Autodiegese, ficcao e pacto: os livros pessoais de Graciliano Ramos e o conceito de autobiografia.
da Silva Amorim, Marcelo
NESTE artigo, encontrar-se-a uma discussao que poe em paralelo as
narrativas Memorias do carcere e Infancia, ressaltando os pontos em que
elas se aproximam e se afastam com relacao a determinados aspectos
constitutivos. Considerados pela critica como as duas obras
confessionais de Graciliano Ramos, tais livros apresentam semelhancas e
diferencas importantes que levam a questionar o proprio conceito do
genero a que sao comumente associados. Essas narrativas serao
confrontadas com a conhecida classificacao de Philippe Lejeune, que
tentou estabelecer as bases teoricas para compreender-se o genero
autobiografico. Elegeu-se Lejeune devido a natureza extremamente
normativa de sua classificacao, embora tambem constem aqui as visoes de
outros estudiosos do assunto e da teoria literaria em geral. Dessa
forma, verificar-se-a em que medida, nos dois livros em questao, o
leitor conseguira estabelecer relacoes de identidade entre autor,
narrador e protagonista, o que e uma das exigencias apontadas por
Lejeune para a definicao de autobiografia, e ate que ponto o leitor
conseguira identificar a natureza de um pacto proposto pelas narrativas.
Em suma, tentar-se-a explicar como Memorias do carcere e Infancia
comportam-se diante da nocao que Lejeune propoe para autobiografia e
como colocam em xeque alguns de seus conceitos.
O leitor de Graciliano divisara, em varias de suas obras, uma
narrativa confessional que se imiscui na fabulacao ficcional. A
incerteza do leitor diante do discurso indefinivel, fora dos paradigmas
de classificacao, levara a questionamentos apenas aparentemente
ingenuos. Em Infancia, por exemplo, ele se indagara, em face de um
protagonista sem nome, se nao e coincidencia demais que as aventuras
relatadas pelo narrador sejam identicas, em muitos aspectos, a historia
factual do proprio autor, ou que alguns dos personagens e eventos migrem
ao longo de seus romances e contos. Os personagens parecem saltar da
trama da prosa para a trama da vida real, e dali novamente para a
ficcao, nao havendo como os aprisionar por muito tempo em uma das
instancias.
Sua escrita parece propor a diminuicao da nitidez das linhas que
tracam os limites entre o imaginario e o real. A derrocada gradual, mas
jamais levada a cabo plenamente, dos muros dessa fronteira oferece uma
interrogacao que faz centrar a atencao do leitor sobre a propria
elaboracao da obra, sua materia, seu ponto de vista, sua dinamica. A
escritura da obra propoe, e ensina, uma leitura que considere um
territorio onde as leis do ficcional e do factual perdem sua hegemonia,
tornam-se distensas, quase inocuas -- uma leitura que reclama a
superacao da divisao de generos em campos opostos e incompativeis.
A obra de Graciliano e como um vetor cujo vertice aponta para um
desfecho cada vez mais assumidamente pessoal quanto a forma. Conforme se
trilha o caminho de volta, ao ponto de sua origem, porem, percebe-se que
a forma e mais consequencia do que escolha: e um desdobramento natural
de toda a trajetoria percorrida pelo desejo intimo do escritor de
significar a si mesmo: a forma possivel de significar simultaneamente a
historia do homem que foi Graciliano e a historia do homem como ser
social. Do menino maltratado ao homem encarcerado, a trajetoria da obra
de Graciliano simboliza o desvalimento do homem historico em varios
aspectos, fazendo refletir a dinamica do seu modo abstrato de ser em uma
forma de genero aproximadamente concreta. Ou seja, a autonarrativa sera
tanto mais definida com relacao a forma quanto mais imperiosa sua
necessidade de representar o homem, apresentando-se a si mesmo.
Os subgeneros que se reunem sob o rotulo generico
"autobiografia" apenas raramente gozam de um estatuto de
correspondencia ou compatibilidade entre si. Mas o hiperonimo
"autobiografia" e frequentemente empregado de forma
indistinta, para referir conceitos, senao antagonicos, que nao denotam
precisamente os mesmos valores em comum, como as memorias, o romance
pessoal, o poema autobiografico, o diario, o auto-retrato e ate mesmo a
biografia. Categorias narrativas intimamente aparentadas em varios
aspectos, cada uma delas apresenta traco fundamental e particular que a
diferenciara das demais.
O problema, porem, extrapola o terreno das meras ambiguidades
terminologicas. Transposto para o dominio da narrativa, a problematica
complica-se justamente por causa do metodo de abordar-se diegeticamente
a experiencia. A voz narrativa que relata a si propria, na realidade, so
o pode fazer mediante a instituicao de um outro, pois a consciencia do
eu apenas existe pela contraposicao ao que nao e o eu. Ou seja, e
preciso que haja um outro para que exista um eu, o que significa que nao
pode haver identidade sem a historia em seu sentido amplo, sem a
referencia externa. Consequentemente, o eu que a voz narrativa relata --
o eu narrado -- comunica nao a experiencia solitaria, adquirida
independentemente de tudo e de todos, como o termo autobiografia pode
sugerir, mas a experiencia que e fruto da contraposicao com as
alteridades, a vivencia repleta de micro-historias, compartilhadas e
repassadas universalmente. No fundo da questao, encontra-se uma voz
transautodiegetica, ja que sua narrativa, ao apresentar a historia do
eu, ultrapassa os limites de si mesmo. Essa visao drastica, quase
fundamentalista -- que e o oposto da normatividade preconizada em
Lejeune, portanto -- estabelece uma paridade, por exemplo, entre os
conceitos de autobiografia e memoria, desconstruindo a exigencia do
enfoque na historia do individuo em uma e na historia da coletividade em
outra, respectivamente.
