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文章基本信息

  • 标题:Writing as a crime and absence in La disparition/A escrita como crime e falta em La disparition.
  • 作者:Pereira, Vinicius Carvalho
  • 期刊名称:Acta Scientiarum. Language and Culture (UEM)
  • 印刷版ISSN:1983-4675
  • 出版年度:2016
  • 期号:January
  • 语种:Spanish
  • 出版社:Universidade Estadual de Maringa
  • 摘要:Nada preenche o vazio essencial que a escrita revela.
  • 关键词:Autores franceses;Crime;Crimen;Tecnicas literarias;Violencia

Writing as a crime and absence in La disparition/A escrita como crime e falta em La disparition.


Pereira, Vinicius Carvalho


Introducao

Nada preenche o vazio essencial que a escrita revela.

Ana Hatherly

Desaparecimento de um corpo. Apagamento de um signo. O corpo de um signo e os signos de um corpo se esvaem. Publicado pela primeira vez em 1969, o romance La disparition, de Georges Perec, tornou-se um emblema do grupo Oulipo (1). Ousado, ironico e iconoclasta, o texto e composto a partir de uma das contraintes mais famosas dos jogos oulipianos de escrita: o lipograma, neologismo formado pela juncao das raizes gregas leipo, "abandonar, deixar para tras", e gramma, "letra, escrita". Aparentemente simples, a unica regra do jogo seria a omissao obrigatoria de um grafema predefinido, como seu proprio nome indica, o que obviamente limita os recursos expressionais de que o autor pode se valer no ato da escrita, mas abre uma vasta gama de possibilidades esteticas, como Perec afirma no epilogo do romance (2):

Ainsi naquit, mot a mot, noir sur blanc, surgissant d'un canon d'autant plus ardu qu'il apparait d'abord insignifiant pour qui lit sans savoir la solution, un roman qui, pour biscornu qu'il fut, illico lui parut plutot satisfaisant: D'abord, lui qui n'avait pas pour un carat d'inspiration (il n'y croyait pas, surcroit, a l'inspiration!) il s'y montrait au moins aussi imaginatif qu'un Ponson ou qu'un Paulhan; puis, surtout, il y assouvissait, jusqu'a plus soif, un instinct aussi constant qu'infantin (ou qu'infantil): son gout, son amour, sa passion pour l'accumulation, pour la saturation, pour l'imitation, pour la traduction, pour l'automatisation (Perec, 1969, p. 310) (3).

Como o epilogo do livro, toda a narrativa que o precede e escrita sem a letra E, a mais frequente do idioma frances, tal qual o A seria em nossa lingua. No caso de um romance de mais de 300 paginas, como La disparition, uma restricao formal dessa natureza obriga o autor a uma serie de torneios verbais para dar conta do desafio, como tortura que obriga o corpo do texto a posicoes insustentaveis, ainda que estas possam conduzir a um gozo sadico. Tal interpretacao entre a dor e o prazer e confirmada, no post-scriptum supracitado, por vocabulos como ardu, biscornu e satisfaisant (respectivamente, arduo, bizarro e satisfatorio), atribuidos ao processo de construcao do romance.

Desse modo, em La disparition, a ocultacao do grafema e mais que jogo: e delito de usurpacao e sevicia verbal, uma vez que tanto o protagonista, sequestrado no inicio do relato, quanto a mais comum letra do frances, extraida com corte preciso, sao surrupiados ao romance, que se contorce para falar e gozar em ausencia. No presente artigo, pretende-se, pois, indagar como a falta instituinte no enunciado e na enunciacao de La disparition pode fornecer subsidios para uma reflexao da escrita literaria como crime contra o sistema linguistico, violentando toda a possibilidade de significacao no seio do texto.

A falta: uma violencia estrutural

La disparition e a historia de uma serie de desaparecimentos, constelados em torno do sumico de seu protagonista, Anton Voyl, que padece de uma crise existencial, defrontado com um vazio que nao consegue nomear, como um signo que lhe escapa da garganta e lhe impede de falar sobre sua dor. Em angustia diante dessa lacuna, o protagonista escreve um diario, que, na narrativa policial, funciona como primeira pista para investigacao do crime de seu desaparecimento.

Il a disparu. Qui a disparu? Quoi?

Il y a (il y avait, il y aurait, il pourrait y avoir) un motif tapi dans mon tapis, mais, plus qu'un motif : un savoir, un pouvoir.

Imago dans mon tapis.

[...] L'on voudrait un mot, un nom; l'on voudrait rugir: voila la solution, voila d'ou naquit mon tracas. L'on voudrait pouvoir bondir, sortir du sibyllin, du charabia confus, du mot a mot gargouillis. Mais l'on n'a plus aucun choix : il faut approfondir jusqu'au bout la vision.

L'on voudrait saisir un point initial : mais tout a l'air si flou, si lointain ... (Perec, 1969, p. 41-42) (4).

Neste excerto do diario, Voyl se lanca no vortice de suas duvidas, diante de uma vacuidade inapreensivel. Usurpado um grafema de forma violenta ao texto, ou uma suposta completude a condicao humana, resta apenas em seu lugar uma lacuna, fenda aberta violentamente na pagina pela linguagem.

Em busca nao so de um referente sumido, mas mesmo do signo desse sumico, Voyl reduplica e antecipa a historia de seu proprio desaparecimento. Se a essa tecnica de insercao de uma narrativa dentro da outra se convencionou chamar de mise en abime, a nocao de abismo aqui ganha novas dimensoes, considerando que todo abismo e uma fenda violentamente aberta em uma superficie por movimentos subterraneos da crosta terrestre. Do mesmo modo, a narrativa que Voyl inicia em seu diario revela uma lacuna no plano de expressao oriunda de uma falta mais profunda, no plano do conteudo, como ferida no sistema semiotico do romance. Este e produto de uma falta, em que todos os signos apontam apenas para o signo (letra ou personagem) ausente, como no diario de Voyl. Aqui, ao verbo disparaitre sao apostos sujeitos de valor semantico indefinido, como os pronomes il, qui e quoi. Nao ha, pois, sequer como nomear o que foi arrancado ao texto.

