Writing as a crime and absence in La disparition/A escrita como crime e falta em La disparition.
Pereira, Vinicius Carvalho
Introducao
Nada preenche o vazio essencial que a escrita revela.
Ana Hatherly
Desaparecimento de um corpo. Apagamento de um signo. O corpo de um
signo e os signos de um corpo se esvaem. Publicado pela primeira vez em
1969, o romance La disparition, de Georges Perec, tornou-se um emblema
do grupo Oulipo (1). Ousado, ironico e iconoclasta, o texto e composto a
partir de uma das contraintes mais famosas dos jogos oulipianos de
escrita: o lipograma, neologismo formado pela juncao das raizes gregas
leipo, "abandonar, deixar para tras", e gramma, "letra,
escrita". Aparentemente simples, a unica regra do jogo seria a
omissao obrigatoria de um grafema predefinido, como seu proprio nome
indica, o que obviamente limita os recursos expressionais de que o autor
pode se valer no ato da escrita, mas abre uma vasta gama de
possibilidades esteticas, como Perec afirma no epilogo do romance (2):
Ainsi naquit, mot a mot, noir sur blanc, surgissant d'un canon
d'autant plus ardu qu'il apparait d'abord insignifiant
pour qui lit sans savoir la solution, un roman qui, pour biscornu
qu'il fut, illico lui parut plutot satisfaisant: D'abord, lui
qui n'avait pas pour un carat d'inspiration (il n'y
croyait pas, surcroit, a l'inspiration!) il s'y montrait au
moins aussi imaginatif qu'un Ponson ou qu'un Paulhan; puis,
surtout, il y assouvissait, jusqu'a plus soif, un instinct aussi
constant qu'infantin (ou qu'infantil): son gout, son amour, sa
passion pour l'accumulation, pour la saturation, pour
l'imitation, pour la traduction, pour l'automatisation (Perec,
1969, p. 310) (3).
Como o epilogo do livro, toda a narrativa que o precede e escrita
sem a letra E, a mais frequente do idioma frances, tal qual o A seria em
nossa lingua. No caso de um romance de mais de 300 paginas, como La
disparition, uma restricao formal dessa natureza obriga o autor a uma
serie de torneios verbais para dar conta do desafio, como tortura que
obriga o corpo do texto a posicoes insustentaveis, ainda que estas
possam conduzir a um gozo sadico. Tal interpretacao entre a dor e o
prazer e confirmada, no post-scriptum supracitado, por vocabulos como
ardu, biscornu e satisfaisant (respectivamente, arduo, bizarro e
satisfatorio), atribuidos ao processo de construcao do romance.
Desse modo, em La disparition, a ocultacao do grafema e mais que
jogo: e delito de usurpacao e sevicia verbal, uma vez que tanto o
protagonista, sequestrado no inicio do relato, quanto a mais comum letra
do frances, extraida com corte preciso, sao surrupiados ao romance, que
se contorce para falar e gozar em ausencia. No presente artigo,
pretende-se, pois, indagar como a falta instituinte no enunciado e na
enunciacao de La disparition pode fornecer subsidios para uma reflexao
da escrita literaria como crime contra o sistema linguistico,
violentando toda a possibilidade de significacao no seio do texto.
A falta: uma violencia estrutural
La disparition e a historia de uma serie de desaparecimentos,
constelados em torno do sumico de seu protagonista, Anton Voyl, que
padece de uma crise existencial, defrontado com um vazio que nao
consegue nomear, como um signo que lhe escapa da garganta e lhe impede
de falar sobre sua dor. Em angustia diante dessa lacuna, o protagonista
escreve um diario, que, na narrativa policial, funciona como primeira
pista para investigacao do crime de seu desaparecimento.
Il a disparu. Qui a disparu? Quoi?
Il y a (il y avait, il y aurait, il pourrait y avoir) un motif tapi
dans mon tapis, mais, plus qu'un motif : un savoir, un pouvoir.
Imago dans mon tapis.
[...] L'on voudrait un mot, un nom; l'on voudrait rugir:
voila la solution, voila d'ou naquit mon tracas. L'on voudrait
pouvoir bondir, sortir du sibyllin, du charabia confus, du mot a mot
gargouillis. Mais l'on n'a plus aucun choix : il faut
approfondir jusqu'au bout la vision.
L'on voudrait saisir un point initial : mais tout a l'air
si flou, si lointain ... (Perec, 1969, p. 41-42) (4).
Neste excerto do diario, Voyl se lanca no vortice de suas duvidas,
diante de uma vacuidade inapreensivel. Usurpado um grafema de forma
violenta ao texto, ou uma suposta completude a condicao humana, resta
apenas em seu lugar uma lacuna, fenda aberta violentamente na pagina
pela linguagem.
Em busca nao so de um referente sumido, mas mesmo do signo desse
sumico, Voyl reduplica e antecipa a historia de seu proprio
desaparecimento. Se a essa tecnica de insercao de uma narrativa dentro
da outra se convencionou chamar de mise en abime, a nocao de abismo aqui
ganha novas dimensoes, considerando que todo abismo e uma fenda
violentamente aberta em uma superficie por movimentos subterraneos da
crosta terrestre. Do mesmo modo, a narrativa que Voyl inicia em seu
diario revela uma lacuna no plano de expressao oriunda de uma falta mais
profunda, no plano do conteudo, como ferida no sistema semiotico do
romance. Este e produto de uma falta, em que todos os signos apontam
apenas para o signo (letra ou personagem) ausente, como no diario de
Voyl. Aqui, ao verbo disparaitre sao apostos sujeitos de valor semantico
indefinido, como os pronomes il, qui e quoi. Nao ha, pois, sequer como
nomear o que foi arrancado ao texto.
Uma narrativa policial sobre um desaparecimento misterioso, em que
o protagonista reflete sobre um vazio existencial, acaba, assim, por
ressignificar a propria nocao de falta, ratificando sua polissemia como
ausencia e infracao, ou a ausencia como produto de uma infracao. Sendo
esse o mote que desencadeia toda a narrativa, em que os demais
personagens se poem a busca de Anton Voyl, desaparecido como vitima de
um crime semiologico, o enunciado se revela uma reduplicacao da
enunciacao: Voyl e um lipograma em E de voyelle, 'vogal' em
frances. O desaparecimento do protagonista e, portanto, tambem o sumico
da vogal, constantemente sugerida ao longo do texto nas referencias ao
neografismo Voyl, a quem, porem, nao se pode trouver
('encontrar' ou 'trovar, cantar, enunciar', em
frances) (Jacques Lacan, 1998b), tal qual o E que sofre la disparition.