Os livros Memorias do carcere e Infancia sao considerados pela
critica como literatura pessoal. Antonio Candido dira que "Quando
Vidas Secas apareceu [...], ninguem supunha estar lendo o ultimo romance
do autor" (103). Dessa forma, como a primeira edicao de Vidas Secas
saiu em 1938, ano seguinte a liberacao de Graciliano da prisao,
percebe-se que Candido considerava que os livros posteriores do autor --
o de 1945 e o de 1953 -- nao eram romances. Em Ficcao e confissao (71),
Candido divide a obra de Graciliano em tres grupos: a serie de romances
escritos em primeira pessoa -- Caetes, Sao Bernardo e Angustia; as
narrativas redigidas em terceira pessoa -- Vidas secas e os contos de
Insonia; e as obras autobiograficas -- Infancia e Memorias do carcere.
Na realidade, Candido reune as obras em dois conjuntos maiores,
classificando-as em ficcionais e nao-ficcionais, e depois divide o
primeiro grupo, considerando o enfoque narrativo. Sonia Brayner, na
colecao A literatura no Brasil, dirigida por Afranio Coutinho, inscreve
na lista das memorias a narrativa da infancia de 1945 e as recordacoes
do preso politico de 1953, acrescentando que "a atitude de
Graciliano Ramos frente as memorias e de nao tracar limites definidos
entre biografia e ficcao" (407).
Clara Ramos, na biografia Mestre Graciliano, comentando sobre a
vida familiar de seu pai, dira que os avos teriam motivado o primeiro
livro de memorias do autor. A citacao que Clara Ramos destaca --
"Meu pai fora um violento padrasto, minha mae parecia odiar-me, e a
lembranca deles me instigava a fazer um livro a respeito da barbara
educacao nordestina" (27) -- encontra-se em Memorias do carcere,
mas o primeiro livro de memorias a que se refere e Infancia. Como mais
tarde procederia Denis de Moraes, autor de O velho Graca, Clara Ramos
usa trechos dos romances no relato que escreve da vida de Graciliano. Se
para Clara Ramos tais trechos serviram para ilustrar detalhes da vida do
autor, e certo que ela os tivesse por relatos de teor comprovadamente
autobiografico com que pudesse tracar um retrato fiel de seu pai.
Fernando Cristovao, dissertando sobre as correlacoes entre ponto de
vista e autobiografia na obra de Graciliano, dira que "Infancia
aproxima-se da especie 'memorias' e Memorias do Carcere da
especie 'confissao' ou 'diario', dado o
desenvolvimento da descricao de certos acontecimentos e da sua
repercussao nos protagonistas" (23-24). Ha na literatura critica
muitos exemplos que abonam tanto Infancia quanto Memorias do carcere
como narrativas memorialistas ou autobiograficas. Entretanto, apesar de
subscreverem-se sob a rubrica do "pessoal", Infancia e
Memorias do carcere sao narrativas de naturezas sobremaneira diversas, a
comecar pelo modo como foram concebidas.
O ano de 1938 marca o principio da gestacao do que viria a receber
o titulo Infancia, cujas vias de publicacao, por capitulos, em
periodicos da epoca, estavam associadas a critica situacao financeira
pela qual o escritor passou apos ter sido libertado da prisao. Infancia
ja estava nas cogitacoes de Graciliano pelo menos desde 1936, pelo que
se percebe em uma carta enviada a Heloisa, sua esposa, datada de 28 de
janeiro (Cartas 161). Segundo Moraes (177), em 18 de outubro de 1938, o
Diario de Noticias publica "Samuel Smiles", primeiro de uma
serie de contos que figurariam, mais tarde, como capitulos de Infancia.
Segundo Moraes, e apenas no quarto conto da serie -- "Um
Cinturao" -- que Graciliano percebera o filao a explorar: "A
1[degrees] de maio de 1939 veio a lume 'Um Cinturao'. So ai
formei vagamente o projeto de, reavivando cenas e fatos quase apagados,
tentar reconstruir uns anos de meninice perdida no interior [...]"
(177). O primeiro capitulo, "Nuvens", so foi escrito em 14 de
setembro de 1939. Publicado como livro apenas em 1945, Infancia levou
seis anos para ser engendrado.
Memorias do carcere foi um projeto adiado para os derradeiros anos
da vida de Graciliano, de modo que, quando e publicado postumamente em
1953, Infancia ja completara oito anos, desde que veio a lume como
livro. O proprio autor declara, em Memorias do carcere (1: 35), que sua
escrita fora reclamada por terceiros, que lhe teriam oferecido dados e
figuras desaparecidas, instando-o a que empreendesse o projeto
prontamente, ate o convencer. Alem disso, Clara Ramos testemunha, em um
livro mais recente (Cadeia 164), que seu pai mantivera um contrato com a
editora Jose Olympio, que lhe remunerava mensalmente em troca de alguns
capitulos do livro. A escrita de Memorias do carcere prosseguiu ate a
morte de Graciliano em 1953.
As duas narrativas assemelham-se pelo fato de que se embasam ambas
em lembrancas, recordacoes de um passado. Mas, enquanto Infancia forja
um eu narrado em forma de menino, compreendendo as referencias a um
periodo que vai aproximadamente da idade de tres anos ate o inicio da
puberdade, aos onze anos, em que o protagonista tem os primeiros
contatos com a (in)justica na figura do pai e da mae; Memorias do
carcere relatara o universo do adulto que, como diz Candido, "se
empenha nas coisas do seculo, e preso, jogado dum canto para outro e
desce a fundo na experiencia dos homens" (54). Por contraste,
Infancia, tambem considerado um livro pessoal, segundo Candido, e uma
"autobiografia tratada literariamente; a sua tecnica expositiva, a
propria lingua parecem indicar o desejo de lhe dar consistencia de
ficcao [enquanto] Memorias do Carcere e depoimento direto e, embora
grande literatura, muito distante da tonalidade propriamente
criadora" (64).
Para uma abordagem do valor autobiografico da obra de Graciliano,
talvez seja mais conveniente iniciar analisando-se em maior detalhe suas
narrativas pessoais. Seu unico livro declaradamente memorialista,
Memorias do carcere, e tambem seu derradeiro projeto literario. A
narrativa, que carrega a marca pessoal inconfundivel desde o titulo,
dispoe-se em quatro partes: a primeira, "Viagens"; a segunda,
"Pavilhao dos Primarios"; a terceira, "Colonia
Correcional"; e a quarta, "Casa de Correcao". Mas pessoal
nao significa individual. Pelo contrario: Memorias do carcere, como toda
a producao literaria de Graciliano Ramos, expoe uma narrativa em que a
experiencia e uma exigencia, uma condicao de que nao se pode prescindir.
