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文章基本信息

  • 标题:Autodiegese, ficcao e pacto: os livros pessoais de Graciliano Ramos e o conceito de autobiografia.
  • 作者:da Silva Amorim, Marcelo
  • 期刊名称:Hispanofila
  • 印刷版ISSN:0018-2206
  • 出版年度:2010
  • 期号:May
  • 语种:English
  • 出版社:University of North Carolina at Chapel Hill, Department of Romance Languages
  • 摘要:NESTE artigo, encontrar-se-a uma discussao que poe em paralelo as narrativas Memorias do carcere e Infancia, ressaltando os pontos em que elas se aproximam e se afastam com relacao a determinados aspectos constitutivos. Considerados pela critica como as duas obras confessionais de Graciliano Ramos, tais livros apresentam semelhancas e diferencas importantes que levam a questionar o proprio conceito do genero a que sao comumente associados. Essas narrativas serao confrontadas com a conhecida classificacao de Philippe Lejeune, que tentou estabelecer as bases teoricas para compreender-se o genero autobiografico. Elegeu-se Lejeune devido a natureza extremamente normativa de sua classificacao, embora tambem constem aqui as visoes de outros estudiosos do assunto e da teoria literaria em geral. Dessa forma, verificar-se-a em que medida, nos dois livros em questao, o leitor conseguira estabelecer relacoes de identidade entre autor, narrador e protagonista, o que e uma das exigencias apontadas por Lejeune para a definicao de autobiografia, e ate que ponto o leitor conseguira identificar a natureza de um pacto proposto pelas narrativas. Em suma, tentar-se-a explicar como Memorias do carcere e Infancia comportam-se diante da nocao que Lejeune propoe para autobiografia e como colocam em xeque alguns de seus conceitos.
  • 关键词:Autobiographical fiction;Literature

Autodiegese, ficcao e pacto: os livros pessoais de Graciliano Ramos e o conceito de autobiografia.


da Silva Amorim, Marcelo


NESTE artigo, encontrar-se-a uma discussao que poe em paralelo as narrativas Memorias do carcere e Infancia, ressaltando os pontos em que elas se aproximam e se afastam com relacao a determinados aspectos constitutivos. Considerados pela critica como as duas obras confessionais de Graciliano Ramos, tais livros apresentam semelhancas e diferencas importantes que levam a questionar o proprio conceito do genero a que sao comumente associados. Essas narrativas serao confrontadas com a conhecida classificacao de Philippe Lejeune, que tentou estabelecer as bases teoricas para compreender-se o genero autobiografico. Elegeu-se Lejeune devido a natureza extremamente normativa de sua classificacao, embora tambem constem aqui as visoes de outros estudiosos do assunto e da teoria literaria em geral. Dessa forma, verificar-se-a em que medida, nos dois livros em questao, o leitor conseguira estabelecer relacoes de identidade entre autor, narrador e protagonista, o que e uma das exigencias apontadas por Lejeune para a definicao de autobiografia, e ate que ponto o leitor conseguira identificar a natureza de um pacto proposto pelas narrativas. Em suma, tentar-se-a explicar como Memorias do carcere e Infancia comportam-se diante da nocao que Lejeune propoe para autobiografia e como colocam em xeque alguns de seus conceitos.

O leitor de Graciliano divisara, em varias de suas obras, uma narrativa confessional que se imiscui na fabulacao ficcional. A incerteza do leitor diante do discurso indefinivel, fora dos paradigmas de classificacao, levara a questionamentos apenas aparentemente ingenuos. Em Infancia, por exemplo, ele se indagara, em face de um protagonista sem nome, se nao e coincidencia demais que as aventuras relatadas pelo narrador sejam identicas, em muitos aspectos, a historia factual do proprio autor, ou que alguns dos personagens e eventos migrem ao longo de seus romances e contos. Os personagens parecem saltar da trama da prosa para a trama da vida real, e dali novamente para a ficcao, nao havendo como os aprisionar por muito tempo em uma das instancias.

Sua escrita parece propor a diminuicao da nitidez das linhas que tracam os limites entre o imaginario e o real. A derrocada gradual, mas jamais levada a cabo plenamente, dos muros dessa fronteira oferece uma interrogacao que faz centrar a atencao do leitor sobre a propria elaboracao da obra, sua materia, seu ponto de vista, sua dinamica. A escritura da obra propoe, e ensina, uma leitura que considere um territorio onde as leis do ficcional e do factual perdem sua hegemonia, tornam-se distensas, quase inocuas -- uma leitura que reclama a superacao da divisao de generos em campos opostos e incompativeis.

A obra de Graciliano e como um vetor cujo vertice aponta para um desfecho cada vez mais assumidamente pessoal quanto a forma. Conforme se trilha o caminho de volta, ao ponto de sua origem, porem, percebe-se que a forma e mais consequencia do que escolha: e um desdobramento natural de toda a trajetoria percorrida pelo desejo intimo do escritor de significar a si mesmo: a forma possivel de significar simultaneamente a historia do homem que foi Graciliano e a historia do homem como ser social. Do menino maltratado ao homem encarcerado, a trajetoria da obra de Graciliano simboliza o desvalimento do homem historico em varios aspectos, fazendo refletir a dinamica do seu modo abstrato de ser em uma forma de genero aproximadamente concreta. Ou seja, a autonarrativa sera tanto mais definida com relacao a forma quanto mais imperiosa sua necessidade de representar o homem, apresentando-se a si mesmo.

Os subgeneros que se reunem sob o rotulo generico "autobiografia" apenas raramente gozam de um estatuto de correspondencia ou compatibilidade entre si. Mas o hiperonimo "autobiografia" e frequentemente empregado de forma indistinta, para referir conceitos, senao antagonicos, que nao denotam precisamente os mesmos valores em comum, como as memorias, o romance pessoal, o poema autobiografico, o diario, o auto-retrato e ate mesmo a biografia. Categorias narrativas intimamente aparentadas em varios aspectos, cada uma delas apresenta traco fundamental e particular que a diferenciara das demais.