Escrito como delito, La disparition e usurpacao da lingua francesa
diante dos olhos do leitor: romance feito dos despojos de um codigo a
que se subtraiu algo. Vitimando o sistema linguistico frances em seu
proprio seio ao amputar-lhe sua mais frequente letra, Perec suscitou
opinioes reacionarias, temerosas dessa sublevacao semiologica. No
tribunal da critica literaria, procuradores do 'bom frances'
denunciaram a ambigua falta de La disparition, mais uma vez como
ausencia e transgressao, em discursos inflamados como este que segue,
ironizado em um ensaio de Perec:
As contraintes sao [...] aberracoes, monstruosidades patologicas da
linguagem e da escritura; as obras que elas suscitam nao tem direito ao
estatuto de obra: encarceradas, uma vez por todas e sem recurso, [...]
elas se mantem como monstros paraliterarios, dignos somente de uma
sintomatologia cuja enumeracao e classificacao organizem um dicionario
da loucura literaria (Perec, 1973, p. 75).
Tal fala, ao chamar de monstruosas as contraintes e as obras por
elas engendradas, repudia o carater violento e performativo da
linguagem--inerente a toda obra literaria--como se este fosse nocivo, e
nao o que faz da literatura justamente abertura e subversao semiotica.
Entretanto, traindo o intento de sua proposicao, a ambiguidade do termo
'monstro' abre um leque de significacoes que, em vez de
simplesmente pejorar a ecriture sous contrainte, revela a potencia que
reside em seu crime lipogramatico.
Se, por um lado, a palavra 'monstro' designa "[...]
uma coisa horrenda, pavorosa, excessivamente feia e/ou bizarra"
(Antonio Houaiss, 2001), sua etimologia, do latim monstrare, aponta para
aquilo que se revela ou mostra aos olhos do sujeito. Assim, mostrando-se
a medida que se esconde, um lipograma e na verdade uma metonimia da
propria lingua, que mata o real e esconde seu cadaver por tras de uma
camada fonica ou grafica, convertendo ausencia em presenca, silencio em
som. Nas palavras de Lacan (apud Nasio, 1993, p. 151), "[...] a
letra mata [...] o real que havia antes das palavras, antes da
linguagem".
Ao ocultar o signo revelando a escrita, ou revelar o crime
ocultando o cadaver--literatura como letra morta?--, um lipograma e um
exercicio do delito em que se busca o nao dito, o entredito e--por que
nao? --o interdito, como a hediondez da semiose que e preciso coibir.
Nesse sentido, cabe lembrar que a visao de lingua como sistema fascista
que apenas a linguagem literaria pode sublevar (Roland Barthes, 1994)
nao pode ser afastada da nocao de escrita como violencia e
performatividade, atuando no real a medida que (nao) enuncia a letra.
Esse jogo entre a opressao do sistema e o levante violento da
lingua por meio de uma operacao de corte pode ser entrevisto no prologo
de La disparition, em que os horrores de diferentes regimes de forca da
historia europeia sao fundidos em uma excruciante cena surrealista:
[...] on s'attaquait aux bambins qu'on faisait bouillir
dans un chaudron, aux savoyards qu'on brulait vifs, aux avocats
qu'on donnait aux lions, aux franciscains qu'on saignait a
blanc, aux dactylos qu'on gazait, aux mitrons qu'on
asphyxiait, aux clowns, aux garcons, aux putains, aux bougnats, aux
typos, aux tambours, aux syndics, aux Mussi-pontins, aux paysans, aux
marins, aux milords, aux blousons noirs, aux cyrards.
On pilait, on violait, on mutilait. Mais il y avait pis: on
avilissait, on trahissait, on dissimulait. Nul n'avait plus jamais
un air confiant vis-a-vis d'autrui : chacun haissait son prochain
(Perec, 1969, p. 14) (5).
Tal prologo descreve um cronotopo em que nao se desenrola a
narrativa de La disparition; em vez disso, o efeito dessa colagem
surrealista e de ressignificacao da narrativa de Voyl, que se lhe
justapoe no capitulo 1. Assim, Perec define um modus legendi de seu
romance policial, em que a escrita e a violencia, como origem de todo
traco--corte ou escalavradura sobre uma superficie (Jacques Derrida,
2008)--, sao indissociaveis. A sobreposicao de imagens violentas e
belicas da Antiguidade Greco-Romana (donnait aux lions--dados aos
leoes), da Idade Media (brulait vifs--queimados vivos), da Primeira
Guerra Mundial (blousons noirs--camisas negras) e da Segunda Guerra
Mundial (gazait--mortos a gas) se mescla a substantivos do campo da
escrita, como dactylos e typos (datilografos e tipografos,
respectivamente). Essa combinacao entre golpe e escrita, crime e
grafema, define o diapasao de leitura para o romance, que se abre com um
agressivo talho.
Para tanto, Perec redige seu livro como latrocinio, em que uma
letra faltante e roubada ao idioma diante dos olhos do
leitor-testemunha, que nada pode fazer senao procura-la em vao, para
encontra-la apenas no nome do autor, estampado na capa. Tal expediente
de ocultar o produto do roubo no local mais evidente--como no proprio
nome do criminoso, repetindo-se quatro vezes--esta tambem presente no
conto A carta roubada (Poe, 1981), traduzido para o frances por
Baudelaire como La lettre volee.
Se a homonimia francesa entre lettre ('letra') e lettre
('carta') ja torna a semelhanca entre La disparition e 'A
carta roubada' significativa, esse procedimento e ainda mais
intenso, na medida em que o narrador do romance de Perec faz referencia
direta ao conto policial norte-americano. Nessa operacao intertextual, o
texto de Poe torna-se tema de uma noticia de jornal com que Voyl se
depara antes de sumir, a qual servira de pista para a investigacao de
seu desaparecimento. Nessa noticia, reproduz-se o enredo do conto de
Poe, em que, depois de muitos esforcos vaos das forcas policiais, o
detetive Dupin encontrou a carta subtraida a rainha, procurando-a no
lugar mais obvio possivel: o porta-cartas do suspeito, o ministro D. De
maneira analoga, todo um romance escrito ocultando a letra E faz com que
o leitor a veja, mas perca-a o tempo inteiro, instalada como silencio e
possibilidade na obviedade da pagina.