E a experiencia, mesmo aquela interior, vivencia-se coletivamente, junto
a outros homens -- mulheres, criancas, ricos, miseraveis, iletrados,
cultos -- seres cujas vozes nao ganharam oportunidade no sistema de
aparencias, na vida ma, no cotidiano em que, quando pela forca e pela
truculencia -- se pensa ter vencido a vida, foi apenas a um semelhante
que se venceu.
Infancia, por outro lado, evita assumir diretamente o compromisso
de um discurso memorialista. O titulo seguido do nome do autor, embora
sugestivo, e um indice que pode apontar em qualquer direcao, nao
necessariamente para a infancia de Graciliano Ramos. Em principio,
poderia versar sobre a vida de qualquer um, ate de personagem ficticio,
ja que nao fica explicito, apenas pelas informacoes da capa, de que
infancia a narrativa trata. O mesmo argumento poderia ser aplicado
tambem a Memorias do carcere, mas nao com a mesma conviccao, embora nao
faltem exemplos, na literatura brasileira, de memorias ficticias, como o
romance urbano Memorias de um sargento de milicias, de Manuel Antonio de
Almeida.
A experiencia em Memorias do carcere e contada a partir de um eu,
uma voz narrativa que coincide com a voz autoral empirica. O
protagonista -- se e que se pode chama-lo assim --, nas rars vezes em
que se expressa diretamente, revela uma identidade com o narrador,
constituindo assim um sistema polifonico inequivoco, no sentido de que
manifesta propositadamente uma diccao de consistencia identitaria
intensa e direta. Infancia, pelo contrario, nada tem de inequivoco com
relacao a identidade em seu sistema polifonico: a voz narrativa nao
assume uma relacao particular aberta com o nome na capa do livro; de
tempos em tempos, o protagonista-narrador posiciona-se, atraves das
lembrancas, no lugar e no tempo remotos da infancia, mas
transportando-se a dimensao passada, nao apenas contemplando
discursivamente os episodios. E como se um adulto encarnasse a crianca
que foi, revivendo a historia na medida de sua capacidade de rememorar,
contando-a por dentro. As vezes, porem, percebe-se o afastamento do
passado, a volta ao presente, como se uma "desincorporacao"
tivesse ocorrido. Nota-se dessa forma uma dinamica identitaria
descontinuada entre protagonista e narrador.
A identidade entre narrador e personagem principal, como lembra
Lejeune (On Autobiography 5), sera marcada com maior frequencia pelo uso
da primeira pessoa, embora possa efetivar-se tambem pelo emprego da
segunda e da terceira pessoas. Quando a relacao de identidade entre
narrador e protagonista manifesta-se pelo uso da primeira pessoa
gramatical, a narrativa resultante se chamara autodiegetica. O narrador,
porem, mantendo identidade com o protagonista, podera dizer
"tu" ou "ele". No primeiro caso, havera uma
narrativa em segunda pessoa; no segundo caso, uma narrativa em terceira
pessoa. Nessas circunstancias, devera existir algum mecanismo que
identifique o narrador ao protagonista -- quando o primeiro nao diz
"eu", mas "tu" ou "ele" -- configurando a
identidade entre eles. Podera nao haver, todavia, identidade entre
narrador e personagem principal. Neste caso, quando o narrador usa a
primeira pessoa, a narrativa se chamara homodiegetica e sera de
testemunho. O narrador podera referir, entretanto, a um "tu"
ou a um "ele". No caso de usar a terceira pessoa gramatical, a
narrativa se denominara heterodiegetica.
Segundo Lejeune (Le pacte 28), sera possivel estabelecer uma
tipologia de genero a partir das relacoes entre autor, narrador e
personagem principal. Quando se estabelece uma identidade previa entre
autor e narrador, tem-se: autobiografia classica, quando a narrativa e
autodiegetica; autobiografia em segunda pessoa, quando a narracao
refere-se a um "tu"; e autobiografia em terceira pessoa,
quando a narracao refere-se a um "ele". Quando narrador e
protagonista nao apresentam identidade entre si, porem, tem-se:
biografia em segunda pessoa, quando a narrativa e homodiegetica
(narrativa de testemunho); biografia em segunda pessoa, quando a
narracao dirige-se a um "tu"; e biografia classica, quando a
narrativa e heterodiegetica.
Na constituicao de Memorias do carcere enquanto narrativa, o
narrador assume explicitamente, embora nao sem alguma aparente
contrariedade, a posicao discursiva em primeira pessoa. A focalizacao,
portanto, podera denominar-se autodiegetica, com a voz narrativa que
relata em primeira pessoa suas proprias experiencias como protagonista
da diegese ou da materia narrada. Tal configuracao ocorre tambem em
Infancia: o narrador assume um ponto de vista em primeira pessoa,
identificando-se ao protagonista, apesar de seus vinculos, por vezes,
afrouxarem-se. Dessa forma, havera um foco tambem autodiegetico, embora
sem comentarios metaliterarios com relacao a responsabilidade do eu na
narrativa, como acontece em Memorias do carcere. Nesta nao se pode
perceber diretamente a coincidencia identitaria entre o narrador e o
autor. Apesar de as experiencias narradas parecerem pormenorizadamente
semelhantes aos fatos da vida real de Graciliano Ramos, nao ha um so
momento em Memorias do carcere em que figure o nome do narrador. E
apenas indiretamente que se logra inferir a sua identidade, atraves de
avaliacoes e comentarios que apresenta de sua propria obra e de
personagens que dela fazem parte. Tal recurso de identificacao a obra,
segundo Lejeune (On Autobiography 18), equivale a autodenominacao do
narrador e satisfaz completamente a necessidade de identidade entre as
instancias narrativa e autoral. Em Memorias do carcere, o narrador
cumpre essa condicao, por exemplo, atraves da passagem em que critica
Luis da Silva, protagonista de Angustia -- "Na casinha de Pajucara
fiquei ate a madrugada consertando as ultimas paginas do romance. [...].