O problema, porem, extrapola o terreno das meras ambiguidades terminologicas. Transposto para o dominio da narrativa, a problematica complica-se justamente por causa do metodo de abordar-se diegeticamente a experiencia. A voz narrativa que relata a si propria, na realidade, so o pode fazer mediante a instituicao de um outro, pois a consciencia do eu apenas existe pela contraposicao ao que nao e o eu. Ou seja, e preciso que haja um outro para que exista um eu, o que significa que nao pode haver identidade sem a historia em seu sentido amplo, sem a referencia externa. Consequentemente, o eu que a voz narrativa relata -- o eu narrado -- comunica nao a experiencia solitaria, adquirida independentemente de tudo e de todos, como o termo autobiografia pode sugerir, mas a experiencia que e fruto da contraposicao com as alteridades, a vivencia repleta de micro-historias, compartilhadas e repassadas universalmente. No fundo da questao, encontra-se uma voz transautodiegetica, ja que sua narrativa, ao apresentar a historia do eu, ultrapassa os limites de si mesmo. Essa visao drastica, quase fundamentalista -- que e o oposto da normatividade preconizada em Lejeune, portanto -- estabelece uma paridade, por exemplo, entre os conceitos de autobiografia e memoria, desconstruindo a exigencia do enfoque na historia do individuo em uma e na historia da coletividade em outra, respectivamente.

Os livros Memorias do carcere e Infancia sao considerados pela critica como literatura pessoal. Antonio Candido dira que "Quando Vidas Secas apareceu [...], ninguem supunha estar lendo o ultimo romance do autor" (103). Dessa forma, como a primeira edicao de Vidas Secas saiu em 1938, ano seguinte a liberacao de Graciliano da prisao, percebe-se que Candido considerava que os livros posteriores do autor -- o de 1945 e o de 1953 -- nao eram romances. Em Ficcao e confissao (71), Candido divide a obra de Graciliano em tres grupos: a serie de romances escritos em primeira pessoa -- Caetes, Sao Bernardo e Angustia; as narrativas redigidas em terceira pessoa -- Vidas secas e os contos de Insonia; e as obras autobiograficas -- Infancia e Memorias do carcere. Na realidade, Candido reune as obras em dois conjuntos maiores, classificando-as em ficcionais e nao-ficcionais, e depois divide o primeiro grupo, considerando o enfoque narrativo. Sonia Brayner, na colecao A literatura no Brasil, dirigida por Afranio Coutinho, inscreve na lista das memorias a narrativa da infancia de 1945 e as recordacoes do preso politico de 1953, acrescentando que "a atitude de Graciliano Ramos frente as memorias e de nao tracar limites definidos entre biografia e ficcao" (407).

Clara Ramos, na biografia Mestre Graciliano, comentando sobre a vida familiar de seu pai, dira que os avos teriam motivado o primeiro livro de memorias do autor. A citacao que Clara Ramos destaca -- "Meu pai fora um violento padrasto, minha mae parecia odiar-me, e a lembranca deles me instigava a fazer um livro a respeito da barbara educacao nordestina" (27) -- encontra-se em Memorias do carcere, mas o primeiro livro de memorias a que se refere e Infancia. Como mais tarde procederia Denis de Moraes, autor de O velho Graca, Clara Ramos usa trechos dos romances no relato que escreve da vida de Graciliano. Se para Clara Ramos tais trechos serviram para ilustrar detalhes da vida do autor, e certo que ela os tivesse por relatos de teor comprovadamente autobiografico com que pudesse tracar um retrato fiel de seu pai.

Fernando Cristovao, dissertando sobre as correlacoes entre ponto de vista e autobiografia na obra de Graciliano, dira que "Infancia aproxima-se da especie 'memorias' e Memorias do Carcere da especie 'confissao' ou 'diario', dado o desenvolvimento da descricao de certos acontecimentos e da sua repercussao nos protagonistas" (23-24). Ha na literatura critica muitos exemplos que abonam tanto Infancia quanto Memorias do carcere como narrativas memorialistas ou autobiograficas. Entretanto, apesar de subscreverem-se sob a rubrica do "pessoal", Infancia e Memorias do carcere sao narrativas de naturezas sobremaneira diversas, a comecar pelo modo como foram concebidas.

O ano de 1938 marca o principio da gestacao do que viria a receber o titulo Infancia, cujas vias de publicacao, por capitulos, em periodicos da epoca, estavam associadas a critica situacao financeira pela qual o escritor passou apos ter sido libertado da prisao. Infancia ja estava nas cogitacoes de Graciliano pelo menos desde 1936, pelo que se percebe em uma carta enviada a Heloisa, sua esposa, datada de 28 de janeiro (Cartas 161). Segundo Moraes (177), em 18 de outubro de 1938, o Diario de Noticias publica "Samuel Smiles", primeiro de uma serie de contos que figurariam, mais tarde, como capitulos de Infancia. Segundo Moraes, e apenas no quarto conto da serie -- "Um Cinturao" -- que Graciliano percebera o filao a explorar: "A 1[degrees] de maio de 1939 veio a lume 'Um Cinturao'. So ai formei vagamente o projeto de, reavivando cenas e fatos quase apagados, tentar reconstruir uns anos de meninice perdida no interior [...]" (177). O primeiro capitulo, "Nuvens", so foi escrito em 14 de setembro de 1939. Publicado como livro apenas em 1945, Infancia levou seis anos para ser engendrado.

Memorias do carcere foi um projeto adiado para os derradeiros anos da vida de Graciliano, de modo que, quando e publicado postumamente em 1953, Infancia ja completara oito anos, desde que veio a lume como livro. O proprio autor declara, em Memorias do carcere (1: 35), que sua escrita fora reclamada por terceiros, que lhe teriam oferecido dados e figuras desaparecidas, instando-o a que empreendesse o projeto prontamente, ate o convencer. Alem disso, Clara Ramos testemunha, em um livro mais recente (Cadeia 164), que seu pai mantivera um contrato com a editora Jose Olympio, que lhe remunerava mensalmente em troca de alguns capitulos do livro. A escrita de Memorias do carcere prosseguiu ate a morte de Graciliano em 1953.