Tal jogo de esconder e revelar, constantemente revisitado na fala
do narrador e dos personagens, como em "[...] tout a la fois
montrait mais taisait, signifiait mais masquait" (simultaneamente
mostrava mas calava, significava mas mascarava) (Perec, 1969, p. 111), e
um procedimento formal que, a dimensao do crime e da violencia
enunciativa, acrescenta o carater da perversao sexual do voyeurismo do
leitor (Barthes, 2006). Como mais um procedimento subversivo, a escrita
de La disparition lanca-se como tremeluzencia de significados e
significantes, apenas entrevistos e sugeridos, mas nunca finalmente
captados por aquele que le, ainda que de olhos fixos no corpo do texto.
A esse respeito, e elucidativa a fala de Barthes sobre o strip-tease da
bailarina, em que
[...] o lugar mais erotico de um corpo nao e la onde o vestuario se
entreabre? Na perversao (que e o regime do prazer textual) nao ha
"zonas erogenas" (expressao alias bastante importuna); e a
intermitencia, como o disse muito bem a psicanalise, que e erotica: a da
pele que cintila entre duas pecas (as calcas e a malha), entre duas
bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); e essa cintilacao mesma
que seduz, ou ainda: a encenacao de um aparecimentodesaparecimento
(Barthes, 2006, p. 15).
Como transgressao e intermitencia, a narrativa que se despe diante
do leitor mantem sempre algo escondido e excitante, que potencializa a
etimologia de 'obsceno' como o que esta 'fora da
cena', tal qual a genitalia da bailarina despida ou o grafema nunca
recuperado na excitacao do crime. Dentro e fora, aparente e invisivel, o
chiaroscuro da letra roubada opera como dijferance no ambito do texto e
sua semiose, desestabilizando mesmo os processos primevos de producao de
sentidos.
A esse respeito, e interessante notar como tambem a distincao entre
difference e dijferance (Derrida, 1972) so pode ser vista como
alternancia e tremeluzencia, tal qual o sexo no strip-tease relatado por
Barthes e o E em La disparition. Como figuracao na ausencia, a letra E
se instala na forma de lacuna no romance de Perec e na formula
derridiana da differ/nce, que, no silencio do talho, contem uma
violencia semiotica diferinte e diferida, ferida que esvai sentidos sem
jamais cicatrizar. Assim como o grafema ausente nao pode ser ouvido em
La disparition, o roubo do E e sua permuta por A sao sempre inaudiveis
no par difference/differance.
Crime silencioso, a dijferance, como deslizamento ininterrupto dos
significantes, violenta a lingua, na medida em que denuncia a
impossibilidade de uma interpretacao pacifica, adiando, de forma
angustiante, o sentido para um ponto intangivel. Semelhante desassossego
desestabiliza Voyl diante da lacuna irrecuperavel, conforme se percebe
no excerto a seguir:
II frissona sans draps, il transpira sous un plaid, il compara
l'alfa au kapok. Il coucha assis, accroupi, a califourchon; il
consulta un fakir qui lui proposa son grabat a clous, puis un gourou qui
lui ordona la position yoga: son avant-bras droit comprimant
l'occiput, il joignit son talon a sa main.
Mais tout s'affirmait vain. Il n'y arrivait pas. Il
croyait s'assoupir, mais ca fondait sur lui, dans lui, ca
bourdonnait tout autour. Ca lui opprimait. Ca l'asphyxiait (Perec,
1969, p. 22) (6).
Angustiado com o zumbido de um som ou letra que nao pode enunciar,
o protagonista se lanca, cada vez mais fundo, em um abismo para tentar
preencher o vazio que o oprime e asfixia, agindo justamente no
cruzamento entre o sopro e a voz. Na verdade, sendo a dijferance uma
dupla acao de diferir--como distinguir e adiar--, os sentidos do romance
de Perec sao sempre postergados na cadeia significante, em uma
empreitada que
[...] trata [...] sempre da forca diferencial, da diferenca como
diferenca de forca, da forca como dijjerance ou forca de dijjerance (a
dijjerance e uma forca diferida-diferinte); trata-se sempre da relacao
entre a forca e a forma, entre a forca e a significacao; trata-se sempre
de forca "performativa", forca ilocucionaria ou perlocutoria,
forca persuasiva e de retorica (Derrida, 2010, p. 11).
No ato do crime perlocutorio--performatico e fonetico, como na
teoria politica e linguistica dos Atos de fala, em que dizer e sempre
fazer (John Langshaw Austin, 1962)--, La disparition revela a
precariedade de toda significacao, violando inclusive as fronteiras do
signo concebido como unidade independente e dotada de sentido. O que o
narrador de Perec revela, em dois paragrafos contundentes do ponto de
vista da narrativa e da Teoria Literaria, e a impossibilidade, enfim, de
chegar a um significado final, projeto opressor de todo poder.
Nous avancions pourtant, nous nous rapprochions a tout instant du
point final, car il fallait qu'il y ait un point final. Parfois,
nous avons cru savoir: il y avait toujours un 'ca' pour
garantir un 'Quoi?', un 'jadis', un
'aujourd'hui', un 'toujours', justifiant un
'Quand?", un 'car', donnant la raison d'un
'Pourquoi?'.
Mais sous nos solutions transparaissait toujours l'illusion
d'un savoir total qui n'appartint jamais a aucun parmi nous,
ni aux protagons, ni au scrivain, ni a moi qui fus son loyal proconsul,
nous condamnant ainsi a discourir sans fin, nourrissant la narration,
ourdissant son fil idiot, grossissant son vain charabia, sans jamais
aboutir a l'insultant point cardinal, l'horizon,
l'infini, ou tout paraissait s'unir, ou paraissait
s'offrir la solution (Perec, 1969, p. 304) (7).