O meu Luis da Silva era um falastrao, vivia a badalar a toa
reminiscencias da infancia, vendo cordas em toda a parte" (Memorias
do carcere 1: 42) -- e nos comentarios que tece sobre o "Relogio do
hospital", conto publicado no livro Insonia (Memorias do carcere 2:
212).
Tambem em Infancia nao figurara em nenhum lugar da narrativa o nome
do protagonista-narrador. O personagem principal e simplesmente um
menino anonimo, como o protagonista de Memorias do carcere. O metodo de
estabelecer a identidade do narrador atraves de sua obra, em Infancia,
depara com a escassez de referencias no texto. A unica alusao e feita em
"Mario Venancio", capitulo em que Graciliano figura como um
dos fundadores do periodico Diluculo e autor da historia "O pequeno
mendigo" (Infancia 227), embora a historia se chame na realidade
"O pequeno pedinte". A identificacao indireta entre o narrador
e o autor, atraves de uma obra assumida pelo narrador, dependera,
entretanto, em grande parte do conhecimento de mundo do leitor. O leitor
que conhece a primeira historia de Graciliano Ramos, que foi publicada
em um obscuro jornal escolar, certamente sera tambem capaz de deduzir
que o "Pequeno mendigo" e o "Pequeno pedinte" sao a
mesma historia, e que "pequeno mendigo" e um verso dentro do
conto em forma de poema "Pequeno pedinte".
Em Memorias do carcere, o personagem principal sera o proprio
narrador, pois sera em torno dos eventos de sua vida que se desenrolara
a maior parte da acao. O narrador-protagonista detem um ponto de vista
testemunhal dos acontecimentos narrados e procura comunicar os aspectos
de sua experiencia por um prisma que se quer isento de "julgamentos
precipitados" e que observa os homens "onde se acham, nessas
bainhas em que a sociedade os prendeu" (1: 35), suas varias
classes. Na realidade, o foco resultante e um sistema hibrido, complexo,
que reune, pela evocacao, as muitas reminiscencias de "casos
passados ha dez anos" (1: 33), que se organizam e ganham mobilidade
pela acao de um personagem sem o qual nada se poderia contar. A
instancia narrativa que delega voz ao personagem apenas formalmente dele
se separa. Na pratica, percebe-se que a dinamica discursiva tende ao
amalgamento das vozes, centrando a acao passada na entidade-personagem
apenas como uma necessidade de andamento da historia. O protagonista,
assim como os outros personagens, e ele proprio uma reminiscencia
ressuscitada, mas uma reminiscencia poderosa, que ganha corpo e voz pela
propria narrativa. Eis aqui o desdobramento do conceito do enfoque
autodiegetico.
Situacao semelhante ocorre em Infancia. Mas aqui o narrador recorre
a lembrancas ainda mais longinquas, que se materializam durante as
"abertas entre as nuvens espessas" (7), com varias solucoes de
continuidade, e obtidas atraves de um esforco aparentemente maior, e de
natureza diversa, do que o realizado em Memorias do carcere. A
convergencia das vozes do protagonista e do narrador parece acontecer de
forma explicita nos momentos mais traumaticos, que dao lugar a fluxos
discursivos quase livres para a sintese das duas instancias apenas
formalmente separadas. Um bom exemplo e a cena do pai de Graciliano
procurando pelo cinturao perdido, culpando o menino, que termina por
receber a punicao de chicotadas por algo que nao fez:
Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento,
voando, abelhas de todos os corticos enchendo-me os ouvidos -- e, nesse
zunzum, a pergunta medonha. Nausea, sono. Onde estava o cinturao? [... ]
Havia uma neblina, e nao percebi direito os movimentos de meu pai. Nao o
vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. [...]. Uivos, alarido
inutil, estertor. (Infancia 31)
Tanto em Infancia quanto em Memorias do carcere, a manifestacao
vocal do protagonista enquanto enunciador individual -- formalizada
pelos artificios graficos como o travessao empregado antes da fala, o
recuo do paragrafo e a delimitacao de linhas a cercear cada turno na
alocucao -- torna-se quase ocasional, quando comparada a densidade e a
extensao da prosa do narrador. Enquanto o narrador como protagonista
estende seu proprio discurso em longas reflexoes, ele nao concede tao
generosamente a palavra a entidades interlocutoras, mesmo quando esta
essencia enunciadora e o proprio protagonista em acao alocutiva plena e
direta, como acontece nos dialogos.
A configuracao polifonica no texto de Memorias do carcere apresenta
uma compatibilidade entre as vozes do narrador e do
protagonista-em-dialogo que demonstra a afinidade esperada, no enfoque
autodiegetico, entre essas duas instancias. A passagem que se segue a
conversa do protagonista com o diretor da Colonia Correcional da Ilha
Grande deixa ver a transicao incontrastavel do fluxo verbal de narrador
a protagonista, formando uma inter-relacao sem solucao de continuidade
que corrobora a questao da referencia identitaria:
-- Que beleza, doutor! Que maravilha!
Chegavamos a cancela. E experimentei de chofre a necessidade
imperiosa de expandir-me numa clara ameaca. A desarrazoada tentacao era
tao forte que naquele instante nao me ocorreu nenhuma ideia de perigo.
-- Levo recordacoes excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a
hospitalidade que os senhores me deram. (Memorias do carcere 2: 158)
Em Infancia, sao ainda menos frequentes as cessoes de fala, com a
voz narrativa centrando-se principalmente na descricao de episodios e
pessoas que figuraram na infancia do protagonista, cuja participacao em
dialogo nao passa de duas duzias de falas muito breves. Embora a
escassez de interlocucoes diretas, a relacao entre narrador e
protagonista-em-dialogo e bastante visivel atraves da identificacao que
se estabelece entre as duas instancias:
Chegamos a um marquesao, sentamo-nos, deitei familiarmente a cabeca
nas pernas da mulher. [...]. Voltou-me a curiosidade, apontei com
desanimo a planta calva, gaguejei:
-- Minha filha, que pau e aquele?