Uma narrativa policial sobre um desaparecimento misterioso, em que o protagonista reflete sobre um vazio existencial, acaba, assim, por ressignificar a propria nocao de falta, ratificando sua polissemia como ausencia e infracao, ou a ausencia como produto de uma infracao. Sendo esse o mote que desencadeia toda a narrativa, em que os demais personagens se poem a busca de Anton Voyl, desaparecido como vitima de um crime semiologico, o enunciado se revela uma reduplicacao da enunciacao: Voyl e um lipograma em E de voyelle, 'vogal' em frances. O desaparecimento do protagonista e, portanto, tambem o sumico da vogal, constantemente sugerida ao longo do texto nas referencias ao neografismo Voyl, a quem, porem, nao se pode trouver ('encontrar' ou 'trovar, cantar, enunciar', em frances) (Jacques Lacan, 1998b), tal qual o E que sofre la disparition.

Escrito como delito, La disparition e usurpacao da lingua francesa diante dos olhos do leitor: romance feito dos despojos de um codigo a que se subtraiu algo. Vitimando o sistema linguistico frances em seu proprio seio ao amputar-lhe sua mais frequente letra, Perec suscitou opinioes reacionarias, temerosas dessa sublevacao semiologica. No tribunal da critica literaria, procuradores do 'bom frances' denunciaram a ambigua falta de La disparition, mais uma vez como ausencia e transgressao, em discursos inflamados como este que segue, ironizado em um ensaio de Perec:

As contraintes sao [...] aberracoes, monstruosidades patologicas da linguagem e da escritura; as obras que elas suscitam nao tem direito ao estatuto de obra: encarceradas, uma vez por todas e sem recurso, [...] elas se mantem como monstros paraliterarios, dignos somente de uma sintomatologia cuja enumeracao e classificacao organizem um dicionario da loucura literaria (Perec, 1973, p. 75).

Tal fala, ao chamar de monstruosas as contraintes e as obras por elas engendradas, repudia o carater violento e performativo da linguagem--inerente a toda obra literaria--como se este fosse nocivo, e nao o que faz da literatura justamente abertura e subversao semiotica. Entretanto, traindo o intento de sua proposicao, a ambiguidade do termo 'monstro' abre um leque de significacoes que, em vez de simplesmente pejorar a ecriture sous contrainte, revela a potencia que reside em seu crime lipogramatico.

Se, por um lado, a palavra 'monstro' designa "[...] uma coisa horrenda, pavorosa, excessivamente feia e/ou bizarra" (Antonio Houaiss, 2001), sua etimologia, do latim monstrare, aponta para aquilo que se revela ou mostra aos olhos do sujeito. Assim, mostrando-se a medida que se esconde, um lipograma e na verdade uma metonimia da propria lingua, que mata o real e esconde seu cadaver por tras de uma camada fonica ou grafica, convertendo ausencia em presenca, silencio em som. Nas palavras de Lacan (apud Nasio, 1993, p. 151), "[...] a letra mata [...] o real que havia antes das palavras, antes da linguagem".

Ao ocultar o signo revelando a escrita, ou revelar o crime ocultando o cadaver--literatura como letra morta?--, um lipograma e um exercicio do delito em que se busca o nao dito, o entredito e--por que nao? --o interdito, como a hediondez da semiose que e preciso coibir. Nesse sentido, cabe lembrar que a visao de lingua como sistema fascista que apenas a linguagem literaria pode sublevar (Roland Barthes, 1994) nao pode ser afastada da nocao de escrita como violencia e performatividade, atuando no real a medida que (nao) enuncia a letra.

Esse jogo entre a opressao do sistema e o levante violento da lingua por meio de uma operacao de corte pode ser entrevisto no prologo de La disparition, em que os horrores de diferentes regimes de forca da historia europeia sao fundidos em uma excruciante cena surrealista:

[...] on s'attaquait aux bambins qu'on faisait bouillir dans un chaudron, aux savoyards qu'on brulait vifs, aux avocats qu'on donnait aux lions, aux franciscains qu'on saignait a blanc, aux dactylos qu'on gazait, aux mitrons qu'on asphyxiait, aux clowns, aux garcons, aux putains, aux bougnats, aux typos, aux tambours, aux syndics, aux Mussi-pontins, aux paysans, aux marins, aux milords, aux blousons noirs, aux cyrards.

On pilait, on violait, on mutilait. Mais il y avait pis: on avilissait, on trahissait, on dissimulait. Nul n'avait plus jamais un air confiant vis-a-vis d'autrui : chacun haissait son prochain (Perec, 1969, p. 14) (5).

Tal prologo descreve um cronotopo em que nao se desenrola a narrativa de La disparition; em vez disso, o efeito dessa colagem surrealista e de ressignificacao da narrativa de Voyl, que se lhe justapoe no capitulo 1. Assim, Perec define um modus legendi de seu romance policial, em que a escrita e a violencia, como origem de todo traco--corte ou escalavradura sobre uma superficie (Jacques Derrida, 2008)--, sao indissociaveis. A sobreposicao de imagens violentas e belicas da Antiguidade Greco-Romana (donnait aux lions--dados aos leoes), da Idade Media (brulait vifs--queimados vivos), da Primeira Guerra Mundial (blousons noirs--camisas negras) e da Segunda Guerra Mundial (gazait--mortos a gas) se mescla a substantivos do campo da escrita, como dactylos e typos (datilografos e tipografos, respectivamente). Essa combinacao entre golpe e escrita, crime e grafema, define o diapasao de leitura para o romance, que se abre com um agressivo talho.

Para tanto, Perec redige seu livro como latrocinio, em que uma letra faltante e roubada ao idioma diante dos olhos do leitor-testemunha, que nada pode fazer senao procura-la em vao, para encontra-la apenas no nome do autor, estampado na capa. Tal expediente de ocultar o produto do roubo no local mais evidente--como no proprio nome do criminoso, repetindo-se quatro vezes--esta tambem presente no conto A carta roubada (Poe, 1981), traduzido para o frances por Baudelaire como La lettre volee.