Ao chamar a atencao para as relacoes sintaticas que ligam
expressoes pronominais e adverbiais no primeiro paragrafo desse excerto,
sob a forma de perguntas e respostas, o narrador destaca o valor de
sinal de cada palavra em seu texto, apontando para outra, que remete a
uma terceira, referindo-se a uma quarta, em um processo infinito de
differance, adiamento da significacao. Se, por fim, percebe-se que todo
diferir de sentidos--como distincao ou adiamento--so se da a partir de
uma lacuna, seja ela um espaco entre os elementos distintos ou um hiato
temporal entre significados adiados, o carater de ausencia do lipograma
de La disparition potencializa o crime que a differance perpetra contra
toda pretensa estabilidade semantica.
De maneira analoga, uma rapida visita ao sumario do livro defronta
mais uma vez o leitor com as evidencias do delito linguistico, vol de la
lettre, em La disparition: o livro e dividido em vinte e seis capitulos,
mas nao ha um capitulo de numero cinco; da mesma forma, os capitulos sao
agrupados em seis blocos, mas nao ha um bloco de numero dois. Sendo a
letra E a quinta do alfabeto frances, com vinte e seis letras, e a
segunda vogal, na serie francesa de seis (o Y, nas escolas francesas, e
ensinado muitas vezes como uma letra vogal), a macroestrutura do romance
debocha do leitor testemunha, incapaz de recuperar o produto do roubo
silencioso.
Esse projeto violento de desestabilizacao das certezas e das
concepcoes de enunciacao e narracao--como contar a historia de um
protagonista ausente, com uma letra ausente, se o proprio sentido esta
ausente?--esta contraditoriamente presente em toda a tessitura de La
disparition, uma vez que o conceito de escrita e posto em xeque nessa
narrativa, como se percebe no trecho a seguir:
Il s'agissait d'un carton a kaolin, noirci a
l'indian ink, qu'un artisan tatillon avait blanchi au grattoir
(ou plutot au vaccino-stylo) [...]. On avait ainsi produit, par
disparition du noir, un croquis au fini parfait qui imitait
l'inscription au bambou qu'on voit parfois au bas d'un
lavis japonais (Perec, 1969, p. 114) (8).
Em lugar de uma serie de tracos negros que maculariam a folha
branca, imagem comum na literatura ocidental para se referir a
materialidade da escrita, o protagonista do romance de Perec deixa para
os amigos antes de desaparecer uma mensagem cifrada, escrita a partir da
raspagem a cinzel de uma folha negra. Concebida como escoriacao de uma
tinta, nao como marcacao de uma pagina, a propria escrita torna-se,
entao, uma disparition, que deixa entrever o que esta dissimulado por
tras do nanquim ou da voz.
Assim como o escultor tira da pedra uma estatua que ja estava ali
dentro, na forma de potencia, o romance de Perec arranca da linguagem,
raspando-lhe a tinta ou uma letra, um texto que ja ali estava, como
presenca de uma ausencia. Nesse sentido, note-se que
[...] so a ausencia pura--nao a ausencia disto ou daquilo--mas a
ausencia de tudo em que se anuncia toda a presenca--pode inspirar, ou
por outras palavras trabalhar, e depois fazer trabalhar. O livro puro
esta naturalmente virado para o oriente dessa ausencia que e, aquem e
alem da genialidade de toda a riqueza, o seu conteudo proprio e
primeiro. O livro puro, o livro em si, deve ser, pelo que nele e mais
insubstituivel, esse "livro sobre nada" com que sonhava
Flaubert. Sonho em negativo, em cinza, origem do Livro total que foi a
obsessao de outras imaginacoes. Esta vacancia como situacao da
literatura e o que a critica deve reconhecer como a especificidade do
seu objeto, em torno da qual sempre se fala. O seu proprio objeto, ja
que o nada nao e objeto, e antes a maneira como esse nada em si se
determina ao perder-se (Derrida, 2009, p. 9).
Sonhado em negativo, esse livro puro e o vazio da escrita, presente
como potencia em todo texto, fendido a cada intervalo entre duas letras,
duas palavras. Como marca d'agua, assombracao na folha de papel nem
virgem nem preenchida, o negativo da escrita e cinza, segundo Derrida,
devir do branco dentro do preto, no qual se abrem as feridas da escrita.
Assim como e o silencio, que permite distinguir os intervalos entre as
notas, e portanto a cadeia melodica, e o nada na folha que significa
(que atribui significado) ao simbolo grafico, tracado a partir da cisao
do entorno e da delimitacao de suas escoriacoes.
Construido como vacancia raspada numa superficie e discorrendo
sobre essa mesma vacancia, La disparition e, entao, um exercicio de
Teoria Literaria no ato da propria escrita, inscrevendo-se
criminosamente como um vazio e falando sobre esse vazio.
Se a escritura e inaugural, nao e por ela criar, mas por uma certa
liberdade absoluta de dizer, de fazer surgir o ja la no seu signo, de
proceder aos seus augurios. Liberdade de resposta que reconhece como
unico horizonte o mundo-historia e a palavra que so pode dizer que: o
ser sempre comecou ja. Criar e revelar, diz Rousset (Derrida, 2009, p.
15).
Violentando nossa compreensao convencional de como se inscrevem os
sentidos, a escritura de Perec se instala como escalavradura no papel,
esfolando a pagina negra para fazer surgir entre os vazios, sintaxe do
branco, o 'ja la no seu signo'. Porem, por raspagem--da tinta,
da voz, da letra E--, La disparition e o produto de uma escrita em que o
ser 'sempre comecou ja', paradoxo temporal que revela uma
aporia de toda narrativa: como narrar em tempos preteritos a historia de
algo ou alguem que surge no proprio ato da escrita como escoriacao? Em
outras palavras: o sentido existiria antes da inscricao do texto ou lhe
seria posterior?
Embora essa questao da premencia do significante ou do significado
alimente interminaveis contendas entre filosofos da linguagem, teoricos
da literatura, psicanalistas e comunicologos, a posicao de Perec e clara
em seu romance, como se pode notar na seguinte fala de Voyl:
Nous avons du travail pour au moins jusqu'au matin (on allait
alors sur minuit): la signification n'apparaitra qu'a la fin,
quand nous aurons garanti l'articulation du parcours qui nous
conduira d'un subscrit (l'inscription qu'on voit hic
& nunc) a un transcrit, puis a un traduit. [...] Il y aura donc
d'abord un pouvoir du Logos, un 'ca' parlant dont nous
connaitrons aussitot l'accablant poids sans pouvoir approfondir sa
signification (Perec, 1969, p. 194) (9).