Obtive a informacao e ao cabo de minutos tornei a perguntar:
-- Minha filha, que pau e aquele? (Infancia 38-9)
Discursivamente, elaboram-se diferencas hierarquicas entre a voz do
narrador como locutor e a voz do protagonista como enunciador, porque e
o narrador quem delega voz ao personagem-em-dialogo, ainda que este seja
o proprio protagonista. No entanto, o marcador discursivo mais concreto,
manifestado na superficie do texto, e a alteracao do tempo verbal, que
se converte do preterito, no discurso do narrador, para o presente, no
do protagonista-em-dialogo. Esse desnivel na dimensao temporal instaura
uma distancia ontica entre os seres discursivos, sem, entretanto,
comprometer sua identificacao mutua.
Quando se questiona quem e este eu -- ou, como sua identidade se
manifesta -- na realidade, tentam-se restaurar, a partir dele, aspectos
tais de forma a desenhar-lhe uma essencia reconhecivel. Tal processo
chama-se identificacao. O leitor e compelido pela necessidade de
extrapolar o mundo signico para proceder a identificacao, em busca de
uma referencia concreta. A identidade entre os seres discursivos
pressupoe a identificacao. Em outras palavras, se o leitor precisa
comprovar a identidade entre narrador e protagonista, ele necessitara
primeiramente certificar-se de que o eu que fala como narrador e o mesmo
eu que fala como protagonista. Mas, para assim o fazer, tera de recorrer
a elementos que se encontram fora da narrativa. Para construir-se a
compatibilidade necessaria entre as instancias do texto autobiografico,
torna-se insuficiente a analise meramente formal, como o fato de ambos
declararem-se como "eu". O eu que e narrado -- o eu da
historia experienciada -- em relacao ao eu que narra a historia,
encontra-se no passado, que esta, por vezes, tao psicologicamente
distante, que e como se fosse uma terceira pessoa, ou, como diz
Hermenegildo Jose de M. Bastos, "o eu do passado distancia-se tanto
do eu do presente que tende a se tornar um ele" (67). A solucao
para o dilema, portanto, requer que se pense biograficamente o
narrador-autor como identico ao eu que ele narra. Configura-se assim a
ideia de um eu no presente que fala de um eu anterior, no passado, como
se este fosse um outro. No entanto, ainda que falando de um
"eu-outro", o eu presente -- o narrador -- se afirmara de
qualquer forma como "eu", minimizando as diferencas
denunciadas nos desniveis temporais.
Em Infancia, o afastamento realiza-se, por vezes, atraves do
recurso ao discurso indireto livre, como no episodio em que o
protagonista questiona-se a respeito do inferno. O narrador ganha acesso
a consciencia da mae, ampliando seu enfoque narrativo, mas, ao mesmo
tempo promove um distanciamento, apresentando um julgamento sobre si a
partir de um ponto de vista hibrido:
Subito ouvi uma palavra domestica e veio-me a ideia de procurar a
significacao exata dela. Tratava-se do inferno. Minha mae estranhou
a curiosidade: impossivel um menino de seis anos, em idade de
entrar na escola, ignorar aquilo. Realmente eu possuia nocoes. O
inferno era um nome feio, que nao deviamos pronunciar. Mas nao era
apenas isso. (71)
Contrariamente, ainda em Infancia, trazendo uma circunstancia do
passado para o ambiente da narrativa presente atraves de uma analogia, o
narrador, promovendo uma aproximacao, estabelece um contraste entre as
instancias do eu que vivenciaram as experiencias:
Guardei a licao, conservei longos anos esse paleto. Conformado,
avaliei o forro, as dobras e os pespontos das minhas acoes cor de
macaco. Paciencia, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem tolerarme
um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como
ele e realmente: chinfrim e cor de macaco. (185) (grifos meus)
A aproximacao identitaria entre as figuras do autor, do narrador e
do protagonista dependera, em certa medida, do leitor. E sua capacidade
de estabelecer identidades, isto e, seu poder de identificacao, que
compora a contraparte do sistema textual e seus constituintes. O ser
empirico que e o escritor, atraves do discurso narrativo e de seus
personagens, e o responsavel pela criacao de sinais que orientarao o
leitor na formacao da identificacao. Um dos principais locais em que se
estabelecem esses sinais e a parte inicial da narrativa, em que o
narrador firma um pacto com o leitor. Deve-se compreender pacto como
contrato, uma elaboracao discursiva em que o narrador estabelece as leis
que regerao a materia narrada, uma especie de acordo que o obriga a
cumprir o que foi prometido. Segundo Lejeune (On Autobiography 16-17),
ha tres tipos de pacto: o ficcional, o autobiografico e o nulo (0). Os
tipos pactuais sao apresentados em intersecao com as relacoes entre
autor e protagonista, segundo o personagem principal tenha um nome igual
ao do autor -- estabelecendo-se a identidade --, apresente um nome
diferente do nome do autor ou simplesmente nao tenha nome. As possiveis
combinacoes resultarao em tipos determinados de narrativa: o romance, a
autobiografia ou algo indeterminado. O pacto em Memorias do carcere e
firmado no inicio do livro e repetido ou reiterado algumas vezes no
decorrer da narrativa. No capitulo I da primeira parte, chamada
"Viagens", o narrador declara ter se resolvido a "contar
casos passados ha dez anos" (1: 33). A expressao empregada -- casos
passados -- investe na veracidade dos fatos, pois nao se trata de
quaisquer casos, casos inventados, mas de casos "passados",
que se passaram, ou seja, acontecidos de fato.