Se a homonimia francesa entre lettre ('letra') e lettre ('carta') ja torna a semelhanca entre La disparition e 'A carta roubada' significativa, esse procedimento e ainda mais intenso, na medida em que o narrador do romance de Perec faz referencia direta ao conto policial norte-americano. Nessa operacao intertextual, o texto de Poe torna-se tema de uma noticia de jornal com que Voyl se depara antes de sumir, a qual servira de pista para a investigacao de seu desaparecimento. Nessa noticia, reproduz-se o enredo do conto de Poe, em que, depois de muitos esforcos vaos das forcas policiais, o detetive Dupin encontrou a carta subtraida a rainha, procurando-a no lugar mais obvio possivel: o porta-cartas do suspeito, o ministro D. De maneira analoga, todo um romance escrito ocultando a letra E faz com que o leitor a veja, mas perca-a o tempo inteiro, instalada como silencio e possibilidade na obviedade da pagina.

Tal jogo de esconder e revelar, constantemente revisitado na fala do narrador e dos personagens, como em "[...] tout a la fois montrait mais taisait, signifiait mais masquait" (simultaneamente mostrava mas calava, significava mas mascarava) (Perec, 1969, p. 111), e um procedimento formal que, a dimensao do crime e da violencia enunciativa, acrescenta o carater da perversao sexual do voyeurismo do leitor (Barthes, 2006). Como mais um procedimento subversivo, a escrita de La disparition lanca-se como tremeluzencia de significados e significantes, apenas entrevistos e sugeridos, mas nunca finalmente captados por aquele que le, ainda que de olhos fixos no corpo do texto. A esse respeito, e elucidativa a fala de Barthes sobre o strip-tease da bailarina, em que

[...] o lugar mais erotico de um corpo nao e la onde o vestuario se entreabre? Na perversao (que e o regime do prazer textual) nao ha "zonas erogenas" (expressao alias bastante importuna); e a intermitencia, como o disse muito bem a psicanalise, que e erotica: a da pele que cintila entre duas pecas (as calcas e a malha), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); e essa cintilacao mesma que seduz, ou ainda: a encenacao de um aparecimentodesaparecimento (Barthes, 2006, p. 15).

Como transgressao e intermitencia, a narrativa que se despe diante do leitor mantem sempre algo escondido e excitante, que potencializa a etimologia de 'obsceno' como o que esta 'fora da cena', tal qual a genitalia da bailarina despida ou o grafema nunca recuperado na excitacao do crime. Dentro e fora, aparente e invisivel, o chiaroscuro da letra roubada opera como dijferance no ambito do texto e sua semiose, desestabilizando mesmo os processos primevos de producao de sentidos.

A esse respeito, e interessante notar como tambem a distincao entre difference e dijferance (Derrida, 1972) so pode ser vista como alternancia e tremeluzencia, tal qual o sexo no strip-tease relatado por Barthes e o E em La disparition. Como figuracao na ausencia, a letra E se instala na forma de lacuna no romance de Perec e na formula derridiana da differ/nce, que, no silencio do talho, contem uma violencia semiotica diferinte e diferida, ferida que esvai sentidos sem jamais cicatrizar. Assim como o grafema ausente nao pode ser ouvido em La disparition, o roubo do E e sua permuta por A sao sempre inaudiveis no par difference/differance.

Crime silencioso, a dijferance, como deslizamento ininterrupto dos significantes, violenta a lingua, na medida em que denuncia a impossibilidade de uma interpretacao pacifica, adiando, de forma angustiante, o sentido para um ponto intangivel. Semelhante desassossego desestabiliza Voyl diante da lacuna irrecuperavel, conforme se percebe no excerto a seguir:

II frissona sans draps, il transpira sous un plaid, il compara l'alfa au kapok. Il coucha assis, accroupi, a califourchon; il consulta un fakir qui lui proposa son grabat a clous, puis un gourou qui lui ordona la position yoga: son avant-bras droit comprimant l'occiput, il joignit son talon a sa main.

Mais tout s'affirmait vain. Il n'y arrivait pas. Il croyait s'assoupir, mais ca fondait sur lui, dans lui, ca bourdonnait tout autour. Ca lui opprimait. Ca l'asphyxiait (Perec, 1969, p. 22) (6).

Angustiado com o zumbido de um som ou letra que nao pode enunciar, o protagonista se lanca, cada vez mais fundo, em um abismo para tentar preencher o vazio que o oprime e asfixia, agindo justamente no cruzamento entre o sopro e a voz. Na verdade, sendo a dijferance uma dupla acao de diferir--como distinguir e adiar--, os sentidos do romance de Perec sao sempre postergados na cadeia significante, em uma empreitada que

[...] trata [...] sempre da forca diferencial, da diferenca como diferenca de forca, da forca como dijjerance ou forca de dijjerance (a dijjerance e uma forca diferida-diferinte); trata-se sempre da relacao entre a forca e a forma, entre a forca e a significacao; trata-se sempre de forca "performativa", forca ilocucionaria ou perlocutoria, forca persuasiva e de retorica (Derrida, 2010, p. 11).

No ato do crime perlocutorio--performatico e fonetico, como na teoria politica e linguistica dos Atos de fala, em que dizer e sempre fazer (John Langshaw Austin, 1962)--, La disparition revela a precariedade de toda significacao, violando inclusive as fronteiras do signo concebido como unidade independente e dotada de sentido. O que o narrador de Perec revela, em dois paragrafos contundentes do ponto de vista da narrativa e da Teoria Literaria, e a impossibilidade, enfim, de chegar a um significado final, projeto opressor de todo poder.

Nous avancions pourtant, nous nous rapprochions a tout instant du point final, car il fallait qu'il y ait un point final. Parfois, nous avons cru savoir: il y avait toujours un 'ca' pour garantir un 'Quoi?', un 'jadis', un 'aujourd'hui', un 'toujours', justifiant un 'Quand?", un 'car', donnant la raison d'un 'Pourquoi?'.

Mais sous nos solutions transparaissait toujours l'illusion d'un savoir total qui n'appartint jamais a aucun parmi nous, ni aux protagons, ni au scrivain, ni a moi qui fus son loyal proconsul, nous condamnant ainsi a discourir sans fin, nourrissant la narration, ourdissant son fil idiot, grossissant son vain charabia, sans jamais aboutir a l'insultant point cardinal, l'horizon, l'infini, ou tout paraissait s'unir, ou paraissait s'offrir la solution (Perec, 1969, p. 304) (7).