Mais uma vez, a escrita do romance se instala como agressao as
certezas e ao senso comum acerca do funcionamento da linguagem, segundo
o qual a mente humana processaria um sentido e, posteriormente, faria
uma selecao de vocabulos e arranjos sintaticos para dar forma a essa
significacao anterior. Em oposicao a isso, Voyl afirma que, muito antes
da producao de qualquer sentido, dao-se processos de articulacao,
subscricao, inscricao, transcricao e traducao, fenomenos estruturais de
toda cadeia de significantes, que, para Lacan, preexistiriam mesmo ao
sujeito. Nesse sentido, e interessante ainda a mencao do personagem a um
'ca parlant', de significacao final inapreensivel, que faz
remissao direta a frase lacaniana sobre o inconsciente e sua estrutura
como linguagem: 'ca parle'.
Outras referencias a psicanalise lacaniana sao recorrentes ao longo
do romance, seja na forma de parodias da teoria ou alusoes diretas ao
nome do discipulo frances de Freud. Portanto, nao seria exagerado pensar
o processo de construcao de La disparition a luz das concepcoes de
escrita, linguagem e inconsciente de Lacan. O proprio Voyl, em um de
seus escritos sobre Edipo e a Esfinge, diz que sua personagem, Aignan,
"[...] connaissait Lacan mot a mot" (conhecia Lacan tintim por
tintim) (Perec, 1969, p. 43), o que lhe permitiria, inclusive,
assassinar o monstro fabuloso, metafora de todo delito em que goza o
leitor no contato com o vazio do texto.
Nesse diapasao, e interessante voltar a ideia de que, assim como a
tinta negra raspada da lugar ao branco, que atribui valor de signo ao
restante de nanquim na pagina, os simbolos pretos do papel atribuem
sentido aos vazios. Essa visao dialetica sobre o silencio e a voz na
estruturacao do texto, que permeia todo o romance de Perec, esta na base
da compreensao lacaniana da Letra, conceito que se confunde com o fonema
na psicanalise francesa, como significante absoluto que preexiste ao
sujeito e o inscreve no simbolico (Lacan, 1998a). Como marca minima com
valor distintivo na linguagem, a letra-fonema, metonimia da lingua, e a
lettre que forma l'etre, a partir do discurso de 1'autre.
Assim, se todo discurso do sujeito, para Lacan, vem do outro, inclusive
o inconsciente, e nas fendas do ser que penetra o outro, e na ausencia
do outro que fala o ser, tal qual o nanquim e a celulose imaculada
recortam-se mutuamente.
[...] de modo que lettre, na homofonia, esta marcando um fonema
diferencial, que desloca o sujeito desde a letra ao ser e do ser ao
outro, verificando-se uma solidariedade intrinseca, [...] entre a ordem
literal e a ordem da letra, a ordem do ser e a ordem do outro como
alteridade (Vallejo & Magalhaes, 2008, p. 81).
Desse modo, tal qual a escrita que Voyl concebe como raspagem do
papel, a ausencia da letra E constitui o romance tambem a partir de uma
alteridade, pois todo o livro e composto como um negativo: aquilo que o
E nao e, contendo-o em potencia e silencio, porem. Nessa medida, pode-se
dizer que e a differance entre a lingua e o lipograma o que se permite
entrever nessa alteridade, de modo que o grafema, embora barrado, esteja
presente na sua negatividade, diferido ad infinitum, como no trecho a
seguir:
Ottaviani voulut ravoir la communication. Savorgnan la lui donna.
Il la lut, pour lui, a mi-voix. On aurait dit qu'il n'avait
pas compris quand il avait lu d'abord.
--Alors, Ottaviani, ironisa Swann, dis-nous si tu saisis?
Ottaviani paraissait souffrir. Il s'agitait sur son pouf. Il
suait. Il transpirait, ahanant.
[...]
S'affairant, Ottavio Otaviani murmura d'un ton mourant:
--Mais il n'y a pas non plus d' ... (Perec, 1969, p. 297)
(10).
Nessa passagem, as personagens tentam decifrar mais uma das
diversas pistas e mensagens cifradas que Voyl deixou para tras antes de
desaparecer, como esperado em qualquer romance policial. Contudo,
confrontado com a necessidade de dizer o que nao pode ser dito--o signo
que falta nos escritos de Voyl e no proprio livro--, o personagem de
Ottaviani nao consegue enunciar a lettre instituinte, que funda o
romance. De maneira analoga, e inefavel a letra-fonema que funda
l'etre no universo simbolico--ou as personagens no regime
textual--, uma vez que um sujeito jamais pode vocalizar o corte que o
instaura na linguagem. Diante dessa aporia, a voz de Ottaviani se revela
d'un ton mourant, falecendo na pronuncia de um silencio, marcado
graficamente na pagina com um espaco em branco, jamais preenchido, logo
ao lado da apostrofe, como grito abafado de mais uma vitima do crime da
escrita. Assim, a letra E, ainda que em sua ausencia, e marcada
fisicamente por um vazio na pagina de La disparition: materialismo da
palavra, materialisme du mot, moterialisme (Lacan, 1976), em que a
palavra--ou seu silencio--funda o real e afeta o corpo, cadaver da Letra
que mata o real.
Essa presenca da falta, letra ou vocabulo ausente, confirmando a
escritura em negativo de La disparition, so ganha sentido em contraste
com a lingua francesa 'completa', em uma differance que
permite entrever o rendimento poetico e simbolico do lipograma. Afinal,
so no conhecimento do codigo e da totalidade de seus elementos
constituintes pode-se perceber que a lingua sobrevive a sua mutilacao,
falando por uma nao voz, como na liaison jamais completa da fala de
Ottaviani: il n'y a non plus d'.
Para potencializar esse efeito contrastivo, eloquente em seu
mutismo, Perec faz, em seu livro, constantes referencias intertextuais a
textos basilares da cultura francesa, escritos originalmente com todas
as letras do alfabeto latino, a fim de violenta-los com sua escrita
lipogramatica. Esses delitos artisticos acabam se revelando, portanto,
transgressoes reduplicadas, uma vez que, alem de perpetrar o roubo do
texto alheio, o narrador de La disparition usurpa-lhes tambem o grafema
E. Entre os textos parodiados dessa forma, destacam-se seis poemas que
Voyl teria deixado para tras, como pistas do seu desaparecimento: Bris
marin, de Mallarmus (subversao de Brise marine, de Mallarme); Booz
assoupi, de Hugo Victor (lipograma de Booz endormi, de Victor Hugo);
Sois soumis: mon chagrin, Accords e Nos chats, do fils adoptif du
Commandant Aupick (reescrituras de Recueillement, Correspondances e Les
chats, de Baudelaire); e Vocalisations, de Arthur Rimbaud (parodia de
Voyelles, do autor homonimo) (Perec, 1969).