Em Infancia, nao ha um pacto formalmente estabelecido e que obedeca
a todas as convencionalidades de um trato nitidamente firmado entre as
partes. O contrato redigido em tal romance e muito mais sutil e, na
realidade, encontra-se discriminado nas entrelinhas cobertas pelas
"nuvens" do primeiro capitulo do livro. Nao ha a
pormenorizacao explicita e o posicionamento preciso do narrador de
Memorias do carcere. Antes, o contrato em Infancia instituise
discretamente, sem a valorizacao do protocolo em que o narrador toma
solenemente a responsabilidade de dizer a verdade, assinalando a
legitimidade da narrativa concretamente. Ao contrario, Graciliano e o
primeiro a moderar a qualidade de suas recordacoes em Infancia,
facultando a escrita do pacto ao leitor: "Talvez nem me recorde bem
do vaso: e possivel que a imagem, brilhante e esguia, permaneca por eu a
ter comunicado a pessoas que a confirmaram" (7). Em Memorias do
carcere, os momentos em que ocorre a homologacao da legitimidade da
narrativa verificam-se a espacos regulares, mas quase sempre sucedidos
por trechos que expressam contraposicao de ideias. Parece que o narrador
deseja flexibilizar o discurso autobiografico, posicionando-o em
paralelo com aspectos ficcionais. A propria narrativa, que pretensamente
se quer autobiografica, indica o dificil transito entre os dois generos
em certos momentos. Ao falar de seu desgosto ao usar a primeira pessoa
(Memorias do carcere 1: 37), na realidade, o narrador questiona sua
propria opcao de adotar o ponto de vista autodiegetico. Naturalmente que
o incomodo tem relacao com o fato de a balanca da dinamica narrativa
pender para a identificacao que se vinha escamoteando desde os primeiros
livros de Graciliano Ramos. Nao ha aqui tambem uma resolucao definitiva
e concludente para o problema. O que ha sao as negociacoes com
afirmacoes moduladas da identidade, que se deixam ver desde o principio
do pacto. A questao da identidade e a consecucao de um pacto estao
intimamente associadas e constituem facetas complementares de um unico
problema.
Bastos aborda o assunto pelo emprego do termo
"quase-identidade" (121), que descreve complexos movimentos de
identificacao e diferenca de Graciliano Ramos com relacao aos
personagens de sua obra. Por enquanto, bastaria apontar tal movimento
nos textos considerados memorialisticos:
Se a leitura de Mc [Memorias do carcere] nos levasse a concluir
pela identidade, o sentido propriamente literario da obra ficaria
comprometido; se concluissemos pela diferenca, os principios
realistas que exigem fidelidade a experiencia vivida ficariam, por
sua vez, comprometidos. A identidade do eu nao e, assim, algo de
natureza diadica, mas triadica. No processo dialetico, a sintese e
sempre provisoria, consistindo em nova tese. (121)
E assim que certas afirmacoes presentes no pacto inicial entre
narrador e leitor, em Memorias do carcere, sofrem da compreensivel
predisposicao esquizoide em lancar uma sombra de duvida ao que se
constroi penosamente -- a identidade e a propria narrativa: "Nao
conservo notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, com o
decorrer do tempo, ia-me parecendo cada vez mais dificil, quase
impossivel, redigir esta narrativa" (1: 33). Dai, conclui-se que o
narrador entretece a historia pela memoria ou, pelo menos, indiretamente
credita a esta a constituicao da narrativa. A "quase
impossibilidade" da redacao da narrativa nao impede o narrador de
apresentar sua historia: com efeito, Memorias do carcere tera sido o
mais extenso dos livros de Graciliano Ramos. Ja em Infancia, sem nada
haver prometido explicitamente, a duvida nao se manifesta em sombras,
mas em "nuvens espessas" (7), nevoeiros e neblinas, que
simbolizam a falta de nitidez do que ocorre ao espirito do narrador como
lembranca.
Enquanto em Infancia essa ausencia de limpidez nao causara grandes
suspeitas ao leitor, ja que o contrato constitui-se de maneira informal,
em Memorias do carcere, o proprio pacto, construindo-se sobre a
ambivalencia gerada pelas concessoes a imprecisao e a memoria, plantara
sementes de duvida no espirito do leitor. Os adverbios e os fraseios que
expressam incerteza -- "presumivelmente", "atos
esquecidos" -- vao instaurar a desconfianca depois de praticamente
cada sugestao de que a narrativa reproduziria fielmente a realidade
objetiva, tal qual teria ocorrido em meados da decada de 1930 (Memorias
do carcere 1: 33). O narrador em Memorias do carcere, dessa forma,
justifica a distancia cronologica dos fatos. Se lhe desagradava
romantizar o livro, encobrindo os verdadeiros nomes dos personagens,
expondo suas mazelas em um relato de historias reais, era necessario
esperar ate que as razoes iniciais desvanecessem para nao incorrer na
indiscricao de expor ao publico seus "antigos companheiros"
(Memorias do carcere 1: 35). Entretanto, o tempo necessario para
resguardar a privacidade de varios personagens da trama e o mesmo tempo
que serve para suscitar ou, pelo menos, evocar a ficcionalidade na
narrativa. Assim, o narrador restaura a realidade atraves da lembranca,
propria e alheia, preenchendo lacunas ou simplesmente as deixando
vazias, como diz: "ampliarei insignificancias, repeti-las-ei ate
cansar, se isto me parecer conveniente" (Memorias do carcere 1:
36).
Em Infancia, e tambem um suscitar de lembrancas que imprime ritmo a
marcha da narrativa. Porem, as reminiscencias sao de natureza bastante
diferente daquelas em Memorias do carcere, porque se trata de um adulto
recordando experiencias de seu tempo de menino, periodo muito mais
afastado cronologicamente do que a terrivel passagem pelo carcere. Nao
ha em Infancia o escrupulo exagerado que se mostra nas memorias
posteriores com relacao a integridade moral dos personagens. Tal zelo
talvez nao fosse necessario, ja que a maior parte das figuras da
narrativa ja nao privavam mais da convivencia de Graciliano, como sua
mae, que morrera em 1943. Alem disso, a historia narrada em Infancia --
deveria sabe-lo Graciliano -- gozaria do status de ficcao.
Em Memorias do carcere, a suposta perda das notas mencionada no
pacto teria beneficiado o narrador em seu oficio de contar a historia,
pois nao se veria obrigado, a cada instante, a consultar os papeis a fim
de retratar detalhadamente os fatos. Para ele, as "coisas
verdadeiras podem nao ser verossimeis" (1: 36), entre elas, a hora
exata de uma partida ou a cor da folha que cai de uma arvore. Dessa
forma, o narrador apresenta um questionamento metaliterario com relacao
ao valor de verossimilhanca, que e um conceito mais intimamente
associado ao universo ficcional. Para ele, a verdade pode nao apresentar
aspectos do real; a verdade pode parecer improvavel, implausivel,
contrariar a si mesma e, principalmente, o conceito de realidade dos
leitores, pela sua falta de relevancia contextual: "E se
esmoreceram, deixa-las no esquecimento. [...] Afirmarei que sejam
absolutamente exatas? Leviandade" (Memorias do carcere 1: 36).
