no total, 251 unidades de traducao em Tristes
Tropiques. Nao trouxemos aqui tudo, claro, mas algumas delas para
exemplificar os tipos de traducao-descricao etnograficas (seja a
definicao,a traducao literal e a neologia, a hiperonimia, a explicacao).
Temos tambem, mas nao foram tratadas neste trabalho, em quantidade menos
significativa (o que nao quer dizer que nao seja interessante para
entendermos os procedimentos de traducao-descricao etnografica) a
comparacao com referencia a lingua/cultura que traduz. Com certeza sera
objeto de um futuro trabalho.
A traducao etnografica vista aqui como processo de descricao nos
termos de Laplantine revela de que maneira as questoes da alteridade e
de escrita da diferenca sao complexas e devem ser analisadas num eixo
delimitado por dois lugares, o do tradutoretnografo e o do outro a ser
traduzido-descrito. Trazendo essa questao para os estudos da traducao,
podemos dizer que entre os dois polos tradicionais nos discursos
teoricos: lingua de partida/lingua de chegada; autor/leitor;
letra/espirito; sentido/forma etc, existe um espaco onde o tradutor
opera o encontro. As traducoes nunca sao totalmente literais ou
totalmente livres. Temos elementos de ambas as abordagens e, por isso,
trata-se de analisar, nesse 'espaco-entre', onde o tradutor
realizara sua escrita. Pois a conjuncao que gera a traducao-descricao
etnografica e a conjuncao 'e' (e nao 'ou'), que como
diz Deleuze, nao e:
[...] ni une reunion, ni une justaposition, mais la naissance
d'un begaiement, le trace d'une ligne brisee qui part toujours
en adjacence, une sorte de ligne de fuite active et creatrice (DELEUZE,
1976, p. 16) (20).
No caso da traducao-descricao etnografica, ela tendera a ficar mais
perto do autor, da origem, da lingua/cultura do outro, mas nunca se
situara nesse ponto, ja que traduzindo, o tradutor ja faz um passo em
direcao ao leitor, a lingua/cultura que traduz. Recusamos assim, a nocao
de entre-lugar onde lugar esta no singular, ja que o espaco sempre
existira entre dois lugares. Se retomarmos o conceito de
'espaco' da geografia, em particular de Milton Santos (1996),
so existe espaco no 'entre'. Nos polos, existem lugares. O
'espaco-entre' se configura como conjunto de possibilidades de
lugares-escrita que so se efetivam pela escrita. Pensando o
'entre-lugares' em traducao, entendemos que os dois lugares se
situam nas respectivas linguas/culturas, e e no 'espaco-entre'
que se da o jogo das tensoes da leitura critica, e onde se efetiva, em
algum lugar desse 'espaco', a escrita tradutoria.
A traducao-descricao etnografica enquanto escrita da diferenca e
uma escrita 'differee' (deslocada), que nao pode se acomodar
com a indiferenca, isto e, de apagamento da diferenca linguistica e
cultural, mas, pelo contrario, deve operar recursos sintaticos e
lexicais da lingua que traduz para acolher o outro. Trata-se de uma
descricao, de um 'fazer ver' pelas palavras. Essa concepcao
deve-se ao fato que a traducao-descricao etnografica nao dissocia o
estudo da cultura (ethnos) da questao da escrita (graphe), mas faz dessa
relacao sua especificidade. A descricao-traducao etnografica e uma
realidade antropologica que se torna linguagem e que se inscreve numa
rede de intertextualidade.
Doi:10.4025/actascilangcult.v36i4.23837
Referencias
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BERMAN, A. L'epreuve de l'etranger. Paris: Gallimard,
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SAUSSURE, F. Cours de linguistique generale. Ed. Charles Bally,
Albert Sechehaye, Albert Riedlinger. Paris: Payot, 1971.
Received on May 8, 2014.
Accepted on September 29, 2014.
(1) Em Mythologiques (LEVI-STRAUSS, 1964, 1966, 1968, 1971), ele
traduz os mitos a partir de versoes intermediarias (inglesas ou
portuguesas) mas nao faz nenhum comentario e/ou problematiza a questao
do deslocamento operado pelo processo de traducao.
(2) "Os especialistas da lingua bororo constestariam ou
precisariam utilmente algumas dessas traducoes; me apoio aqui sobre as
informacoes indigenas" (traducao nossa).