Sendo estas evidencias do crime contra Voyl constituidas elas
mesmas como crimes contra a lingua e a literatura francesas, amputadas
de uma letra, procede-se aqui a um cotejo mais detido do poema Voyelles,
de Rimbaud, e sua versao lipogramatica, Vocalisations (11), que carregam
no titulo vestigios da vogal roubada.
No primeiro verso do celebre soneto de Rimbaud, enumeram-se as
vogais, as quais se atribuem distintas cores, segundo o gosto simbolista
pelas sinestesias: "A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu:
voyelles" (Rimbaud, 1999, p. 279), processo que se repete, mas de
forma ardilosa, em Vocalisations, dadas as minimas alteracoes que
subvertem o original, assim reescrito: "A noir (Un blanc), I roux,
U safran, O azur:" (Perec, 1969, p. 125);
Assim, no poema que Voyl deixa para os amigos, alem das obvias
alteracoes na selecao vocabular das cores para preservar o lipograma,
pode-se observar uma engenhosa, mas discreta permuta: A noir, indicando
originalmente que a letra A seria negra para o eu-lirico, torna-se A
noir, locucao adverbial que sugere as condicoes em que se da a escritura
do poema, e mesmo de La disparition. Em seguida a essa expressao de
modo, E blanc foi substituido por Un blanc, ou seja, nao por uma letra
pintada de branco, mas por um branco substantivado, lacuna posta mesmo
entre parenteses, para ratificar seu carater de suspensao. Assim, A noir
(Un blanc), elementos nao separados por qualquer virgula no texto de
Perec, ganham a dimensao de uma lacuna, um branco, escrita em negro ou
as escuras, impedindo a visao do leitor, mas sugerindo uma construcao
dialetica de sentidos entre o claro da pagina e o escuro da tinta, como
se o vazio atribuisse sentido ao preenchido e vice-versa. Tal
interpretacao ratifica a leitura anterior da passagem em que Voyl
escreve sua mensagem, raspando uma folha preta, atentando contra os
conceitos tradicionais de escritura.
Ademais, outros truques graficos sao usados no inicio do segundo
quarteto, que se refere, no texto original, a letra E: "Golfes
d'ombre; E, candeurs des vapeurs et des tentes,/ Lances des
glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles;" (Rimbaud,
1999, p. 279), cuja parodia lipogramatica culmina em "Caps obscurs;
qui, cristal du brouillard ou du Khan,/ Harpons du fjord hautain, Rois
Blancs, frissons d'anis?" (Perec, 1969, p. 125). A troca de
golfes ('golfos') por caps ('cabos', no sentido
geografico) funciona como uma antonimia perfeita, em que uma porcao de
agua entre terras e trocada por uma massa de terra entre aguas,
indicando a subversao por completo que se opera nos sentidos do texto.
Alem disso, a substituicao da letra E pelo pronome qui acarreta uma
indeterminacao no poema, pois todas as metaforas que se seguem passam a
ser atribuidas a uma lacuna de sentido, preenchida apenas aparentemente
por essa proforma pronominal vazia. Por fim, tal nocao de labilidade,
errancia e precariedade da significacao e ratificada pela permuta do
ponto e virgula, no poema original, por um ponto de interrogacao, o qual
indaga, mais do que a validade das alegorias e sinestesias em si, a que
as atribuir nesses dois versos. A um vazio? A qui?
Letra ausente, essa impossibilidade de redigir um poema completo,
que resvala sempre em um abismo branco, fica clara no ultimo verso do
soneto original, "--O l'Omega, rayon violet de Ses Yeux!"
(Rimbaud, 1999, p. 279), quando transformado em "--O
l'omicron, rayon violin dans son Voir!" (Perec, 1969, p. 125).
Ao passo que o poema original se iniciava com o A e terminava com o
omega, sugerindo uma completude de alfa a omega, do inicio ao fim, a
versao de Perec termina em omicron, nao cobrindo todo o alfabeto grego e
deixando, portanto, um talho aberto, jamais cicatrizado ou conhecido por
son Voir.
Por uma relacao de encaixamento do tipo mise-en-abime, ve-se que
tal falta impede a completude da escrita tambem do romance de Perec,
resvalando sempre em uma impossibilidade de dizer. Tentando enunciar
algo que a todo instante lhe escapa, o narrador de La disparition
lanca-se em uma empreitada identica a do protagonista Voyl e a do
eu-lirico de Vocalisations, buscando dizer um nome, uma palavra, que
aplaque uma dor ou preencha uma lacuna, como se percebe a seguir.
Il transpirait. Il hurlait, mais nul n'accourait a lui. Il
avait trop chaud. Sa main aux trois doigts griffus battait l'air.
Mais tout autour, dans la maison, aucun bruit, sinon, tout au plus,
l'insignifiant clapotis d'un lavabo qui fuyait. Qui
connaissait sa situation? Qui saurait l'affranchir,
aujourd'hui, a jamais? N'y avaitil pas un mot dont la
prononciation suffirait a adoucir son mal? Il manquait d'air.
L'asphyxiation montait pas a pas. Son poumon lui brulait. Un mal
sournois sciait son larynx. Il voulut rugir un S.O.S. Sa voix chuinta un
sanglot plaintif. Un rictus maladif marquait son pli labial, striait son
front, son cou. Il vagissait (Perec, 1969, p. 30) (12).