As duas narrativas assemelham-se pelo fato de que se embasam ambas em lembrancas, recordacoes de um passado. Mas, enquanto Infancia forja um eu narrado em forma de menino, compreendendo as referencias a um periodo que vai aproximadamente da idade de tres anos ate o inicio da puberdade, aos onze anos, em que o protagonista tem os primeiros contatos com a (in)justica na figura do pai e da mae; Memorias do carcere relatara o universo do adulto que, como diz Candido, "se empenha nas coisas do seculo, e preso, jogado dum canto para outro e desce a fundo na experiencia dos homens" (54). Por contraste, Infancia, tambem considerado um livro pessoal, segundo Candido, e uma "autobiografia tratada literariamente; a sua tecnica expositiva, a propria lingua parecem indicar o desejo de lhe dar consistencia de ficcao [enquanto] Memorias do Carcere e depoimento direto e, embora grande literatura, muito distante da tonalidade propriamente criadora" (64).

Para uma abordagem do valor autobiografico da obra de Graciliano, talvez seja mais conveniente iniciar analisando-se em maior detalhe suas narrativas pessoais. Seu unico livro declaradamente memorialista, Memorias do carcere, e tambem seu derradeiro projeto literario. A narrativa, que carrega a marca pessoal inconfundivel desde o titulo, dispoe-se em quatro partes: a primeira, "Viagens"; a segunda, "Pavilhao dos Primarios"; a terceira, "Colonia Correcional"; e a quarta, "Casa de Correcao". Mas pessoal nao significa individual. Pelo contrario: Memorias do carcere, como toda a producao literaria de Graciliano Ramos, expoe uma narrativa em que a experiencia e uma exigencia, uma condicao de que nao se pode prescindir. E a experiencia, mesmo aquela interior, vivencia-se coletivamente, junto a outros homens -- mulheres, criancas, ricos, miseraveis, iletrados, cultos -- seres cujas vozes nao ganharam oportunidade no sistema de aparencias, na vida ma, no cotidiano em que, quando pela forca e pela truculencia -- se pensa ter vencido a vida, foi apenas a um semelhante que se venceu.

Infancia, por outro lado, evita assumir diretamente o compromisso de um discurso memorialista. O titulo seguido do nome do autor, embora sugestivo, e um indice que pode apontar em qualquer direcao, nao necessariamente para a infancia de Graciliano Ramos. Em principio, poderia versar sobre a vida de qualquer um, ate de personagem ficticio, ja que nao fica explicito, apenas pelas informacoes da capa, de que infancia a narrativa trata. O mesmo argumento poderia ser aplicado tambem a Memorias do carcere, mas nao com a mesma conviccao, embora nao faltem exemplos, na literatura brasileira, de memorias ficticias, como o romance urbano Memorias de um sargento de milicias, de Manuel Antonio de Almeida.

A experiencia em Memorias do carcere e contada a partir de um eu, uma voz narrativa que coincide com a voz autoral empirica. O protagonista -- se e que se pode chama-lo assim --, nas rars vezes em que se expressa diretamente, revela uma identidade com o narrador, constituindo assim um sistema polifonico inequivoco, no sentido de que manifesta propositadamente uma diccao de consistencia identitaria intensa e direta. Infancia, pelo contrario, nada tem de inequivoco com relacao a identidade em seu sistema polifonico: a voz narrativa nao assume uma relacao particular aberta com o nome na capa do livro; de tempos em tempos, o protagonista-narrador posiciona-se, atraves das lembrancas, no lugar e no tempo remotos da infancia, mas transportando-se a dimensao passada, nao apenas contemplando discursivamente os episodios. E como se um adulto encarnasse a crianca que foi, revivendo a historia na medida de sua capacidade de rememorar, contando-a por dentro. As vezes, porem, percebe-se o afastamento do passado, a volta ao presente, como se uma "desincorporacao" tivesse ocorrido. Nota-se dessa forma uma dinamica identitaria descontinuada entre protagonista e narrador.

A identidade entre narrador e personagem principal, como lembra Lejeune (On Autobiography 5), sera marcada com maior frequencia pelo uso da primeira pessoa, embora possa efetivar-se tambem pelo emprego da segunda e da terceira pessoas. Quando a relacao de identidade entre narrador e protagonista manifesta-se pelo uso da primeira pessoa gramatical, a narrativa resultante se chamara autodiegetica. O narrador, porem, mantendo identidade com o protagonista, podera dizer "tu" ou "ele". No primeiro caso, havera uma narrativa em segunda pessoa; no segundo caso, uma narrativa em terceira pessoa. Nessas circunstancias, devera existir algum mecanismo que identifique o narrador ao protagonista -- quando o primeiro nao diz "eu", mas "tu" ou "ele" -- configurando a identidade entre eles. Podera nao haver, todavia, identidade entre narrador e personagem principal. Neste caso, quando o narrador usa a primeira pessoa, a narrativa se chamara homodiegetica e sera de testemunho. O narrador podera referir, entretanto, a um "tu" ou a um "ele". No caso de usar a terceira pessoa gramatical, a narrativa se denominara heterodiegetica.

Segundo Lejeune (Le pacte 28), sera possivel estabelecer uma tipologia de genero a partir das relacoes entre autor, narrador e personagem principal. Quando se estabelece uma identidade previa entre autor e narrador, tem-se: autobiografia classica, quando a narrativa e autodiegetica; autobiografia em segunda pessoa, quando a narracao refere-se a um "tu"; e autobiografia em terceira pessoa, quando a narracao refere-se a um "ele". Quando narrador e protagonista nao apresentam identidade entre si, porem, tem-se: biografia em segunda pessoa, quando a narrativa e homodiegetica (narrativa de testemunho); biografia em segunda pessoa, quando a narracao dirige-se a um "tu"; e biografia classica, quando a narrativa e heterodiegetica.