O que ganha espaco na representacao narrativa de Graciliano Ramos e
aquilo que sobrevive pela importancia e pelo significado que o torna
memoravel. Revivida a partir dos pontos de vista do narrador e dos
testemunhos de pessoas que se transformaram em personagens da trama, a
experiencia passada e evocada converte-se em materia filtrada pela
subjetividade sofrida do autor na pele do narrador. A unica forma
encontrada de escapar de uma perspectiva autoritaria, autocratica, como
o "pequenino fascismo tupinamba" (Memorias do carcere 1: 34)
de que foi vitima, e flexibilizar a narrativa atraves da ficcionalidade.
Para Graciliano, a ficcao, muito mais do que simples representacao
artistica da experiencia humana, constitui um lugar de refugio e
protecao. Em Infancia, o protagonista usa o espaco ficcional como
reparacao das aflicoes impostas pela violenta realidade familiar. Pela
leitura dos romances e historias, o menino-personagem encontra a
estabilidade afetiva para a acao como resposta a barbaridade, ao
abandono e a humilhacao. Talvez este seja um dos fatores responsaveis
pela seducao instantanea que a literatura exerceu sobre a afetividade da
crianca em Infancia, e, consequentemente, pela sua aproximacao dos
romances e historias que lhe proporcionaram um escape uma salvacao
disponivel e digna -- a realidade de humilhacao e machucamento. Na
realidade, em Infancia, Graciliano metaforicamente fugira de casa
atraves do exercicio da errancia literaria. Por essa razao, abrir mao da
ficcao, para Graciliano Ramos, significaria menos se desviar dos
paradigmas da arte literaria do que abandonar o espaco por excelencia
libertador -- e, por vezes, simplesmente escapista -- da narrativa
ficcional. Entretanto, para o autor, a literatura -- e, por extensao, a
ficcao -- sempre foi, como diz Bastos, uma "forma superior de
testemunho sobre o homem e a historia" (25). De certa forma,
depreende-se que, consequentemente, a narrativa testemunhal figura como
um territorio em que reinam a liberdade e a dignidade.
Em viagem de trem para o Recife, ja sob a custodia da policia, o
protagonista de Memorias do carcere olha pela janela, percebe de
passagem os mocambos -- "construcoes negras num terreno
alagado" (1: 61) -- e lembra-se do amigo Jose Lins. O autor de
Moleque Ricardo, filho de fazendeiros, que pouco entendimento teria a
respeito de meninos criados na miseria, escrevera um romance sobre o
assunto: uma narrativa cheia de imaginacao e, na opiniao de Graciliano,
verossimilhanca. Ele, porem, julgava-se incapaz de tal facanha: "so
me abalanco a expor a coisa observada e sentida" (Memorias do
carcere 1: 61). A materia plasmada a partir da experiencia, "a
coisa observada e sentida" do narrador, e a substancia de um
projeto literario que transborda novamente para a vida, porque e em prol
dela que se a faz. Dessa forma, mesmo a ficcao em Graciliano Ramos nao
sera inspirada na pura invencao, o que aproxima sua narrativa ficcional
do que se chama, abrangentemente, de genero autobiografico. Em Memorias
do carcere, ela surgira especificamente como tematizacao, atraves de uma
abordagem que poe em pauta a propria obra enquanto espaco de reflexao
sobre a literatura e o modo como ela se constitui. Em Infancia, a ficcao
sera, como sugere Candido (50), uma possibilidade de leitura.
O pacto proposto pelo narrador de Memorias do carcere, enfim, sera
autobiografico na medida em que se intitula como tal. A relacao que o
narrador mantem com seu proprio enunciado, porem, e marcada por sinais
de varias nuancas, que se materializam sob a forma de consideracoes
metaliterarias e filosoficas. Tais consideracoes modalizam, flexibilizam
o pacto para que nele caibam os ajustes de uma verdade que talvez outros
narradores considerassem inconfessaveis, como o fato de admitir que a
realidade nem sempre e verossimil e, portanto, nao relevante, pelo menos
discursivamente. Assim, Graciliano Ramos nao exclui do pacto de Memorias
do carcere a possibilidade da negacao da realidade, quando ela nao faz
parte de um universo significativo de experiencia para si e para aqueles
a quem ele representa com sua literatura. Tampouco banira de la a ficcao
quando ela contribuir como metodo para minimizar o deslocamento
identitario, como se viu, tornando mais verossimil sua narrativa
autobiografica.
Afinal, usar a elaboracao discursiva para reconstruir partes da
propria vida atraves da memoria significa, em certa medida, lancar mao
da ficcao, especialmente quando os fatos distam mais de dez anos do
momento da narrativa, como em Memorias do carcere. Neste livro, o ponto
de vista do eu narrado -- que sofre na pele todas as sevicias de um
sistema carcerario cruel e falido -- so pode ser resgatado pela visao do
eu narrador que se debruca e julga seu proprio passado. E este eu
narrador, pois, quem reproduz as experiencias do outro, passando-se por
ele e relatando, a partir de uma realidade totalmente nova, as
atrocidades ocorridas ha uma decada. Nesse sentido, vale a pena lembrar
a reflexao de Alfredo Bosi:
A separacao, entre ficcao e nao-ficcao hoje e contestada nao so
teoricamente como tambem vivencialmente por certa critica e por
muitos leitores. Ha uma corrente pos-moderna que procura mostrar
que a propria atividade simbolica, enquanto simbolica, e uma
alienacao. Teria chegado o momento de acabar com esta pesada e
canonica tradicao segundo a qual literatura e literatura, linguagem
de comunicacao e linguagem de comunicacao, e realizar,
performativamente, a identidade profunda de ambas as atividades.