Essa cena excruciante refere-se aos momentos finais da personagem
de Voyl, antes de seu sumico. Tamanha dor lancinante, que lhe percorre o
corpo e lhe usurpa a voz, teve inicio quando o protagonista entreviu, em
seu tapete, um padrao na estamparia, semelhante a uma letra, que ele nao
foi capaz de compreender no momento, mas que jamais deixou de
assombra-lo. Tomado por um imperativo de lembrar esse simbolo, essa
palavra, essa cena, Voyl deseja, por outro lado, esquece-la, sob pena de
perecer, caso nao o consiga. No entanto, o crime da escrita e sempre
inescapavel: Voyl da seu ultimo suspiro ao entrever o formato da letra E
na padronagem de seu tapete, gozo sadico final do sujeito, que
finalmente se defronta com seu vazio, seja na superficie textual do
tapete ou da pagina do livro.
Consideracoes finais
Uma expressao frequentemente repetida pelo narrador de La
disparition define bem essa nocao de escrita como crime e falta que
estrutura o romance: "un bourdon au vol lourd" (Perec, 1969,
p. 19). Tal sintagma deve ser entendido no carater erratico e
indecidivel de seus sentidos, transgressao semiotica cara ao literario.
Se, em um primeiro nivel de leitura, tal construcao poderia ser
traduzida como "um inseto em voo denso/pesado", o qual
perturba as noites insones do protagonista, bourdon tambem significa
'falha de editor que, por acidente, omite alguma palavra'
(Paul Robert, Josette Rey-Debove, & Alain Rey, 2008), ao passo que
vol tambem pode ser traduzido como 'roubo'. Assim, a ideia de
uma letra saqueada ao romance, soma-se a de um grafema que se perde em
uma polissemica falta do editor, desestabilizando todo o sistema de
coordenadas da lingua. Desprovido, entao, de um grafema castracao sempre
ja na linguagem--, o idioma passa a faltar a si mesmo, em uma insidiosa
amputacao, que zumbe baixa e constantemente nas noites em claro de Voyl.
Como ausencia, produto prototipico do assassinato e do latrocinio,
a falta do grafema e do protagonista e crime ou monstruosidade
literaria. Porem, o monstro lipogramatico mostra ao ocultar,
embaralhando e trapaceando a semiotica do romance, que tortura a lingua
francesa a contorcoes insustentaveis, a fim de ocultar a letra que mais
se lhe ressalta.
Nesse caso, as lacunas no plano da expressao e do conteudo em La
disparition sao mais que ausencias de signo; sao ausencias como signos,
signos de ausencia, anunciando a vacuidade ultima, morte a que destinam
Voyl e os leitores do texto, que tambem um dia sucumbirao a falta
violentamente aberta pela linguagem. Para tras, fica apenas o texto
literario como cadaver, 'grafema testamentario', de um real
que se mata a cada instante por tras da letra.
Doi: 10.4025/actascilangcult.v38i1.24590
Referencias
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Oxford University Press.
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Barthes, R. (2006). O prazer do texto. Sao Paulo, SP: Perspectiva.
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Derrida, J. (2008). Gramatologia. Sao Paulo, SP: Perspectiva.
Derrida, J. (2009). A escritura e a diferenca. Sao Paulo, SP:
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Derrida, J. (2010). Forca de lei. Sao Paulo, SP: Martins Fontes.
Houaiss, A. (2001). Dicionario Eletronico Houaiss da Lingua
Portuguesa. (CD-ROM) Sao Paulo, SP: Objetiva.
Lacan, J. (1976). L'insu que sait de l'une-bevue
s'aille a mourre. Seminaire XXIV. Paris, FR: Seuil.
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desde Freud. Escritos (p. 493-528). Sao Paulo, SP: Perspectiva.
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Nasio, J. D. (1973). Cinco licoes sobre a teoria de Jacques Lacan.
Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
Perec, G. (1969). La disparition. Paris, FR: Denoel.
Perec, G. (1973). OuLiPo--La litterature potentielle Paris, FR:
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Poe, E. A. (1981). Historias extraordinarias. Sao Paulo, SP: Victor
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Rimbaud, A. (1999). Oeuvres completes: poesie, prose et
correspondance. Paris, FR: La pochotheque.
Robert, P., Rey-Debove, J., & Rey, A. (2008). Le nouveau Petit
Robert de la langue francaise. Paris, FR: Le Robert.
Vallejo, A. & Magalhaes, L. C. (2008). Lacan: operadores da
leitura. Sao Paulo, SP: Perspectiva.
Received on August 3, 2014.
Accepted on October 26, 2015.
Anexo
Voyelles e Vocalisations
Transcrevem-se abaixo, para fins de cotejo, o soneto Voyelles, de
Arthur Rimbaud, e sua versao lipogramatica, e autoria de Perec.
Voyelles
A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles, Je dirai
quelque jour vos naissances latentes: A, noir corset velu des mouches
eclatantes Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,
Golfes d'ombre; E, candeur des vapeurs et des tentes, Lances
des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles; I, pourpres,
sang crache, rire des levres belles Dans la colere ou les ivresses
penitentes;
U, cycles, vibrements divins des mers virides, Paix des patis semes
d'animaux, paix des rides Que l'alchimie imprime aux grands
fronts studieux;
O, supreme Clairon plein des strideurs etranges, Silence traverses
des Mondes et des Anges: --O l'Omega, rayon violet de Ses Yeux
!--(Rimbaud, 1999, p. 279)
Vocalisations
A noir, (Un blanc), I roux, U safran, O azur: Nous saurons au jour
dit ta vocalisation: A, noir carcan poilu d'un scintillant morpion
Qui bombinait autour d'un nidoral impur,
Caps obscurs; qui, cristal du brouillard ou du Khan, Harpons du
fjord hautain, Rois Blancs, frissons d'anis? I, carmins, sang vomi,
riant ainsi qu'un lis Dans un courroux ou dans un alcool
mortifiant;
U, scintillations, rond divins du flot marin, Paix du patis tissu
d'animaux, paix du fin Sillon qu'un fol savoir aux grands
fronts imprima;
O, finitif clairon aux accords d'aiguisoir, Soupirs ahurissant
Nadir ou Nirvana: O l'omicron, rayon violin dans son Voir! (Perec,
1969, p. 125)
Vinicius Carvalho Pereira
Universidade Federal de Mato Grosso, Av. Fernando Correa da Costa,
2367, 78060-900, Cuiaba, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail:
[email protected]
(1) Ouvroir de Litterature Potentielle, grupo fundado por Raymond
Queneau na Franca dos anos 60, voltado para jogos literarios a partir de
restricoes formais (contraintes).