Na constituicao de Memorias do carcere enquanto narrativa, o narrador assume explicitamente, embora nao sem alguma aparente contrariedade, a posicao discursiva em primeira pessoa. A focalizacao, portanto, podera denominar-se autodiegetica, com a voz narrativa que relata em primeira pessoa suas proprias experiencias como protagonista da diegese ou da materia narrada. Tal configuracao ocorre tambem em Infancia: o narrador assume um ponto de vista em primeira pessoa, identificando-se ao protagonista, apesar de seus vinculos, por vezes, afrouxarem-se. Dessa forma, havera um foco tambem autodiegetico, embora sem comentarios metaliterarios com relacao a responsabilidade do eu na narrativa, como acontece em Memorias do carcere. Nesta nao se pode perceber diretamente a coincidencia identitaria entre o narrador e o autor. Apesar de as experiencias narradas parecerem pormenorizadamente semelhantes aos fatos da vida real de Graciliano Ramos, nao ha um so momento em Memorias do carcere em que figure o nome do narrador. E apenas indiretamente que se logra inferir a sua identidade, atraves de avaliacoes e comentarios que apresenta de sua propria obra e de personagens que dela fazem parte. Tal recurso de identificacao a obra, segundo Lejeune (On Autobiography 18), equivale a autodenominacao do narrador e satisfaz completamente a necessidade de identidade entre as instancias narrativa e autoral. Em Memorias do carcere, o narrador cumpre essa condicao, por exemplo, atraves da passagem em que critica Luis da Silva, protagonista de Angustia -- "Na casinha de Pajucara fiquei ate a madrugada consertando as ultimas paginas do romance. [...]. O meu Luis da Silva era um falastrao, vivia a badalar a toa reminiscencias da infancia, vendo cordas em toda a parte" (Memorias do carcere 1: 42) -- e nos comentarios que tece sobre o "Relogio do hospital", conto publicado no livro Insonia (Memorias do carcere 2: 212).

Tambem em Infancia nao figurara em nenhum lugar da narrativa o nome do protagonista-narrador. O personagem principal e simplesmente um menino anonimo, como o protagonista de Memorias do carcere. O metodo de estabelecer a identidade do narrador atraves de sua obra, em Infancia, depara com a escassez de referencias no texto. A unica alusao e feita em "Mario Venancio", capitulo em que Graciliano figura como um dos fundadores do periodico Diluculo e autor da historia "O pequeno mendigo" (Infancia 227), embora a historia se chame na realidade "O pequeno pedinte". A identificacao indireta entre o narrador e o autor, atraves de uma obra assumida pelo narrador, dependera, entretanto, em grande parte do conhecimento de mundo do leitor. O leitor que conhece a primeira historia de Graciliano Ramos, que foi publicada em um obscuro jornal escolar, certamente sera tambem capaz de deduzir que o "Pequeno mendigo" e o "Pequeno pedinte" sao a mesma historia, e que "pequeno mendigo" e um verso dentro do conto em forma de poema "Pequeno pedinte".

Em Memorias do carcere, o personagem principal sera o proprio narrador, pois sera em torno dos eventos de sua vida que se desenrolara a maior parte da acao. O narrador-protagonista detem um ponto de vista testemunhal dos acontecimentos narrados e procura comunicar os aspectos de sua experiencia por um prisma que se quer isento de "julgamentos precipitados" e que observa os homens "onde se acham, nessas bainhas em que a sociedade os prendeu" (1: 35), suas varias classes. Na realidade, o foco resultante e um sistema hibrido, complexo, que reune, pela evocacao, as muitas reminiscencias de "casos passados ha dez anos" (1: 33), que se organizam e ganham mobilidade pela acao de um personagem sem o qual nada se poderia contar. A instancia narrativa que delega voz ao personagem apenas formalmente dele se separa. Na pratica, percebe-se que a dinamica discursiva tende ao amalgamento das vozes, centrando a acao passada na entidade-personagem apenas como uma necessidade de andamento da historia. O protagonista, assim como os outros personagens, e ele proprio uma reminiscencia ressuscitada, mas uma reminiscencia poderosa, que ganha corpo e voz pela propria narrativa. Eis aqui o desdobramento do conceito do enfoque autodiegetico.

Situacao semelhante ocorre em Infancia. Mas aqui o narrador recorre a lembrancas ainda mais longinquas, que se materializam durante as "abertas entre as nuvens espessas" (7), com varias solucoes de continuidade, e obtidas atraves de um esforco aparentemente maior, e de natureza diversa, do que o realizado em Memorias do carcere. A convergencia das vozes do protagonista e do narrador parece acontecer de forma explicita nos momentos mais traumaticos, que dao lugar a fluxos discursivos quase livres para a sintese das duas instancias apenas formalmente separadas. Um bom exemplo e a cena do pai de Graciliano procurando pelo cinturao perdido, culpando o menino, que termina por receber a punicao de chicotadas por algo que nao fez:

Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os corticos enchendo-me os ouvidos -- e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Nausea, sono. Onde estava o cinturao? [... ] Havia uma neblina, e nao percebi direito os movimentos de meu pai. Nao o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. [...]. Uivos, alarido inutil, estertor. (Infancia 31)

Tanto em Infancia quanto em Memorias do carcere, a manifestacao vocal do protagonista enquanto enunciador individual -- formalizada pelos artificios graficos como o travessao empregado antes da fala, o recuo do paragrafo e a delimitacao de linhas a cercear cada turno na alocucao -- torna-se quase ocasional, quando comparada a densidade e a extensao da prosa do narrador. Enquanto o narrador como protagonista estende seu proprio discurso em longas reflexoes, ele nao concede tao generosamente a palavra a entidades interlocutoras, mesmo quando esta essencia enunciadora e o proprio protagonista em acao alocutiva plena e direta, como acontece nos dialogos.

A configuracao polifonica no texto de Memorias do carcere apresenta uma compatibilidade entre as vozes do narrador e do protagonista-em-dialogo que demonstra a afinidade esperada, no enfoque autodiegetico, entre essas duas instancias. A passagem que se segue a conversa do protagonista com o diretor da Colonia Correcional da Ilha Grande deixa ver a transicao incontrastavel do fluxo verbal de narrador a protagonista, formando uma inter-relacao sem solucao de continuidade que corrobora a questao da referencia identitaria:

-- Que beleza, doutor! Que maravilha!

Chegavamos a cancela. E experimentei de chofre a necessidade imperiosa de expandir-me numa clara ameaca. A desarrazoada tentacao era tao forte que naquele instante nao me ocorreu nenhuma ideia de perigo.