Ao chamar a atencao para as relacoes sintaticas que ligam expressoes pronominais e adverbiais no primeiro paragrafo desse excerto, sob a forma de perguntas e respostas, o narrador destaca o valor de sinal de cada palavra em seu texto, apontando para outra, que remete a uma terceira, referindo-se a uma quarta, em um processo infinito de differance, adiamento da significacao. Se, por fim, percebe-se que todo diferir de sentidos--como distincao ou adiamento--so se da a partir de uma lacuna, seja ela um espaco entre os elementos distintos ou um hiato temporal entre significados adiados, o carater de ausencia do lipograma de La disparition potencializa o crime que a differance perpetra contra toda pretensa estabilidade semantica.

De maneira analoga, uma rapida visita ao sumario do livro defronta mais uma vez o leitor com as evidencias do delito linguistico, vol de la lettre, em La disparition: o livro e dividido em vinte e seis capitulos, mas nao ha um capitulo de numero cinco; da mesma forma, os capitulos sao agrupados em seis blocos, mas nao ha um bloco de numero dois. Sendo a letra E a quinta do alfabeto frances, com vinte e seis letras, e a segunda vogal, na serie francesa de seis (o Y, nas escolas francesas, e ensinado muitas vezes como uma letra vogal), a macroestrutura do romance debocha do leitor testemunha, incapaz de recuperar o produto do roubo silencioso.

Esse projeto violento de desestabilizacao das certezas e das concepcoes de enunciacao e narracao--como contar a historia de um protagonista ausente, com uma letra ausente, se o proprio sentido esta ausente?--esta contraditoriamente presente em toda a tessitura de La disparition, uma vez que o conceito de escrita e posto em xeque nessa narrativa, como se percebe no trecho a seguir:

Il s'agissait d'un carton a kaolin, noirci a l'indian ink, qu'un artisan tatillon avait blanchi au grattoir (ou plutot au vaccino-stylo) [...]. On avait ainsi produit, par disparition du noir, un croquis au fini parfait qui imitait l'inscription au bambou qu'on voit parfois au bas d'un lavis japonais (Perec, 1969, p. 114) (8).

Em lugar de uma serie de tracos negros que maculariam a folha branca, imagem comum na literatura ocidental para se referir a materialidade da escrita, o protagonista do romance de Perec deixa para os amigos antes de desaparecer uma mensagem cifrada, escrita a partir da raspagem a cinzel de uma folha negra. Concebida como escoriacao de uma tinta, nao como marcacao de uma pagina, a propria escrita torna-se, entao, uma disparition, que deixa entrever o que esta dissimulado por tras do nanquim ou da voz.

Assim como o escultor tira da pedra uma estatua que ja estava ali dentro, na forma de potencia, o romance de Perec arranca da linguagem, raspando-lhe a tinta ou uma letra, um texto que ja ali estava, como presenca de uma ausencia. Nesse sentido, note-se que

[...] so a ausencia pura--nao a ausencia disto ou daquilo--mas a ausencia de tudo em que se anuncia toda a presenca--pode inspirar, ou por outras palavras trabalhar, e depois fazer trabalhar. O livro puro esta naturalmente virado para o oriente dessa ausencia que e, aquem e alem da genialidade de toda a riqueza, o seu conteudo proprio e primeiro. O livro puro, o livro em si, deve ser, pelo que nele e mais insubstituivel, esse "livro sobre nada" com que sonhava Flaubert. Sonho em negativo, em cinza, origem do Livro total que foi a obsessao de outras imaginacoes. Esta vacancia como situacao da literatura e o que a critica deve reconhecer como a especificidade do seu objeto, em torno da qual sempre se fala. O seu proprio objeto, ja que o nada nao e objeto, e antes a maneira como esse nada em si se determina ao perder-se (Derrida, 2009, p. 9).

Sonhado em negativo, esse livro puro e o vazio da escrita, presente como potencia em todo texto, fendido a cada intervalo entre duas letras, duas palavras. Como marca d'agua, assombracao na folha de papel nem virgem nem preenchida, o negativo da escrita e cinza, segundo Derrida, devir do branco dentro do preto, no qual se abrem as feridas da escrita. Assim como e o silencio, que permite distinguir os intervalos entre as notas, e portanto a cadeia melodica, e o nada na folha que significa (que atribui significado) ao simbolo grafico, tracado a partir da cisao do entorno e da delimitacao de suas escoriacoes.

Construido como vacancia raspada numa superficie e discorrendo sobre essa mesma vacancia, La disparition e, entao, um exercicio de Teoria Literaria no ato da propria escrita, inscrevendo-se criminosamente como um vazio e falando sobre esse vazio.

Se a escritura e inaugural, nao e por ela criar, mas por uma certa liberdade absoluta de dizer, de fazer surgir o ja la no seu signo, de proceder aos seus augurios. Liberdade de resposta que reconhece como unico horizonte o mundo-historia e a palavra que so pode dizer que: o ser sempre comecou ja. Criar e revelar, diz Rousset (Derrida, 2009, p. 15).

Violentando nossa compreensao convencional de como se inscrevem os sentidos, a escritura de Perec se instala como escalavradura no papel, esfolando a pagina negra para fazer surgir entre os vazios, sintaxe do branco, o 'ja la no seu signo'. Porem, por raspagem--da tinta, da voz, da letra E--, La disparition e o produto de uma escrita em que o ser 'sempre comecou ja', paradoxo temporal que revela uma aporia de toda narrativa: como narrar em tempos preteritos a historia de algo ou alguem que surge no proprio ato da escrita como escoriacao? Em outras palavras: o sentido existiria antes da inscricao do texto ou lhe seria posterior?