(177)
O questionamento da atividade simbolica enquanto alienacao parece
ser algo que ja estava nas cogitacoes do proprio Graciliano Ramos. Ao
alistar as razoes por que teria adiado por tanto tempo seu projeto de
escrita de Memorias do carcere, ele falara da sintaxe como um elemento
de tirania, comparavel a forca policial. A linguagem, assim,
apresentaria um aspecto que suprime a liberdade, tornando-se instrumento
de opressao, coacao e, consequentemente, constituindo-se em fator
alienante:
Certos escritores se desculpam de nao haverem forjado coisas
excelentes por falta de liberdade -- talvez ingenuo recurso de
justificar inepcia ou preguica. Liberdade completa ninguem
desfruta: comecamos oprimidos pela sintaxe e acabamos as voltas com
a Delegacia de Ordem Politica e Social, mas, nos estreitos limites
a que nos coagem a gramatica e a lei, ainda nos podemos mexer. (1:
34)
O carater alienante da linguagem estaria em sua propria funcao de
representar o mundo na medida exata de suas possibilidades. Seu poder de
representacao esta condicionado a leis -- como a gramatica -- que, assim
como as regras sociais, nao podem ser desrespeitadas sem que se pague o
devido preco, como Fabiano, em Vidas secas, que padeceu na cadeia por
ter altercado com um guarda.
Com relacao a Graciliano Ramos, Bastos (23) pondera que o autor
sabe que sua obra, devido a alta sofisticacao estetica, contribui para
fortalecer a instituicao literaria. Embora produza uma literatura
voltada para o oprimido, privilegiando a perspectiva das massas, ele tem
consciencia de que sua arte promove a cumplicidade com a sociedade que
pretende combater ou criticar, muitas vezes constituindo-se com o
restante das artes contemporaneas, em uma das suas pilastras de
sustentacao. Mas, ao mesmo tempo em que a arte figura como elemento
alienador, carregando essa culpabilidade de um papel inexoravelmente
duplo por natureza, para Graciliano ela tambem significa uma via de
conhecimento, atuacao e, por consequencia, libertacao: algo vital e que
da sentido a vida. E atraves de sua literatura que ele deixa sua
contribuicao de testemunho da historia do homem conforme a ve.
E na contramao da alienacao -- e no espirito da liberdade que a
arte pode proporcionar -- que o limite estreito onde "ainda nos
podemos mexer" tornase o lugar para a pratica da burla das normas
-- sejam elas sociais ou gramaticais --, a qual se concretizara pela
criatividade da arte. O espaco por excelencia desafiador e questionador
de tais leis que constrangem o individuo sera a ficcao, pois e atraves
de seus expedientes que a realidade podera ser reelaborada.
Ao se questionar a respeito do que o diferenciava do detento Jose,
o ladrao -- cuja infancia havia sido tao parecida com a sua propria --
Graciliano admite que, alem de sua submissao "a regra, a censura e
ao castigo" (Memorias do carcere 1: 178) e de talvez ter nascido em
uma classe diferente, o alfabeto figuraria como o fator mais importante,
tendo desenhado as linhas que mudariam irremediavelmente seu destino.
Graciliano nao precisou rebelar-se contra as pressoes sociais de forma
semelhante a de Jose, furtando e praticando outros delitos. Sua
rebeldia, ao contrario, foi transposta para o nivel do discursivo, para
o dominio da ficcao e, por fim, para o terreno da memoria. A literatura,
portanto, ao mesmo tempo em que liberta ou salva, torna mais espessas e
visiveis as diferencas de classe, que sempre foram uma questao
recorrente na obra de Graciliano.
A autobiografia -- escrita da vida de si mesmo -- de Graciliano
Ramos nao e algo que se possa resolver com um jogo de palavras. Ela nao
se deixa apanhar. A autobiografia graciliana assim o e, conceitualmente,
porque o autor, relatando a historia de si proprio, nada mais faz do que
contar a historia de seu povo, de seus irmaos nordestinos, de seus
irmaos brasileiros e de todos os seres humanos que se solidarizam diante
do sofrimento, nao importando o tempo, nem o espaco, porque em alguns
detalhes todos sao iguais ou muito semelhantes. O inverso, normalmente,
tambem e verdadeiro: contando a historia da humanidade, estara
Graciliano Ramos dando a saber sua propria historia, sua propria vida,
sua propria dor. Desse movimento de empatia com o ser vivente, que se
projeta a partir de sua obra para alem dela e de si mesmo, e que se
junta o conceito de autobiografia. De fato, Memorias do carcere e
Infancia nao sao apenas autobiograficas, nem o poderiam ser. Elas sao
narrativas homo- e etnoautobiograficas: registros escritos da vida de um
individuo que sintetiza, em suas experiencias, a experiencia comumente
vivida. Dessa forma, a vida do individuo e um espelho que reflete varios
aspectos da realidade de seu grupo, de sua comunidade, de sua cultura.
OBRAS CITADAS
Almeida, Manuel Antonio de. Memorias de um sargento de milicias.
Sao Paulo: Atica, 1986.
Bastos, Hermenegildo Jose de M. Memorias do carcere, literatura e
testemunho. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 1998.
Bosi, Alfredo. Literatura e resistencia. Sao Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
Candido, Antonio. Ficcao e confissao: ensaios sobre Graciliano
Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
Coutinho, Afranio, org. A literatura no Brasil. 3a. ed. 6 vols. Rio
de Janeiro: Jose Olympio, 1986.
Cristovao, Fernando. Graciliano Ramos: estruturas e valores de um
modo de narrar. 4a. ed. Lisboa: Edicoes Cosmos, 1998.
Lejeune, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Editions du
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--. On Autobiography. Trans. by Katherine Leary. Minneapolis: U of
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Moraes, Denis de. O velho Graca: uma biografia de Graciliano Ramos.
Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1992.
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--. Mestre Graciliano: confirmacao humana de uma obra. Rio de
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--. Caetes. 31a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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2000.
--. Sao Bernardo. 81a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
--. Vidas secas. 100a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
por Marcelo da Silva Amorim
University of North Carolina-Chapel Hill