-- Levo recordacoes excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade que os senhores me deram. (Memorias do carcere 2: 158)

Em Infancia, sao ainda menos frequentes as cessoes de fala, com a voz narrativa centrando-se principalmente na descricao de episodios e pessoas que figuraram na infancia do protagonista, cuja participacao em dialogo nao passa de duas duzias de falas muito breves. Embora a escassez de interlocucoes diretas, a relacao entre narrador e protagonista-em-dialogo e bastante visivel atraves da identificacao que se estabelece entre as duas instancias:

Chegamos a um marquesao, sentamo-nos, deitei familiarmente a cabeca nas pernas da mulher. [...]. Voltou-me a curiosidade, apontei com desanimo a planta calva, gaguejei:

-- Minha filha, que pau e aquele?

Obtive a informacao e ao cabo de minutos tornei a perguntar:

-- Minha filha, que pau e aquele? (Infancia 38-9)

Discursivamente, elaboram-se diferencas hierarquicas entre a voz do narrador como locutor e a voz do protagonista como enunciador, porque e o narrador quem delega voz ao personagem-em-dialogo, ainda que este seja o proprio protagonista. No entanto, o marcador discursivo mais concreto, manifestado na superficie do texto, e a alteracao do tempo verbal, que se converte do preterito, no discurso do narrador, para o presente, no do protagonista-em-dialogo. Esse desnivel na dimensao temporal instaura uma distancia ontica entre os seres discursivos, sem, entretanto, comprometer sua identificacao mutua.

Quando se questiona quem e este eu -- ou, como sua identidade se manifesta -- na realidade, tentam-se restaurar, a partir dele, aspectos tais de forma a desenhar-lhe uma essencia reconhecivel. Tal processo chama-se identificacao. O leitor e compelido pela necessidade de extrapolar o mundo signico para proceder a identificacao, em busca de uma referencia concreta. A identidade entre os seres discursivos pressupoe a identificacao. Em outras palavras, se o leitor precisa comprovar a identidade entre narrador e protagonista, ele necessitara primeiramente certificar-se de que o eu que fala como narrador e o mesmo eu que fala como protagonista. Mas, para assim o fazer, tera de recorrer a elementos que se encontram fora da narrativa. Para construir-se a compatibilidade necessaria entre as instancias do texto autobiografico, torna-se insuficiente a analise meramente formal, como o fato de ambos declararem-se como "eu". O eu que e narrado -- o eu da historia experienciada -- em relacao ao eu que narra a historia, encontra-se no passado, que esta, por vezes, tao psicologicamente distante, que e como se fosse uma terceira pessoa, ou, como diz Hermenegildo Jose de M. Bastos, "o eu do passado distancia-se tanto do eu do presente que tende a se tornar um ele" (67). A solucao para o dilema, portanto, requer que se pense biograficamente o narrador-autor como identico ao eu que ele narra. Configura-se assim a ideia de um eu no presente que fala de um eu anterior, no passado, como se este fosse um outro. No entanto, ainda que falando de um "eu-outro", o eu presente -- o narrador -- se afirmara de qualquer forma como "eu", minimizando as diferencas denunciadas nos desniveis temporais.

Em Infancia, o afastamento realiza-se, por vezes, atraves do recurso ao discurso indireto livre, como no episodio em que o protagonista questiona-se a respeito do inferno. O narrador ganha acesso a consciencia da mae, ampliando seu enfoque narrativo, mas, ao mesmo tempo promove um distanciamento, apresentando um julgamento sobre si a partir de um ponto de vista hibrido:
   Subito ouvi uma palavra domestica e veio-me a ideia de procurar a
   significacao exata dela. Tratava-se do inferno. Minha mae estranhou
   a curiosidade: impossivel um menino de seis anos, em idade de
   entrar na escola, ignorar aquilo. Realmente eu possuia nocoes. O
   inferno era um nome feio, que nao deviamos pronunciar. Mas nao era
   apenas isso. (71)


Contrariamente, ainda em Infancia, trazendo uma circunstancia do passado para o ambiente da narrativa presente atraves de uma analogia, o narrador, promovendo uma aproximacao, estabelece um contraste entre as instancias do eu que vivenciaram as experiencias:

Guardei a licao, conservei longos anos esse paleto. Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pespontos das minhas acoes cor de macaco. Paciencia, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem tolerarme um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele e realmente: chinfrim e cor de macaco. (185) (grifos meus)

A aproximacao identitaria entre as figuras do autor, do narrador e do protagonista dependera, em certa medida, do leitor. E sua capacidade de estabelecer identidades, isto e, seu poder de identificacao, que compora a contraparte do sistema textual e seus constituintes. O ser empirico que e o escritor, atraves do discurso narrativo e de seus personagens, e o responsavel pela criacao de sinais que orientarao o leitor na formacao da identificacao. Um dos principais locais em que se estabelecem esses sinais e a parte inicial da narrativa, em que o narrador firma um pacto com o leitor. Deve-se compreender pacto como contrato, uma elaboracao discursiva em que o narrador estabelece as leis que regerao a materia narrada, uma especie de acordo que o obriga a cumprir o que foi prometido. Segundo Lejeune (On Autobiography 16-17), ha tres tipos de pacto: o ficcional, o autobiografico e o nulo (0). Os tipos pactuais sao apresentados em intersecao com as relacoes entre autor e protagonista, segundo o personagem principal tenha um nome igual ao do autor -- estabelecendo-se a identidade --, apresente um nome diferente do nome do autor ou simplesmente nao tenha nome. As possiveis combinacoes resultarao em tipos determinados de narrativa: o romance, a autobiografia ou algo indeterminado. O pacto em Memorias do carcere e firmado no inicio do livro e repetido ou reiterado algumas vezes no decorrer da narrativa. No capitulo I da primeira parte, chamada "Viagens", o narrador declara ter se resolvido a "contar casos passados ha dez anos" (1: 33). A expressao empregada -- casos passados -- investe na veracidade dos fatos, pois nao se trata de quaisquer casos, casos inventados, mas de casos "passados", que se passaram, ou seja, acontecidos de fato.