Embora essa questao da premencia do significante ou do significado alimente interminaveis contendas entre filosofos da linguagem, teoricos da literatura, psicanalistas e comunicologos, a posicao de Perec e clara em seu romance, como se pode notar na seguinte fala de Voyl:

Nous avons du travail pour au moins jusqu'au matin (on allait alors sur minuit): la signification n'apparaitra qu'a la fin, quand nous aurons garanti l'articulation du parcours qui nous conduira d'un subscrit (l'inscription qu'on voit hic & nunc) a un transcrit, puis a un traduit. [...] Il y aura donc d'abord un pouvoir du Logos, un 'ca' parlant dont nous connaitrons aussitot l'accablant poids sans pouvoir approfondir sa signification (Perec, 1969, p. 194) (9).

Mais uma vez, a escrita do romance se instala como agressao as certezas e ao senso comum acerca do funcionamento da linguagem, segundo o qual a mente humana processaria um sentido e, posteriormente, faria uma selecao de vocabulos e arranjos sintaticos para dar forma a essa significacao anterior. Em oposicao a isso, Voyl afirma que, muito antes da producao de qualquer sentido, dao-se processos de articulacao, subscricao, inscricao, transcricao e traducao, fenomenos estruturais de toda cadeia de significantes, que, para Lacan, preexistiriam mesmo ao sujeito. Nesse sentido, e interessante ainda a mencao do personagem a um 'ca parlant', de significacao final inapreensivel, que faz remissao direta a frase lacaniana sobre o inconsciente e sua estrutura como linguagem: 'ca parle'.

Outras referencias a psicanalise lacaniana sao recorrentes ao longo do romance, seja na forma de parodias da teoria ou alusoes diretas ao nome do discipulo frances de Freud. Portanto, nao seria exagerado pensar o processo de construcao de La disparition a luz das concepcoes de escrita, linguagem e inconsciente de Lacan. O proprio Voyl, em um de seus escritos sobre Edipo e a Esfinge, diz que sua personagem, Aignan, "[...] connaissait Lacan mot a mot" (conhecia Lacan tintim por tintim) (Perec, 1969, p. 43), o que lhe permitiria, inclusive, assassinar o monstro fabuloso, metafora de todo delito em que goza o leitor no contato com o vazio do texto.

Nesse diapasao, e interessante voltar a ideia de que, assim como a tinta negra raspada da lugar ao branco, que atribui valor de signo ao restante de nanquim na pagina, os simbolos pretos do papel atribuem sentido aos vazios. Essa visao dialetica sobre o silencio e a voz na estruturacao do texto, que permeia todo o romance de Perec, esta na base da compreensao lacaniana da Letra, conceito que se confunde com o fonema na psicanalise francesa, como significante absoluto que preexiste ao sujeito e o inscreve no simbolico (Lacan, 1998a). Como marca minima com valor distintivo na linguagem, a letra-fonema, metonimia da lingua, e a lettre que forma l'etre, a partir do discurso de 1'autre. Assim, se todo discurso do sujeito, para Lacan, vem do outro, inclusive o inconsciente, e nas fendas do ser que penetra o outro, e na ausencia do outro que fala o ser, tal qual o nanquim e a celulose imaculada recortam-se mutuamente.

[...] de modo que lettre, na homofonia, esta marcando um fonema diferencial, que desloca o sujeito desde a letra ao ser e do ser ao outro, verificando-se uma solidariedade intrinseca, [...] entre a ordem literal e a ordem da letra, a ordem do ser e a ordem do outro como alteridade (Vallejo & Magalhaes, 2008, p. 81).

Desse modo, tal qual a escrita que Voyl concebe como raspagem do papel, a ausencia da letra E constitui o romance tambem a partir de uma alteridade, pois todo o livro e composto como um negativo: aquilo que o E nao e, contendo-o em potencia e silencio, porem. Nessa medida, pode-se dizer que e a differance entre a lingua e o lipograma o que se permite entrever nessa alteridade, de modo que o grafema, embora barrado, esteja presente na sua negatividade, diferido ad infinitum, como no trecho a seguir:

Ottaviani voulut ravoir la communication. Savorgnan la lui donna. Il la lut, pour lui, a mi-voix. On aurait dit qu'il n'avait pas compris quand il avait lu d'abord.

--Alors, Ottaviani, ironisa Swann, dis-nous si tu saisis?

Ottaviani paraissait souffrir. Il s'agitait sur son pouf. Il suait. Il transpirait, ahanant.

[...]

S'affairant, Ottavio Otaviani murmura d'un ton mourant:

--Mais il n'y a pas non plus d' ... (Perec, 1969, p. 297) (10).

Nessa passagem, as personagens tentam decifrar mais uma das diversas pistas e mensagens cifradas que Voyl deixou para tras antes de desaparecer, como esperado em qualquer romance policial. Contudo, confrontado com a necessidade de dizer o que nao pode ser dito--o signo que falta nos escritos de Voyl e no proprio livro--, o personagem de Ottaviani nao consegue enunciar a lettre instituinte, que funda o romance. De maneira analoga, e inefavel a letra-fonema que funda l'etre no universo simbolico--ou as personagens no regime textual--, uma vez que um sujeito jamais pode vocalizar o corte que o instaura na linguagem. Diante dessa aporia, a voz de Ottaviani se revela d'un ton mourant, falecendo na pronuncia de um silencio, marcado graficamente na pagina com um espaco em branco, jamais preenchido, logo ao lado da apostrofe, como grito abafado de mais uma vitima do crime da escrita. Assim, a letra E, ainda que em sua ausencia, e marcada fisicamente por um vazio na pagina de La disparition: materialismo da palavra, materialisme du mot, moterialisme (Lacan, 1976), em que a palavra--ou seu silencio--funda o real e afeta o corpo, cadaver da Letra que mata o real.

Essa presenca da falta, letra ou vocabulo ausente, confirmando a escritura em negativo de La disparition, so ganha sentido em contraste com a lingua francesa 'completa', em uma differance que permite entrever o rendimento poetico e simbolico do lipograma. Afinal, so no conhecimento do codigo e da totalidade de seus elementos constituintes pode-se perceber que a lingua sobrevive a sua mutilacao, falando por uma nao voz, como na liaison jamais completa da fala de Ottaviani: il n'y a non plus d'.