(2) As citacoes retiradas de La disparition sao aqui traduzidas com
vistas a aumentar a legibilidade do artigo para o leitor sem
conhecimento de lingua francesa. Trata-se, portanto, de traducao livre,
com objetivos estritos, que nao visa a manter a estrutura grafematica do
romance. Sendo a obra construida em torno da ausencia de uma letra, toda
traducao culminaria na escritura de outro romance, que trairia o
original, quer no plano do conteudo, a fim de reproduzir a falta do
grafema E, quer no plano da expressao, se feita uma traducao literal.
(3) "Assim nascia, palavra a palavra, preto sobre o branco,
surgindo de uma investida tao ardua quanto parece insignificante para
quem le sem saber a solucao, um romance que, por mais bizarro que fosse,
imediatamente lhe pareceu sobretudo satisfatorio: em primeiro lugar, ele
que nao tinha um quilate de inspiracao (nao acreditava nem um pouco em
inspiracao!) se mostrava pelo menos tao imaginativo quanto um Ponson ou
um Paulhan; depois, ele saciava um instinto tao constante quanto pueril
(ou infantil): seu gosto, seu amor, sua paixao pela acumulacao, pela
saturacao, pela imitacao, pela traducao, pela automatizacao."
(4) "Ele desapareceu. Quem desapareceu? O que?
Ha (havia, haveria, poderia haver) um motivo oculto no meu tapete,
mas, mais que um motivo: um saber, um poder.
Imago em meu tapete.
[...]
Queria-se uma palavra, um nome; queria-se rugir: eis a solucao, eis
de onde nasceu meu tormento. Queria-se poder correr, sair do enigma, da
algaravia confusa, das palavras guturais. Mas nao se tinha mais nenhuma
escolha: e preciso aprofundar ate o fim a visao.
Queria-se alcancar um ponto inicial: mas tudo tem um ar tao
impreciso, tao distante ..."
(5) "[...] atacavam-se as criancas que se faziam ferver num
caldeirao, os saboianos que eram queimados vivos, os advogados que eram
dados aos leoes, os franciscanos que eram sangrados de perto, os
datilografos que eram mortos a gas, os aprendizes de padeiro que eram
asfixiados, os palhacos, os rapazes, as putas, os carvoeiros, os
tipografos, os tocadores de tambor, os representantes, os Mussi-pontins,
os campesinos, os marinheiros, os lordes, os camisas negras, os cadetes.
Esmagava-se, violava-se, mutilava-se. Mas havia pior: defraudava-se,
traia-se, dissimulava-se. Ninguem mais tinha um ar confiante cara a cara
com o outro: cada um odiava seu proximo."
(6) "Ele fremiu sem as cobertas, transpirou sob uma manta,
comparou o alfa a paina. Deitou-se sentado, agachado, escarranchado;
consultou um faquir que lhe ofereceu seu palete de pregos, pois um guru
lhe ordenou a posicao yoga: seu antebraco direito comprimindo a testa,
ele uniu seu calcanhar a mao.
Mas tudo se mostrava vao. Ele nao conseguia. Ele acreditava
adormecer, mas aquilo fazia pressao sobre ele, dentro dele, aquilo
agitava tudo ao redor. Oprimia-o. Asfixiava-o."
(7) "Nos avancavamos, porem, aproximavamo-nos a todo instante
do ponto final, pois era preciso haver um ponto final. Por vezes,
acreditamos saber: havia sempre um 'aquilo' para garantir um
'o que'?, um 'outrora', um 'hoje', um
'sempre', justificando um 'quando'?, um
'pois', dando a razao de um 'por que'?
Mas sob as nossas solucoes transparecia sempre a ilusao de um saber
total que nao pertenceu jamais a nenhum de nos, nem aos protagonistas,
nem ao escritor, nem a mim que fui seu proconsul leal, condenando-nos
assim a discorrer sem fim, nutrindo a narracao, urdindo seu fio idiota,
aumentando sua va algaravia, sem jamais chegar ao ofensivo ponto
cardinal, ao horizonte, ao infinito, onde tudo parecia se unir, onde
parecia se oferecer a solucao."
(8) "Tratava-se de um cartao de caulim, enegrecido a tinta
nanquim, que um artesao meticuloso havia embranquecido com um raspador
(ou mesmo com uma agulha de vacina) [...]. Havia-se assim produzido, por
desaparecimento do negro, um croqui ao fim perfeito que imitava a
inscricao em babu que se ve frequentemente sob um sumi-e japones."
(9) "Temos trabalho para pelo menos ate de manha (ja vai quase
meia-noite): a significacao so aparecera no fim, quando tivermos
garantido a articulacao do percurso que nos conduzira de um subscrito (a
inscricao que se ve aqui e agora) a um transcrito, depois a um
traduzido. [...] Havera entao de inicio um poder do Logos, um <<
isto >> que fala, do qual conheceremos imediatamente o peso
esmagador sem poder aprofundar sua significacao."
(10) "Ottaviani quis reaver a mensagem. Savorgnan deu-lha. Ele
a leu para si mesmo, a meia-voz. Dir-se-ia que ele nao compreendera de
imediato quando da leitura.
Entao, Ottaviani, ironizou. Swann, diga-nos se voce compreendeu.
Ottaviani parecia sofrer. Ele se agitava sobre seu pufe. Suava.
Transpirava, arquejante.
[...]
Agitando-se, Ottavio Otaviani murmurou em um tom moribundo:
Mas nao ha mais um ..."
(11) "Tanto o soneto de Rimbaud quanto sua versao
lipogramatica encontram-se anexos ao presente artigo, para fins de
comparacao."
(12) "Ele transpirava. Urrava, mas ninguem acorria a ele.
Estava com muito calor. Sua mao, com tres dedos em garra, golpeava o ar.
Mas em volta, na casa, nenhum ruido, senao o insignificante som da
descarga de um lavabo. Quem conhecia sua situacao? Quem saberia
liberta-lo, hoje, para sempre? Nao havia uma palavra cuja pronuncia
bastaria para abrandar seu mal? Faltava-lhe ar. A asfixia aumentava
passo a passo. Seu pulmao queimava. Um mal secreto serrava-lhe a
laringe. Ele queria rugir um S.O.S. Sua voz sussurrava um gemido
queixoso. Um esgar doente marcava sua dobra labial, enrugava sua testa,
seu pescoco. Ele chorava."