Em Infancia, nao ha um pacto formalmente estabelecido e que obedeca a todas as convencionalidades de um trato nitidamente firmado entre as partes. O contrato redigido em tal romance e muito mais sutil e, na realidade, encontra-se discriminado nas entrelinhas cobertas pelas "nuvens" do primeiro capitulo do livro. Nao ha a pormenorizacao explicita e o posicionamento preciso do narrador de Memorias do carcere. Antes, o contrato em Infancia instituise discretamente, sem a valorizacao do protocolo em que o narrador toma solenemente a responsabilidade de dizer a verdade, assinalando a legitimidade da narrativa concretamente. Ao contrario, Graciliano e o primeiro a moderar a qualidade de suas recordacoes em Infancia, facultando a escrita do pacto ao leitor: "Talvez nem me recorde bem do vaso: e possivel que a imagem, brilhante e esguia, permaneca por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram" (7). Em Memorias do carcere, os momentos em que ocorre a homologacao da legitimidade da narrativa verificam-se a espacos regulares, mas quase sempre sucedidos por trechos que expressam contraposicao de ideias. Parece que o narrador deseja flexibilizar o discurso autobiografico, posicionando-o em paralelo com aspectos ficcionais. A propria narrativa, que pretensamente se quer autobiografica, indica o dificil transito entre os dois generos em certos momentos. Ao falar de seu desgosto ao usar a primeira pessoa (Memorias do carcere 1: 37), na realidade, o narrador questiona sua propria opcao de adotar o ponto de vista autodiegetico. Naturalmente que o incomodo tem relacao com o fato de a balanca da dinamica narrativa pender para a identificacao que se vinha escamoteando desde os primeiros livros de Graciliano Ramos. Nao ha aqui tambem uma resolucao definitiva e concludente para o problema. O que ha sao as negociacoes com afirmacoes moduladas da identidade, que se deixam ver desde o principio do pacto. A questao da identidade e a consecucao de um pacto estao intimamente associadas e constituem facetas complementares de um unico problema.

Bastos aborda o assunto pelo emprego do termo "quase-identidade" (121), que descreve complexos movimentos de identificacao e diferenca de Graciliano Ramos com relacao aos personagens de sua obra. Por enquanto, bastaria apontar tal movimento nos textos considerados memorialisticos:
   Se a leitura de Mc [Memorias do carcere] nos levasse a concluir
   pela identidade, o sentido propriamente literario da obra ficaria
   comprometido; se concluissemos pela diferenca, os principios
   realistas que exigem fidelidade a experiencia vivida ficariam, por
   sua vez, comprometidos. A identidade do eu nao e, assim, algo de
   natureza diadica, mas triadica. No processo dialetico, a sintese e
   sempre provisoria, consistindo em nova tese. (121)


E assim que certas afirmacoes presentes no pacto inicial entre narrador e leitor, em Memorias do carcere, sofrem da compreensivel predisposicao esquizoide em lancar uma sombra de duvida ao que se constroi penosamente -- a identidade e a propria narrativa: "Nao conservo notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer do tempo, ia-me parecendo cada vez mais dificil, quase impossivel, redigir esta narrativa" (1: 33). Dai, conclui-se que o narrador entretece a historia pela memoria ou, pelo menos, indiretamente credita a esta a constituicao da narrativa. A "quase impossibilidade" da redacao da narrativa nao impede o narrador de apresentar sua historia: com efeito, Memorias do carcere tera sido o mais extenso dos livros de Graciliano Ramos. Ja em Infancia, sem nada haver prometido explicitamente, a duvida nao se manifesta em sombras, mas em "nuvens espessas" (7), nevoeiros e neblinas, que simbolizam a falta de nitidez do que ocorre ao espirito do narrador como lembranca.

Enquanto em Infancia essa ausencia de limpidez nao causara grandes suspeitas ao leitor, ja que o contrato constitui-se de maneira informal, em Memorias do carcere, o proprio pacto, construindo-se sobre a ambivalencia gerada pelas concessoes a imprecisao e a memoria, plantara sementes de duvida no espirito do leitor. Os adverbios e os fraseios que expressam incerteza -- "presumivelmente", "atos esquecidos" -- vao instaurar a desconfianca depois de praticamente cada sugestao de que a narrativa reproduziria fielmente a realidade objetiva, tal qual teria ocorrido em meados da decada de 1930 (Memorias do carcere 1: 33). O narrador em Memorias do carcere, dessa forma, justifica a distancia cronologica dos fatos. Se lhe desagradava romantizar o livro, encobrindo os verdadeiros nomes dos personagens, expondo suas mazelas em um relato de historias reais, era necessario esperar ate que as razoes iniciais desvanecessem para nao incorrer na indiscricao de expor ao publico seus "antigos companheiros" (Memorias do carcere 1: 35). Entretanto, o tempo necessario para resguardar a privacidade de varios personagens da trama e o mesmo tempo que serve para suscitar ou, pelo menos, evocar a ficcionalidade na narrativa. Assim, o narrador restaura a realidade atraves da lembranca, propria e alheia, preenchendo lacunas ou simplesmente as deixando vazias, como diz: "ampliarei insignificancias, repeti-las-ei ate cansar, se isto me parecer conveniente" (Memorias do carcere 1: 36).

Em Infancia, e tambem um suscitar de lembrancas que imprime ritmo a marcha da narrativa. Porem, as reminiscencias sao de natureza bastante diferente daquelas em Memorias do carcere, porque se trata de um adulto recordando experiencias de seu tempo de menino, periodo muito mais afastado cronologicamente do que a terrivel passagem pelo carcere. Nao ha em Infancia o escrupulo exagerado que se mostra nas memorias posteriores com relacao a integridade moral dos personagens. Tal zelo talvez nao fosse necessario, ja que a maior parte das figuras da narrativa ja nao privavam mais da convivencia de Graciliano, como sua mae, que morrera em 1943. Alem disso, a historia narrada em Infancia -- deveria sabe-lo Graciliano -- gozaria do status de ficcao.