Para potencializar esse efeito contrastivo, eloquente em seu mutismo, Perec faz, em seu livro, constantes referencias intertextuais a textos basilares da cultura francesa, escritos originalmente com todas as letras do alfabeto latino, a fim de violenta-los com sua escrita lipogramatica. Esses delitos artisticos acabam se revelando, portanto, transgressoes reduplicadas, uma vez que, alem de perpetrar o roubo do texto alheio, o narrador de La disparition usurpa-lhes tambem o grafema E. Entre os textos parodiados dessa forma, destacam-se seis poemas que Voyl teria deixado para tras, como pistas do seu desaparecimento: Bris marin, de Mallarmus (subversao de Brise marine, de Mallarme); Booz assoupi, de Hugo Victor (lipograma de Booz endormi, de Victor Hugo); Sois soumis: mon chagrin, Accords e Nos chats, do fils adoptif du Commandant Aupick (reescrituras de Recueillement, Correspondances e Les chats, de Baudelaire); e Vocalisations, de Arthur Rimbaud (parodia de Voyelles, do autor homonimo) (Perec, 1969).

Sendo estas evidencias do crime contra Voyl constituidas elas mesmas como crimes contra a lingua e a literatura francesas, amputadas de uma letra, procede-se aqui a um cotejo mais detido do poema Voyelles, de Rimbaud, e sua versao lipogramatica, Vocalisations (11), que carregam no titulo vestigios da vogal roubada.

No primeiro verso do celebre soneto de Rimbaud, enumeram-se as vogais, as quais se atribuem distintas cores, segundo o gosto simbolista pelas sinestesias: "A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles" (Rimbaud, 1999, p. 279), processo que se repete, mas de forma ardilosa, em Vocalisations, dadas as minimas alteracoes que subvertem o original, assim reescrito: "A noir (Un blanc), I roux, U safran, O azur:" (Perec, 1969, p. 125);

Assim, no poema que Voyl deixa para os amigos, alem das obvias alteracoes na selecao vocabular das cores para preservar o lipograma, pode-se observar uma engenhosa, mas discreta permuta: A noir, indicando originalmente que a letra A seria negra para o eu-lirico, torna-se A noir, locucao adverbial que sugere as condicoes em que se da a escritura do poema, e mesmo de La disparition. Em seguida a essa expressao de modo, E blanc foi substituido por Un blanc, ou seja, nao por uma letra pintada de branco, mas por um branco substantivado, lacuna posta mesmo entre parenteses, para ratificar seu carater de suspensao. Assim, A noir (Un blanc), elementos nao separados por qualquer virgula no texto de Perec, ganham a dimensao de uma lacuna, um branco, escrita em negro ou as escuras, impedindo a visao do leitor, mas sugerindo uma construcao dialetica de sentidos entre o claro da pagina e o escuro da tinta, como se o vazio atribuisse sentido ao preenchido e vice-versa. Tal interpretacao ratifica a leitura anterior da passagem em que Voyl escreve sua mensagem, raspando uma folha preta, atentando contra os conceitos tradicionais de escritura.

Ademais, outros truques graficos sao usados no inicio do segundo quarteto, que se refere, no texto original, a letra E: "Golfes d'ombre; E, candeurs des vapeurs et des tentes,/ Lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles;" (Rimbaud, 1999, p. 279), cuja parodia lipogramatica culmina em "Caps obscurs; qui, cristal du brouillard ou du Khan,/ Harpons du fjord hautain, Rois Blancs, frissons d'anis?" (Perec, 1969, p. 125). A troca de golfes ('golfos') por caps ('cabos', no sentido geografico) funciona como uma antonimia perfeita, em que uma porcao de agua entre terras e trocada por uma massa de terra entre aguas, indicando a subversao por completo que se opera nos sentidos do texto. Alem disso, a substituicao da letra E pelo pronome qui acarreta uma indeterminacao no poema, pois todas as metaforas que se seguem passam a ser atribuidas a uma lacuna de sentido, preenchida apenas aparentemente por essa proforma pronominal vazia. Por fim, tal nocao de labilidade, errancia e precariedade da significacao e ratificada pela permuta do ponto e virgula, no poema original, por um ponto de interrogacao, o qual indaga, mais do que a validade das alegorias e sinestesias em si, a que as atribuir nesses dois versos. A um vazio? A qui?

Letra ausente, essa impossibilidade de redigir um poema completo, que resvala sempre em um abismo branco, fica clara no ultimo verso do soneto original, "--O l'Omega, rayon violet de Ses Yeux!" (Rimbaud, 1999, p. 279), quando transformado em "--O l'omicron, rayon violin dans son Voir!" (Perec, 1969, p. 125). Ao passo que o poema original se iniciava com o A e terminava com o omega, sugerindo uma completude de alfa a omega, do inicio ao fim, a versao de Perec termina em omicron, nao cobrindo todo o alfabeto grego e deixando, portanto, um talho aberto, jamais cicatrizado ou conhecido por son Voir.

Por uma relacao de encaixamento do tipo mise-en-abime, ve-se que tal falta impede a completude da escrita tambem do romance de Perec, resvalando sempre em uma impossibilidade de dizer. Tentando enunciar algo que a todo instante lhe escapa, o narrador de La disparition lanca-se em uma empreitada identica a do protagonista Voyl e a do eu-lirico de Vocalisations, buscando dizer um nome, uma palavra, que aplaque uma dor ou preencha uma lacuna, como se percebe a seguir.

Il transpirait. Il hurlait, mais nul n'accourait a lui. Il avait trop chaud. Sa main aux trois doigts griffus battait l'air. Mais tout autour, dans la maison, aucun bruit, sinon, tout au plus, l'insignifiant clapotis d'un lavabo qui fuyait. Qui connaissait sa situation? Qui saurait l'affranchir, aujourd'hui, a jamais? N'y avaitil pas un mot dont la prononciation suffirait a adoucir son mal? Il manquait d'air. L'asphyxiation montait pas a pas. Son poumon lui brulait. Un mal sournois sciait son larynx. Il voulut rugir un S.O.S. Sa voix chuinta un sanglot plaintif. Un rictus maladif marquait son pli labial, striait son front, son cou. Il vagissait (Perec, 1969, p. 30) (12).