(3) "A exclusiva fatalidade, a unica tara que possam afligir
um grupo humano e o impedir de realizar plenamente sua natureza, e de
estar so".
(4) "A essencia da traducao e de ser abertura, dialogo,
mesticagem, descentramento. Ela e relacao ou nao e nada".
(5) Concepcao influenciada pelas teorias literarias que, mesmo
valorizando a mesticagem, o hibrido, mantem uma visao por vezes
romantica e muito individual/autoral do processo de criacao ou de
traducao, e nos convidam a ver a traducao como um ato de leitura e
escrita.
(6) "Que e o objeto que e percebido, mas o sujeito que
percebe".
(7) "Meu pensamento e ele-mesmo um objeto. Sendo 'desse
mundo', ele participa da mesma natureza que ele" (traducao
nossa).
(8) "desse ver organizado em um texto que comeca a elaborar-se
um saber: o saber caracteristico dos antropologos".
(9) "Se a descricao enquanto atividade indistinctamente visual
e linguistica nunca foi, ate onde saibamos, pensada como tal pelos
etnografos, quanto ela e, no entanto, a categoria principal da
etnografia, e porque demanda, para ser compreendida, uma pluralidade de
abordagens que aantropologia _ que nao euma disciplina autosuficiente
mas aberta_ se deve de frequentar: as ciencias naturais, a pintura, a
fotografia, a fenomenologia, a hermeneutica, a teoria da traducao, as
ciencias da linguagem, mas tambem a literatura que nao e nada mais que o
pleno exercicio da linguagem".
(10) "Uma atividade ao mesmo tempo linguistica e visual, uma
experiencia do ver que tenta elaborar um 'saber'
(antropologia) fazendo sempre um retorno ao 'ver'?".
(11) "A descricao etnografica [...] nao consiste apenas em
ver, mas em fazer ver, quer dizer em escrever o que vemos. E um processo
geralmente implicito, de tanto parecer obvio quando e de uma
complexidade incrivel. Procede a transformacao do olhar em linguagem,
ele exige, se queremos compreende-lo, uma interrogacao sobre as relacoes
do visivel e do dizivel ou mais exatamente, do visivel ao legivel".
(12) "O que olho nunca e o que quero ver".
(13) "Na nossa relacao as coisas, tal como e constituido pela
via da visao e ordenado nas figuras da representacao, algo escorrega,
passa, se transmite, de andar em andar, para ser sempre em algum degrau
eludido _ e isso que se chama de olhar".
(14) "organizacao textual do visivel".
(15) "uma atividade de construcao e de traducao".
(16) "A escritura descritiva, em particular na pesquisa
etnografica, nao consiste em "comunicar informacoes" ja
detidas por outros, em expressar um conteudo ja presente e ja dito, mas
em fazer advir o que nao foi dito, enfim, fazer surgir algo
inedito".
(17) "[...] um sistema de ordenamento e de classificacao
semiologico. [...] Antes de classificar o mundo, a descricao classifica
outros sistemas de classificacao, ela e re-escritura de outros sistemas
de classificacao. Reticulacao textual de um extratexto (classificacao,
discurso enciclopedico, vocabularios especializados, textos diversos do
saber oficial sobre o mundo, categorias ideologicas) ja reticulado e
racionalizado".
(18) "De fato, varias definicoes de dicionarios (linguisticos,
distinguindo sentidos e usos) e sobretudo enciclopedicos (distinguindo
classes de objetos e nocoes) sao descricoes".
(19) "que consiste em responder a questoes de por que (aspecto
pragmatico); (ii) que se refere a formulas, as quais podem ou nao se
referir por sua vez a fatos e estruturas (aspecto semantico); (iii) que
consiste em uma argumentacao logica com proposicoes gerais e
particulares (aspecto sintatico)" (T raducao nossa).
(20) "nem uma reuniao, nem uma justaposicao, mas o nascimento
de um balbucio, o tracado de uma linha despedacada/quebrada que parte
sempre em adjacencia, uma especie de linha de fuga ativa e
criadora".
Alice Maria de Araujo Ferreira
Universidade de Brasilia, Campus Universitario Darcy Ribeiro,
Instituto de Letras-IL ICC sul, 70910-900, Brasilia, Distrito Federal,
Brasil. E-mail:
[email protected]