Em Memorias do carcere, a suposta perda das notas mencionada no pacto teria beneficiado o narrador em seu oficio de contar a historia, pois nao se veria obrigado, a cada instante, a consultar os papeis a fim de retratar detalhadamente os fatos. Para ele, as "coisas verdadeiras podem nao ser verossimeis" (1: 36), entre elas, a hora exata de uma partida ou a cor da folha que cai de uma arvore. Dessa forma, o narrador apresenta um questionamento metaliterario com relacao ao valor de verossimilhanca, que e um conceito mais intimamente associado ao universo ficcional. Para ele, a verdade pode nao apresentar aspectos do real; a verdade pode parecer improvavel, implausivel, contrariar a si mesma e, principalmente, o conceito de realidade dos leitores, pela sua falta de relevancia contextual: "E se esmoreceram, deixa-las no esquecimento. [...] Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade" (Memorias do carcere 1: 36).

O que ganha espaco na representacao narrativa de Graciliano Ramos e aquilo que sobrevive pela importancia e pelo significado que o torna memoravel. Revivida a partir dos pontos de vista do narrador e dos testemunhos de pessoas que se transformaram em personagens da trama, a experiencia passada e evocada converte-se em materia filtrada pela subjetividade sofrida do autor na pele do narrador. A unica forma encontrada de escapar de uma perspectiva autoritaria, autocratica, como o "pequenino fascismo tupinamba" (Memorias do carcere 1: 34) de que foi vitima, e flexibilizar a narrativa atraves da ficcionalidade. Para Graciliano, a ficcao, muito mais do que simples representacao artistica da experiencia humana, constitui um lugar de refugio e protecao. Em Infancia, o protagonista usa o espaco ficcional como reparacao das aflicoes impostas pela violenta realidade familiar. Pela leitura dos romances e historias, o menino-personagem encontra a estabilidade afetiva para a acao como resposta a barbaridade, ao abandono e a humilhacao. Talvez este seja um dos fatores responsaveis pela seducao instantanea que a literatura exerceu sobre a afetividade da crianca em Infancia, e, consequentemente, pela sua aproximacao dos romances e historias que lhe proporcionaram um escape uma salvacao disponivel e digna -- a realidade de humilhacao e machucamento. Na realidade, em Infancia, Graciliano metaforicamente fugira de casa atraves do exercicio da errancia literaria. Por essa razao, abrir mao da ficcao, para Graciliano Ramos, significaria menos se desviar dos paradigmas da arte literaria do que abandonar o espaco por excelencia libertador -- e, por vezes, simplesmente escapista -- da narrativa ficcional. Entretanto, para o autor, a literatura -- e, por extensao, a ficcao -- sempre foi, como diz Bastos, uma "forma superior de testemunho sobre o homem e a historia" (25). De certa forma, depreende-se que, consequentemente, a narrativa testemunhal figura como um territorio em que reinam a liberdade e a dignidade.

Em viagem de trem para o Recife, ja sob a custodia da policia, o protagonista de Memorias do carcere olha pela janela, percebe de passagem os mocambos -- "construcoes negras num terreno alagado" (1: 61) -- e lembra-se do amigo Jose Lins. O autor de Moleque Ricardo, filho de fazendeiros, que pouco entendimento teria a respeito de meninos criados na miseria, escrevera um romance sobre o assunto: uma narrativa cheia de imaginacao e, na opiniao de Graciliano, verossimilhanca. Ele, porem, julgava-se incapaz de tal facanha: "so me abalanco a expor a coisa observada e sentida" (Memorias do carcere 1: 61). A materia plasmada a partir da experiencia, "a coisa observada e sentida" do narrador, e a substancia de um projeto literario que transborda novamente para a vida, porque e em prol dela que se a faz. Dessa forma, mesmo a ficcao em Graciliano Ramos nao sera inspirada na pura invencao, o que aproxima sua narrativa ficcional do que se chama, abrangentemente, de genero autobiografico. Em Memorias do carcere, ela surgira especificamente como tematizacao, atraves de uma abordagem que poe em pauta a propria obra enquanto espaco de reflexao sobre a literatura e o modo como ela se constitui. Em Infancia, a ficcao sera, como sugere Candido (50), uma possibilidade de leitura.

O pacto proposto pelo narrador de Memorias do carcere, enfim, sera autobiografico na medida em que se intitula como tal. A relacao que o narrador mantem com seu proprio enunciado, porem, e marcada por sinais de varias nuancas, que se materializam sob a forma de consideracoes metaliterarias e filosoficas. Tais consideracoes modalizam, flexibilizam o pacto para que nele caibam os ajustes de uma verdade que talvez outros narradores considerassem inconfessaveis, como o fato de admitir que a realidade nem sempre e verossimil e, portanto, nao relevante, pelo menos discursivamente. Assim, Graciliano Ramos nao exclui do pacto de Memorias do carcere a possibilidade da negacao da realidade, quando ela nao faz parte de um universo significativo de experiencia para si e para aqueles a quem ele representa com sua literatura. Tampouco banira de la a ficcao quando ela contribuir como metodo para minimizar o deslocamento identitario, como se viu, tornando mais verossimil sua narrativa autobiografica.

Afinal, usar a elaboracao discursiva para reconstruir partes da propria vida atraves da memoria significa, em certa medida, lancar mao da ficcao, especialmente quando os fatos distam mais de dez anos do momento da narrativa, como em Memorias do carcere. Neste livro, o ponto de vista do eu narrado -- que sofre na pele todas as sevicias de um sistema carcerario cruel e falido -- so pode ser resgatado pela visao do eu narrador que se debruca e julga seu proprio passado. E este eu narrador, pois, quem reproduz as experiencias do outro, passando-se por ele e relatando, a partir de uma realidade totalmente nova, as atrocidades ocorridas ha uma decada. Nesse sentido, vale a pena lembrar a reflexao de Alfredo Bosi:
   A separacao, entre ficcao e nao-ficcao hoje e contestada nao so
   teoricamente como tambem vivencialmente por certa critica e por
   muitos leitores. Ha uma corrente pos-moderna que procura mostrar
   que a propria atividade simbolica, enquanto simbolica, e uma
   alienacao. Teria chegado o momento de acabar com esta pesada e
   canonica tradicao segundo a qual literatura e literatura, linguagem
   de comunicacao e linguagem de comunicacao, e realizar,
   performativamente, a identidade profunda de ambas as atividades.
   (177)