Essa cena excruciante refere-se aos momentos finais da personagem de Voyl, antes de seu sumico. Tamanha dor lancinante, que lhe percorre o corpo e lhe usurpa a voz, teve inicio quando o protagonista entreviu, em seu tapete, um padrao na estamparia, semelhante a uma letra, que ele nao foi capaz de compreender no momento, mas que jamais deixou de assombra-lo. Tomado por um imperativo de lembrar esse simbolo, essa palavra, essa cena, Voyl deseja, por outro lado, esquece-la, sob pena de perecer, caso nao o consiga. No entanto, o crime da escrita e sempre inescapavel: Voyl da seu ultimo suspiro ao entrever o formato da letra E na padronagem de seu tapete, gozo sadico final do sujeito, que finalmente se defronta com seu vazio, seja na superficie textual do tapete ou da pagina do livro.

Consideracoes finais

Uma expressao frequentemente repetida pelo narrador de La disparition define bem essa nocao de escrita como crime e falta que estrutura o romance: "un bourdon au vol lourd" (Perec, 1969, p. 19). Tal sintagma deve ser entendido no carater erratico e indecidivel de seus sentidos, transgressao semiotica cara ao literario.

Se, em um primeiro nivel de leitura, tal construcao poderia ser traduzida como "um inseto em voo denso/pesado", o qual perturba as noites insones do protagonista, bourdon tambem significa 'falha de editor que, por acidente, omite alguma palavra' (Paul Robert, Josette Rey-Debove, & Alain Rey, 2008), ao passo que vol tambem pode ser traduzido como 'roubo'. Assim, a ideia de uma letra saqueada ao romance, soma-se a de um grafema que se perde em uma polissemica falta do editor, desestabilizando todo o sistema de coordenadas da lingua. Desprovido, entao, de um grafema castracao sempre ja na linguagem--, o idioma passa a faltar a si mesmo, em uma insidiosa amputacao, que zumbe baixa e constantemente nas noites em claro de Voyl.

Como ausencia, produto prototipico do assassinato e do latrocinio, a falta do grafema e do protagonista e crime ou monstruosidade literaria. Porem, o monstro lipogramatico mostra ao ocultar, embaralhando e trapaceando a semiotica do romance, que tortura a lingua francesa a contorcoes insustentaveis, a fim de ocultar a letra que mais se lhe ressalta.

Nesse caso, as lacunas no plano da expressao e do conteudo em La disparition sao mais que ausencias de signo; sao ausencias como signos, signos de ausencia, anunciando a vacuidade ultima, morte a que destinam Voyl e os leitores do texto, que tambem um dia sucumbirao a falta violentamente aberta pela linguagem. Para tras, fica apenas o texto literario como cadaver, 'grafema testamentario', de um real que se mata a cada instante por tras da letra.

Doi: 10.4025/actascilangcult.v38i1.24590

Referencias

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Houaiss, A. (2001). Dicionario Eletronico Houaiss da Lingua Portuguesa. (CD-ROM) Sao Paulo, SP: Objetiva.

Lacan, J. (1976). L'insu que sait de l'une-bevue s'aille a mourre. Seminaire XXIV. Paris, FR: Seuil.

Lacan, J. (1998a). A instancia da letra no inconsciente ou a razao desde Freud. Escritos (p. 493-528). Sao Paulo, SP: Perspectiva.

Lacan, J. (1998b) Seminario sobre a carta roubada. Escritos (p. 13-68). Sao Paulo, SP: Perspectiva.

Nasio, J. D. (1973). Cinco licoes sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.

Perec, G. (1969). La disparition. Paris, FR: Denoel.

Perec, G. (1973). OuLiPo--La litterature potentielle Paris, FR: Gallimard.

Poe, E. A. (1981). Historias extraordinarias. Sao Paulo, SP: Victor Civita.

Rimbaud, A. (1999). Oeuvres completes: poesie, prose et correspondance. Paris, FR: La pochotheque.

Robert, P., Rey-Debove, J., & Rey, A. (2008). Le nouveau Petit Robert de la langue francaise. Paris, FR: Le Robert.

Vallejo, A. & Magalhaes, L. C. (2008). Lacan: operadores da leitura. Sao Paulo, SP: Perspectiva.

Received on August 3, 2014.

Accepted on October 26, 2015.

Anexo

Voyelles e Vocalisations

Transcrevem-se abaixo, para fins de cotejo, o soneto Voyelles, de Arthur Rimbaud, e sua versao lipogramatica, e autoria de Perec.

Voyelles

A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles, Je dirai quelque jour vos naissances latentes: A, noir corset velu des mouches eclatantes Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,

Golfes d'ombre; E, candeur des vapeurs et des tentes, Lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles; I, pourpres, sang crache, rire des levres belles Dans la colere ou les ivresses penitentes;

U, cycles, vibrements divins des mers virides, Paix des patis semes d'animaux, paix des rides Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux;

O, supreme Clairon plein des strideurs etranges, Silence traverses des Mondes et des Anges: --O l'Omega, rayon violet de Ses Yeux !--(Rimbaud, 1999, p. 279)

Vocalisations

A noir, (Un blanc), I roux, U safran, O azur: Nous saurons au jour dit ta vocalisation: A, noir carcan poilu d'un scintillant morpion Qui bombinait autour d'un nidoral impur,

Caps obscurs; qui, cristal du brouillard ou du Khan, Harpons du fjord hautain, Rois Blancs, frissons d'anis? I, carmins, sang vomi, riant ainsi qu'un lis Dans un courroux ou dans un alcool mortifiant;

U, scintillations, rond divins du flot marin, Paix du patis tissu d'animaux, paix du fin Sillon qu'un fol savoir aux grands fronts imprima;

O, finitif clairon aux accords d'aiguisoir, Soupirs ahurissant Nadir ou Nirvana: O l'omicron, rayon violin dans son Voir! (Perec, 1969, p. 125)

Vinicius Carvalho Pereira

Universidade Federal de Mato Grosso, Av. Fernando Correa da Costa, 2367, 78060-900, Cuiaba, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

(1) Ouvroir de Litterature Potentielle, grupo fundado por Raymond Queneau na Franca dos anos 60, voltado para jogos literarios a partir de restricoes formais (contraintes).