O questionamento da atividade simbolica enquanto alienacao parece ser algo que ja estava nas cogitacoes do proprio Graciliano Ramos. Ao alistar as razoes por que teria adiado por tanto tempo seu projeto de escrita de Memorias do carcere, ele falara da sintaxe como um elemento de tirania, comparavel a forca policial. A linguagem, assim, apresentaria um aspecto que suprime a liberdade, tornando-se instrumento de opressao, coacao e, consequentemente, constituindo-se em fator alienante:
   Certos escritores se desculpam de nao haverem forjado coisas
   excelentes por falta de liberdade -- talvez ingenuo recurso de
   justificar inepcia ou preguica. Liberdade completa ninguem
   desfruta: comecamos oprimidos pela sintaxe e acabamos as voltas com
   a Delegacia de Ordem Politica e Social, mas, nos estreitos limites
   a que nos coagem a gramatica e a lei, ainda nos podemos mexer. (1:
   34)


O carater alienante da linguagem estaria em sua propria funcao de representar o mundo na medida exata de suas possibilidades. Seu poder de representacao esta condicionado a leis -- como a gramatica -- que, assim como as regras sociais, nao podem ser desrespeitadas sem que se pague o devido preco, como Fabiano, em Vidas secas, que padeceu na cadeia por ter altercado com um guarda.

Com relacao a Graciliano Ramos, Bastos (23) pondera que o autor sabe que sua obra, devido a alta sofisticacao estetica, contribui para fortalecer a instituicao literaria. Embora produza uma literatura voltada para o oprimido, privilegiando a perspectiva das massas, ele tem consciencia de que sua arte promove a cumplicidade com a sociedade que pretende combater ou criticar, muitas vezes constituindo-se com o restante das artes contemporaneas, em uma das suas pilastras de sustentacao. Mas, ao mesmo tempo em que a arte figura como elemento alienador, carregando essa culpabilidade de um papel inexoravelmente duplo por natureza, para Graciliano ela tambem significa uma via de conhecimento, atuacao e, por consequencia, libertacao: algo vital e que da sentido a vida. E atraves de sua literatura que ele deixa sua contribuicao de testemunho da historia do homem conforme a ve.

E na contramao da alienacao -- e no espirito da liberdade que a arte pode proporcionar -- que o limite estreito onde "ainda nos podemos mexer" tornase o lugar para a pratica da burla das normas -- sejam elas sociais ou gramaticais --, a qual se concretizara pela criatividade da arte. O espaco por excelencia desafiador e questionador de tais leis que constrangem o individuo sera a ficcao, pois e atraves de seus expedientes que a realidade podera ser reelaborada.

Ao se questionar a respeito do que o diferenciava do detento Jose, o ladrao -- cuja infancia havia sido tao parecida com a sua propria -- Graciliano admite que, alem de sua submissao "a regra, a censura e ao castigo" (Memorias do carcere 1: 178) e de talvez ter nascido em uma classe diferente, o alfabeto figuraria como o fator mais importante, tendo desenhado as linhas que mudariam irremediavelmente seu destino. Graciliano nao precisou rebelar-se contra as pressoes sociais de forma semelhante a de Jose, furtando e praticando outros delitos. Sua rebeldia, ao contrario, foi transposta para o nivel do discursivo, para o dominio da ficcao e, por fim, para o terreno da memoria. A literatura, portanto, ao mesmo tempo em que liberta ou salva, torna mais espessas e visiveis as diferencas de classe, que sempre foram uma questao recorrente na obra de Graciliano.

A autobiografia -- escrita da vida de si mesmo -- de Graciliano Ramos nao e algo que se possa resolver com um jogo de palavras. Ela nao se deixa apanhar. A autobiografia graciliana assim o e, conceitualmente, porque o autor, relatando a historia de si proprio, nada mais faz do que contar a historia de seu povo, de seus irmaos nordestinos, de seus irmaos brasileiros e de todos os seres humanos que se solidarizam diante do sofrimento, nao importando o tempo, nem o espaco, porque em alguns detalhes todos sao iguais ou muito semelhantes. O inverso, normalmente, tambem e verdadeiro: contando a historia da humanidade, estara Graciliano Ramos dando a saber sua propria historia, sua propria vida, sua propria dor. Desse movimento de empatia com o ser vivente, que se projeta a partir de sua obra para alem dela e de si mesmo, e que se junta o conceito de autobiografia. De fato, Memorias do carcere e Infancia nao sao apenas autobiograficas, nem o poderiam ser. Elas sao narrativas homo- e etnoautobiograficas: registros escritos da vida de um individuo que sintetiza, em suas experiencias, a experiencia comumente vivida. Dessa forma, a vida do individuo e um espelho que reflete varios aspectos da realidade de seu grupo, de sua comunidade, de sua cultura.

OBRAS CITADAS

Almeida, Manuel Antonio de. Memorias de um sargento de milicias. Sao Paulo: Atica, 1986.

Bastos, Hermenegildo Jose de M. Memorias do carcere, literatura e testemunho. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 1998.

Bosi, Alfredo. Literatura e resistencia. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Candido, Antonio. Ficcao e confissao: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

Coutinho, Afranio, org. A literatura no Brasil. 3a. ed. 6 vols. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1986.

Cristovao, Fernando. Graciliano Ramos: estruturas e valores de um modo de narrar. 4a. ed. Lisboa: Edicoes Cosmos, 1998.

Lejeune, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Editions du Seuil, 1975.

--. On Autobiography. Trans. by Katherine Leary. Minneapolis: U of Minnesota P, 1989.

Moraes, Denis de. O velho Graca: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1992.

Ramos, Clara. Cadeia. Rio de Janeiro: Jose Olympio: Secretaria de Cultura, 1992.

--. Mestre Graciliano: confirmacao humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 1979.

Ramos, Graciliano. Angustia. 60a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

--. Caetes. 31a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

--. Cartas. 2a. ed. Rio de Janeiro: Record, 1981.

--. Infancia. 38a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

--. Insonia. 23a. ed. Rio de Janeiro: Record, 1994.

--. Memorias do carcere. 36a. ed. 2 vols. Rio de Janeiro: Record, 2000.

--. Sao Bernardo. 81a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

--. Vidas secas. 100a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

por Marcelo da Silva Amorim

University of North Carolina-Chapel Hill

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