(2) As citacoes retiradas de La disparition sao aqui traduzidas com vistas a aumentar a legibilidade do artigo para o leitor sem conhecimento de lingua francesa. Trata-se, portanto, de traducao livre, com objetivos estritos, que nao visa a manter a estrutura grafematica do romance. Sendo a obra construida em torno da ausencia de uma letra, toda traducao culminaria na escritura de outro romance, que trairia o original, quer no plano do conteudo, a fim de reproduzir a falta do grafema E, quer no plano da expressao, se feita uma traducao literal.

(3) "Assim nascia, palavra a palavra, preto sobre o branco, surgindo de uma investida tao ardua quanto parece insignificante para quem le sem saber a solucao, um romance que, por mais bizarro que fosse, imediatamente lhe pareceu sobretudo satisfatorio: em primeiro lugar, ele que nao tinha um quilate de inspiracao (nao acreditava nem um pouco em inspiracao!) se mostrava pelo menos tao imaginativo quanto um Ponson ou um Paulhan; depois, ele saciava um instinto tao constante quanto pueril (ou infantil): seu gosto, seu amor, sua paixao pela acumulacao, pela saturacao, pela imitacao, pela traducao, pela automatizacao."

(4) "Ele desapareceu. Quem desapareceu? O que?

Ha (havia, haveria, poderia haver) um motivo oculto no meu tapete, mas, mais que um motivo: um saber, um poder.

Imago em meu tapete.

[...]

Queria-se uma palavra, um nome; queria-se rugir: eis a solucao, eis de onde nasceu meu tormento. Queria-se poder correr, sair do enigma, da algaravia confusa, das palavras guturais. Mas nao se tinha mais nenhuma escolha: e preciso aprofundar ate o fim a visao.

Queria-se alcancar um ponto inicial: mas tudo tem um ar tao impreciso, tao distante ..."

(5) "[...] atacavam-se as criancas que se faziam ferver num caldeirao, os saboianos que eram queimados vivos, os advogados que eram dados aos leoes, os franciscanos que eram sangrados de perto, os datilografos que eram mortos a gas, os aprendizes de padeiro que eram asfixiados, os palhacos, os rapazes, as putas, os carvoeiros, os tipografos, os tocadores de tambor, os representantes, os Mussi-pontins, os campesinos, os marinheiros, os lordes, os camisas negras, os cadetes. Esmagava-se, violava-se, mutilava-se. Mas havia pior: defraudava-se, traia-se, dissimulava-se. Ninguem mais tinha um ar confiante cara a cara com o outro: cada um odiava seu proximo."

(6) "Ele fremiu sem as cobertas, transpirou sob uma manta, comparou o alfa a paina. Deitou-se sentado, agachado, escarranchado; consultou um faquir que lhe ofereceu seu palete de pregos, pois um guru lhe ordenou a posicao yoga: seu antebraco direito comprimindo a testa, ele uniu seu calcanhar a mao.

Mas tudo se mostrava vao. Ele nao conseguia. Ele acreditava adormecer, mas aquilo fazia pressao sobre ele, dentro dele, aquilo agitava tudo ao redor. Oprimia-o. Asfixiava-o."

(7) "Nos avancavamos, porem, aproximavamo-nos a todo instante do ponto final, pois era preciso haver um ponto final. Por vezes, acreditamos saber: havia sempre um 'aquilo' para garantir um 'o que'?, um 'outrora', um 'hoje', um 'sempre', justificando um 'quando'?, um 'pois', dando a razao de um 'por que'?

Mas sob as nossas solucoes transparecia sempre a ilusao de um saber total que nao pertenceu jamais a nenhum de nos, nem aos protagonistas, nem ao escritor, nem a mim que fui seu proconsul leal, condenando-nos assim a discorrer sem fim, nutrindo a narracao, urdindo seu fio idiota, aumentando sua va algaravia, sem jamais chegar ao ofensivo ponto cardinal, ao horizonte, ao infinito, onde tudo parecia se unir, onde parecia se oferecer a solucao."

(8) "Tratava-se de um cartao de caulim, enegrecido a tinta nanquim, que um artesao meticuloso havia embranquecido com um raspador (ou mesmo com uma agulha de vacina) [...]. Havia-se assim produzido, por desaparecimento do negro, um croqui ao fim perfeito que imitava a inscricao em babu que se ve frequentemente sob um sumi-e japones."

(9) "Temos trabalho para pelo menos ate de manha (ja vai quase meia-noite): a significacao so aparecera no fim, quando tivermos garantido a articulacao do percurso que nos conduzira de um subscrito (a inscricao que se ve aqui e agora) a um transcrito, depois a um traduzido. [...] Havera entao de inicio um poder do Logos, um << isto >> que fala, do qual conheceremos imediatamente o peso esmagador sem poder aprofundar sua significacao."

(10) "Ottaviani quis reaver a mensagem. Savorgnan deu-lha. Ele a leu para si mesmo, a meia-voz. Dir-se-ia que ele nao compreendera de imediato quando da leitura.

Entao, Ottaviani, ironizou. Swann, diga-nos se voce compreendeu.

Ottaviani parecia sofrer. Ele se agitava sobre seu pufe. Suava. Transpirava, arquejante.

[...]

Agitando-se, Ottavio Otaviani murmurou em um tom moribundo:

Mas nao ha mais um ..."

(11) "Tanto o soneto de Rimbaud quanto sua versao lipogramatica encontram-se anexos ao presente artigo, para fins de comparacao."

(12) "Ele transpirava. Urrava, mas ninguem acorria a ele. Estava com muito calor. Sua mao, com tres dedos em garra, golpeava o ar. Mas em volta, na casa, nenhum ruido, senao o insignificante som da descarga de um lavabo. Quem conhecia sua situacao? Quem saberia liberta-lo, hoje, para sempre? Nao havia uma palavra cuja pronuncia bastaria para abrandar seu mal? Faltava-lhe ar. A asfixia aumentava passo a passo. Seu pulmao queimava. Um mal secreto serrava-lhe a laringe. Ele queria rugir um S.O.S. Sua voz sussurrava um gemido queixoso. Um esgar doente marcava sua dobra labial, enrugava sua testa, seu pescoco. Ele chorava."
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